texto de Duarte Pereira Martins e José Carlos Araújo


Gravar o conjunto integral das sonatas conservadas de Carlos Seixas para instrumentos de tecla, iniciando uma colecção discográfica inteiramente dedicada à música portuguesa, afigurou-se-nos desde o primeiro momento como uma tarefa fascinante, quer pelo seu significado cultural, quer pela amplitude e dificuldade dos problemas com que deparamos pari passu, quer, sobretudo, pela diversidade de opções estéticas a que a interpretação da obra de Seixas obriga. Constituindo embora uma parte escassa do conjunto da produção do Autor – confiando no testemunho contemporâneo de Barbosa Machado, que não há razões para questionar –, as sonatas que chegaram até nós sob o nome de Seixas ou que lhe possam ser atribuídas com segurança formam um conjunto variegado, impressionante sobretudo por reflectir influências diversas, não raro difíceis de fixar de forma precisa, e por antever correntes artísticas posteriores como o Sturm und Drang. De igual modo desenvolve, com assinalável liberdade, a forma coeva da sonata barroca, e sintetiza o legado da tradição organística ibérica que o antecedeu, da qual muito deverá ter dependido a formação que recebera ainda em Coimbra.

As primeiras questões que se nos colocaram prenderam-se fundamentalmente com a selecção e a crítica textual das sonatas: as obras de Seixas chegaram-nos por intermédio de uma transmissão manuscrita dúbia, assente em escassos testemunhos cuja dependência é de fixação problemática e que apresentam dificuldades textuais de incerta resolução. A par destes problemas de ordem textual, a atribuição da autoria de parte das sonatas não é também isenta de dúvidas. São frequentemente incluídas em colectâneas manuscritas, entre sonatas atribuídas expressamente a Seixas, obras anónimas em que o estilo e os processos composicionais do Autor se podem observar com maior ou menor certeza, pelo que fomos levados, na consideração do conjunto das sonatas a serem incluídas no projecto integral, a excluir apenas aquelas cujo texto conservado apresenta incoerências irresolúveis.

CARLOS SEIXAS | Sonatas (I)

O primeiro CD da colecção melographia portugueza do mpmp é também o primeiro volume de uma inédita gravação integral das obras para tecla de Carlos Seixas 

A escolha dos instrumentos, num projecto de gravação integral – tentado pela primeira vez em disco –, assume particular importância. Reflectindo a diversidade de influências estrangeiras sentidas nos primeiros decénios de Setecentos em Portugal, a música de Seixas é também espelho de um recurso consistente a instrumentos diversos. Entre estes, em particular o clavicórdio, o cravo e os primeiros exemplos de pianofortes (os chamados “cravos de martelos”, segundo os modelos de Cristofori e Ferrini) adaptam-se à interpretação das mesmas obras, veiculando embora aspectos expressivos variados que dependem directamente da natureza das suas mecânicas. No caso da maioria das sonatas, a selecção dos instrumentos cinge-se a estas três famílias e aos vários tipos de construção que as representam: outras possibilitam ainda a interpretação em órgão. Contudo, a dificuldade prática de duplicar gravações de um grande número de sonatas em instrumentos diferentes no âmbito da integral obrigou-nos a distinguir primordialmente sonatas destinadas ao órgão e ao cravo, procurando, então, organizá-las de acordo com critérios que reflectissem adequadamente o que pensamos que possa ter sido a prática interpretativa corrente na época de Seixas. Neste primeiro conjunto, por exemplo, seguimos uma organização das sonatas em pares tonais, à semelhança de numerosos casos observáveis na tradição textual veneziana de Domenico Scarlatti, que tem origem na vontade do próprio compositor.

Dos instrumentos a que poderíamos recorrer, quer cópias modernas de cravos de tradições de construção que pudessem ser conhecidas e utilizadas em Portugal no séc. XVIII, quer instrumentos históricos, a escolha do cravo construído em Lisboa por Joaquim José Antunes em 1758 e preservado actualmente na colecção instrumental do Museu Nacional da Música parecia-nos evidente para iniciar a colecção. O mais antigo instrumento sobrevivente da família Antunes, activa em Lisboa ao longo de quase todo o século, ilustra plenamente, pelo que dela conhecemos, a tradição portuguesa de construção de cravos, de que não são conhecidos quaisquer exemplares do século precedente. As condições actuais em que se encontra o instrumento, restaurado em 1986 e sujeito a uma manutenção variável desde então, aliadas à necessidade de proceder às gravações no próprio Museu, pareceram-nos não impedir a utilização deste instrumento histórico, tendo em conta a importância e o carácter únicos do cravo Antunes.


CD disponível aqui.

Texto originalmente publicado na Glosas 6 (2012).

Sobre o autor

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Licenciado em piano pela Escola Superior de Música de Lisboa, na classe de Jorge Moyano, concluiu o Conservatório Nacional com a classificação máxima, tendo aí estudado com Hélder Entrudo e Carla Seixas. Premiado em diversos concursos, apresenta-se em concerto em variadas formações. Estreia regularmente obras de compositores contemporâneos. Gravou para a RTP/Antena 2, TV Brasil e MPMP: editou, em 2020, o CD “La fièvre du temps” em duo com Philippe Marques. É membro fundador do MPMP Património Musical Vivo, dirigindo temporadas e coordenando inúmeras gravações. Termina, actualmente, o mestrado em Empreendedorismo e Estudos da Cultura do ISCTE. Foi director executivo da GLOSAS entre 2017 e 2020.