Em junho deste ano recebi o convite para realizar a curadoria da 8.ª edição do Festival de Música do Espírito Santo, estado localizado na região sudeste do Brasil, festival que acontece anualmente na bela cidade de Vitória. Sendo a minha principal área de atuação a encenação de ópera, entendi, na ocasião do convite, que uma das contribuições que eu poderia oferecer nessa curadoria seria um olhar dramatúrgico no modo de abordar a programação. Um trabalho de reflexão e análise, seleção de temas e linguagens trabalhados nas obras a serem escolhidas, a criação de modos de encadeamento dos temas, linguagens e obras entre si, e, com isso tudo, a busca da criação de narrativas específicas.

Fui incumbida de pensar uma proposta para oito concertos e um conjunto de debates, a serem apresentados, sem público presencial, entre os dias 6 e 28 de novembro, através de streaming. Todo trabalho partiu, obviamente, de uma reflexão sobre o momento que o Brasil, e o mundo todo, está atravessando. No breve texto de apresentação no site desta edição do Festival, comento um paradoxo que estes tempos de pandemia têm tornado ainda mais evidente: “Somos todos parte de uma mesma humanidade, todos afetados por esse acontecimento, mas, ao mesmo tempo, partes tão diferentes e que sofrem as exigências do momento de modos tão desiguais, que se torna difícil nos enxergarmos como um todo.” Dessa reflexão vieram outras sobre os limites das fronteiras físicas e simbólicas que nos conectam e nos separam e, delas, as perguntas: Como podemos abordar e enfrentar desigualdades e interdições em um festival de música de concerto? Quais sentidos queremos criar com essa edição do Festival? Existem aspectos positivos de se realizar uma edição sem público presencial?

A partir dessas questões surgiu a proposta de uma programação em torno do tema Fronteiras: interdição e permeabilidade, e de dicotomias que dele se desdobram como global/local, diferença/semelhança, presença/ausência, liberdade/aprisionamento, centro/periferia. Foi definido, então, um repertório constituído por composições brasileiras, portuguesas e latino-americanas dos séculos XX e XXI, com um enfoque na produção de compositoras. Um dos objetivos dessa escolha foi deslocar o foco do repertório usual de música de concerto tradicional realizado no Brasil, em geral obras de países centrais da Europa, para um universo riquíssimo de composições pouco ou nada conhecidas pelo público brasileiro. E, claro, com uma presença significativa de compositoras: do conjunto de quarenta compositores do repertório, vinte e quatro são mulheres, para combater um dos mais graves problemas do campo da música clássica, a ausência, gritante, de obras de compositoras nas programações e temporadas de teatros e salas de concerto.

Além disso, a escolha de apresentar um repertório português e latino-americano junto com o brasileiro, que por sua vez passeia frequentemente entre o popular e o erudito, veio do desejo de mergulhar na própria identidade brasileira, construída sob o signo da diversidade, como bem diz o jornalista João Luis Sampaio em texto de apresentação da programação do festival.

Embora exista um intercâmbio cultural entre Brasil e Portugal, os brasileiros ainda conhecem muito pouco da música portuguesa e, diante das enormes afinidades e conexões históricas, linguísticas e culturais entre os dois países, a inclusão do repertório português pareceu-me fundamental.

Além das mencionadas questões que nortearam a elaboração do projeto como um todo, a dramaturgia da programação dá-se em diferentes aspectos. Primeiramente, nas ligações e nos intercâmbios entre os compositores das obras programadas. O concerto de piano e voz, que será apresentado no dia 27 de novembro, por exemplo, será formado por obras dos portugueses Luiz de Freitas Branco e Fernando Lopes-Graça, que foi aluno de Freitas Branco, e canções dos brasileiros Kilza Setti e Cláudio Santoro. Lopes-Graça e Santoro compartilharam interesses tanto no campo musical como no político e trocaram correspondências por muitos anos, assim como Setti, que foi amiga e orientanda de Lopes-Graça em Portugal no início dos anos de 1970, quando bolsista da Fundação Gulbenkian. O encontro dos dois compositores acontece também no concerto de violino e voz, no qual serão apresentadas o solo de violino Fantasia Op. 2, de Santoro, uma obra recém-descoberta que irá ao palco pela primeira vez na história no dia 21 de novembro, e duas obras de Lopes-Graça, o Prelúdio e Fuga para violino solo e um arranjo de Segredos, uma das “Canções Heróicas” do compositor.

Outro aspecto dramatúrgico importante foi a escolha e o entrelaçamento temáticos. No caso das canções, os poemas transitam por um conjunto de temas que aparecem em diversos concertos, entre eles liberdade, aprisionamento; presença, ausência e sonho, realidade. O último par surge, por exemplo, nas obras Los Delphines, da compositora argentina Susana Baron Supervielle, com poema de Silvina Ocampo, e em Não sei se é sonho, se realidade, do compositor Lopes-Graça, com poema de Fernando Pessoa.

Há ainda a questão dos deslocamentos físicos dos artistas que ultrapassaram fronteiras geográficas, como o caso da própria Susana Supervielle que viveu as últimas décadas de sua vida em São Paulo, ou, ainda, o caso do compositor Daniel Schvetz, argentino radicado em Portugal, cujo quinteto de cordas Trilogía del ángel será apresentado ao lado dos quartetos Tango balé, de seu conterrâneo Astor Piazzolla, e L’homme desarmé do português Eurico Carrapatoso.

Por último, ainda a abordar fronteiras, a programação apresenta diversas obras que exploram os limites e as permeabilidades entre linguagens musicais chamadas de eruditas e populares, como, por exemplo, a obra do brasileiro Radamés Gnatalli Concerto para acordeon, tumbadoras e cordas, que abre o Festival no dia 6 de novembro.

Além dos oito concertos, serão realizadas mesas-redondas e conversas que irão abordar alguns dos principais temas do Festival, como Compositoras nas Salas de Concerto, Lopes-Graça e as Pontes Brasil-Portugal, Música Clássica e Produção Áudiovisual, esta última com a participação de João Pedro Cachopo, professor convidado no Departamento de Ciências Musicais da Universidade Nova de Lisboa.

 


As transmissões serão gratuitas e acontecerão ao vivo pelo Youtube. A programação completa pode ser acessada em www.festivaldemusicaerudita.com.br .

Sobre o autor

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A encenadora Livia Sabag é formada em Artes Cénicas pela Universidade de São Paulo. Entre os seus mais recentes trabalhos distingue-se a encenação de 'Elektra', de Strauss, no Theatro Municipal de São Paulo, e, em 2015, 'Le nozze di Figaro', de Mozart, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, produção originalmente concebida para o Theatro São Pedro de São Paulo e finalista do Prêmio Concerto 2014. Ainda no mesmo ano encenou 'Salomé', de Strauss, no Theatro Municipal de São Paulo, vencedora do Prêmio Concerto 2014 da categoria Ópera e eleita a melhor montagem de ópera pelo júri especializado da 'Folha de São Paulo'. É idealizadora e coordenadora do VOE – Vitória Ópera Estúdio, no Espírito Santo, e é também idealizadora e directora-geral do projecto 'Ópera na Escola' realizado desde 2010 em escolas públicas do Estado de São Paulo. É mestranda em Artes Cénicas na Universidade Nova de Lisboa.