Em Julho de 1984, tinha eu vinte e cinco anos de idade, fui monitor de um curso de Verão organizado pelas Jeunesses Musicales em Wenecja (Bydgoszcz), na Polónia: ensinava técnicas de animação musical mas decidi oferecer, à parte, uma pequena conferência de introdução à música em Portugal, apresentada em francês e ilustrada por uma actuação ao vivo com um coro formado ad hoc, que dirigi como pude (aparentemente com sucesso). Embora não pretendesse então ser musicólogo, mas apenas o jornalista e o crítico musical que era já, o resultado deu-me suficiente confiança para propor a Armando Santiago, com o patrocínio da pianista Helena Lamas Pimentel e da associação a que presidia[1], a realização no Canadá de versões mais desenvolvidas desta conferência; o que veio a acontecer em Novembro do mesmo ano, no Conservatório de Música do Québec (1.ª parte: até ao século XVIII), na Université Laval (2.ª parte: séculos XIX e XX) e depois também no Conservatório de Música de Montréal.

Armando Santiago era então director do Conservatório de Música da cidade do Québec. Não o conhecia pessoalmente. Apesar das minhas fracas habilitações à data (tinha acabado de me licenciar em Filosofia e não completara ainda o curso de flauta transversal no Conservatório Nacional) foi certamente convencido pela bondade do apadrinhamento, pois acolheu a proposta sem hesitação, encarregou-se de organizar o périplo e, bem secundado pela transbordante simpatia da esposa, recebeu-me em casa com uma gentileza infinita.

Pude nessa altura, pela primeira vez, ter acesso a composições suas através da oferta de um disco EP acabado de publicar[2]; mas tive sobretudo a oportunidade de ouvir histórias de vida, testemunhar a diversidade dos seus interesses criativos (pintura e ourivesaria; só mais tarde o amor pela literatura se tornaria notório) e observar uma faceta inesperada: a propensão para o trabalho oficinal, aquele que se sente na ponta dos dedos e se testa pelos restantes sentidos.

Tendo sido um professor reconhecidamente competente, não posso pronunciar-me sobre a natureza dos seus métodos pedagógicos (de resultados aliás atestados pela marca de exigência e humanidade que deixou nos seus discípulos). Mas o seu trajecto de compositor trai, por um lado, essa vontade de envolvimento sensível no detalhe (uma atenção focada, de maestro, a que se junta o gosto epocal pela experimentação material); e por outro, a determinação em combiná-la com um pensamento claramente estruturado. É essa dedicação a uma arte simultaneamente colorida, polida e emocionalmente vibrante que faz com que saibamos, ao ouvir, que estamos perante um músico inteiro, e não perante um mero especulador ou manipulador de sons.

É possível que a sua rara consciência artesanal tenha sido estimulada pela passagem por Paris, onde em 1960 estudou as técnicas da música concreta com Pierre Schaeffer, no Grupo de Pesquisas Musicais da ORTF. Adivinho, de resto, que a afinidade entre Armando Santiago e Constança Capdeville no gosto pela pesquisa sonora tenha a ver com uma cumplicidade biográfica: imagino o primeiro, cinco anos mais velho, a influenciar a segunda, dando-lhe conta da sua experiência com o autor de À la recherche d’une musique concrète. Que Armando Santiago tenha também feito, com Gil Miranda, a apresentação do concerto de Karlheinz Stockhausen em Lisboa em 1961 e, seis anos volvidos, uma conferência sobre música concreta recorrendo à «cantata dramática» Le voile d’Orphée de Pierre Henry (1953), não pode deixar de ser significativo[3].

A consulta de algumas das suas partituras atesta o pendor exploratório que se afirmou a partir dos anos sessenta: para dar alguns exemplos, Prismes (1970) pede aos coralistas participantes, para além do canto, quatro outros tipos de produção vocal, com constrangimentos variáveis (voz murmurada com altura determinada; voz arquejante seguindo um contorno melódico; voz falada no registo mais grave possível, ou com altura indeterminada; voz declamada com altura indeterminada). Esta orientação surge radicalizada numa obra coral a cappella, …un mur impossible… (1993), que prevê, para além de outras modalidades vocais, texto cochichado, diversas aberturas bocais com ou sem cobertura de mão, glissandi, vibratos lentos e recurso pontual a uma flauta de bisel.

Nas obras puramente instrumentais, Groupes (1997) requer sonoridades inusitadas (sopro sem som tonalizado; harmónicos produzidos sobre as cordas do piano) ou suas combinações (produção de som instrumental com canto simultâneo) a par de alguma indeterminação (notas mais agudas ou graves possíveis; glissandi). O impressionante quarteto de cordas (1995) prevê uma notável variedade de produção sonora, mas em contrapartida Neume [I], um trio (1998), abstém-se de ultrapassar a normal expectativa do instrumentista de arco; só em Neume III (2000), para violeta solo (peça derivada dos materiais de Neume I), o compositor sente necessidade de acrescentar ao vocabulário clássico a diferenciação de notas por quartos de tom.

Na verdade, tal como sucede nas Trois miniatures pour clarinette solo (1971), em Neume I Armando Santiago remete-se a um modo de composição mais tradicional, em que um núcleo motívico, associado ao intervalo sol-fá#, é paulatinamente transformado, contrastado, glosado ou ecoado dentro de um delicado mas pungente atonalismo livre. A notação, em coerência, deixa de ser aventurosa (a necessitar de prefácios explicativos e assimilações progressivas) para se apresentar imediatamente legível.

Isto leva-nos a retomar o fundamental da impressão recebida: Armando Santiago, pese embora quer o gosto pela vibração e pela variedade tímbrica, quer o recurso justificado a modos de escrita menos convencionais, não é compositor de efeitos; a exploração sonora não é fogo-de-vista, mas, ao invés, modo de expressão, integrado num discurso significativo, dinâmico, atento quer à micro-escala da intervenção individual, quer à macro-escala da forma musical. A sua música transmite-nos uma vivência irrequieta e densa, que nos abraça — assim nos deixemos abraçar — com gestualidade por vezes sofrida, mas sempre larga e calorosa. Que a modéstia do homem não nos engane: a sua música é menos inusitada que escolhida, generosa e admirável.


[1] O GRUPO-Animação Musical, criado em 1981 devido a desentendimentos no seio da Juventude Musical Portuguesa. Em 1985, tendo eu sido eleito Presidente da JMP, o GAM seria reintegrado na sua dinâmica de trabalho, mantendo embora alguma autonomia.

[2] Armando Santiago: Portrait musical, CPAC Série 4, Nº 23, WRC5-3022 ‎(EP), com excertos de três obras (Prismes, Trois miniatures pour clarinette seule, Simetrias) somando pouco mais de 15′ de música. O disco não traz data de produção, mas não é anterior a 1983 nem posterior a 1984.

[3] Francisco Monteiro, “The Portuguese Darmstadt Generation: The Piano Music of the Portuguese Avant-Garde”, Ph.D diss. (Univ. of Sheffield, UK, 2003), pp. 67, 86. A obra de Henry é aí referida somente como Orphée, mas das três correspondências possíveis, só o título acima estava então publicamente disponível em LP.

Sobre o autor

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Manuel Pedro Ferreira estudou em Lisboa e na Universidade de Princeton, onde se doutorou em Musicologia com uma tese sobre canto gregoriano em Cluny, orientada por Kenneth Levy. Ensina no Departamento de Ciências Musicais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, de que chegou a ser coordenador. Desde 2005 é responsável pelo Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical. Em 1995 fundou o grupo de música antiga Vozes Alfonsinas, que ainda dirige em palco e em gravações. Foi eleito em 2010 membro da Academia Europaea e pertence desde 2012 ao Conselho Directivo da Sociedade Internacional de Musicologia. Dedicado sobretudo aos estudos musicológicos, escreveu um vasto número de artigos académicos em revistas e livros publicados por todo o mundo. Tem estado também activo como crítico musical, compositor e poeta. É casado e tem três filhos.