texto de Duarte Pereira Martins e José Carlos Araújo


Na sequência da gravação integral das sonatas para instrumentos de tecla de Carlos Seixas (1704-1742), o registo das obras especificamente dedicadas ao órgão levanta questões particulares de selecção e interpretação, obrigando igualmente à ponderação de critérios técnicos inerentes à natureza do instrumento e do local onde se encontra. No âmbito da série dedicada a Seixas na colecção melographia portugueza, a opção pela gravação de mais do que um CD contemplando obras para órgão pareceu-nos simultaneamente lógica, com vista a abranger a diversidade das suas influências, e profícua, permitindo ilustrar de forma mais completa a riqueza do património organístico da primeira metade do séc. XVIII que se conserva em Portugal.

CARLOS SEIXAS | Sonatas (II)

O segundo CD da colecção melographia portugueza apresenta a primeira gravação realizada no órgão histórico do Mosteiro de São Bento da Vitória, no Porto, bem como o primeiro CD integralmente dedicado a obras para órgão de Carlos Seixas. 

As sonatas para órgão de Seixas podem ser consideradas sob dois aspectos: por um lado, as obras intencionalmente concebidas no respeito da tradição organística que regeu a educação musical do autor, em Coimbra, nas primeiras décadas de setecentos; por outro, obras cujas características permitem a interpretação em qualquer dos instrumentos de tecla mais comummente utilizados na época em Portugal, sem implicar necessariamente a interpretação em órgão. As sonatas de pequenas dimensões poderiam, em particular, suprir em contexto litúrgico a função dos versos para órgão, género de que não se conservam quaisquer exemplares do compositor e cuja prática deverá ainda ter muito frequentemente dependido da improvisação.

A escolha do alinhamento deste disco pretende, assim, representar a convergência das numerosas correntes estéticas observáveis no estilo seixasiano. Distribuídas em pares tonais, à semelhança da prática adoptada no primeiro CD, nas obras aqui incluídas observa-se a influência da escrita fugal do Sul da Europa (como as sonatas K. II e XXII), bem como a prática, pouco habitual nas obras que sobreviveram de Seixas – embora fosse provavelmente mais corrente do que nos é hoje dado perceber –, de composição em múltiplos andamentos (como nas sonatas K. 41 e 49). A sonata K. 41, por exemplo, intitulada invulgarmente na única fonte manuscrita Sinfonia, denota uma provável composição original para uma formação instrumental semelhante à Abertura em Ré maior conservada na Biblioteca da Ajuda, com trompas, cordas e baixo contínuo. Devendo-se a sua preservação à redução para um instrumento de tecla, a interpretação em órgão é particularmente adequada devido à riqueza tímbrica conferida pelos vários registos de palhetas.

Os órgãos que Seixas terá conhecido representavam, na primeira metade do séc. XVIII, uma já longa tradição de organaria, que remontava ao séc. XVI. No seu tempo de vida, verifica-se em Portugal a construção de instrumentos de grandes dimensões, com possibilidades sonoras de assinalável diversidade, conseguidas através da construção de secções independentes de ecos, da inclusão de flautas de timbre muito contrastante com os flautados, que constituem a base do órgão, da primazia conferida a numerosos registos solísticos e da colocação “em chamada” de palhetas de sonoridade muito variada, imagem de marca do órgão ibérico.

Órgão histórico do Mosteiro de São Bento da Vitória
(fotografia: Ana Salazar/MPMP)

Construído entre 1716 e 1725 por Fr. Manuel de São Bento, monge beneditino, o órgão histórico do Mosteiro de São Bento da Vitória insere-se num conjunto artístico executado por numerosos escultores para o coro-alto da igreja nas primeiras décadas do séc. XVIII. Por motivos de simetria, do lado do Evangelho – em frente ao órgão, situado em tribuna própria no lado da Epístola –, encontra-se um órgão mudo (apenas uma fachada, que cria a impressão de existirem dois instrumentos). À imponência barroca do conjunto acresce a singular qualidade da construção do instrumento, o maior órgão histórico do Porto e um dos mais importantes do país. Atendendo ao equilíbrio tímbrico da composição e às características mecânicas, representativas da tradição contemporânea da organaria ibérica, este instrumento é particularmente apropriado à interpretação da música de Carlos Seixas e dos mestres ibéricos seus antecessores.

Restaurado em 2001 pelo mestre-organeiro Pedro Guimarães von Rohden, que procurou restituir ao instrumento a sua integridade histórica e o ideal sonoro setecentista, este CD constitui a primeira gravação absoluta deste instrumento histórico, sendo igualmente o primeiro dedicado exclusivamente a obras para órgão de Seixas.


CD disponível aqui.

Texto originalmente publicado na Glosas 7 (2013).

Sobre o autor

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Licenciado em piano pela Escola Superior de Música de Lisboa, na classe de Jorge Moyano, concluiu o Conservatório Nacional com a classificação máxima, tendo aí estudado com Hélder Entrudo e Carla Seixas. Premiado em diversos concursos, apresenta-se em concerto em variadas formações. Estreia regularmente obras de compositores contemporâneos. Gravou para a RTP/Antena 2, TV Brasil e MPMP: editou, em 2020, o CD “La fièvre du temps” em duo com Philippe Marques. É membro fundador do MPMP Património Musical Vivo, dirigindo temporadas e coordenando inúmeras gravações. Termina, actualmente, o mestrado em Empreendedorismo e Estudos da Cultura do ISCTE. Foi director executivo da GLOSAS entre 2017 e 2020.

Uma resposta

  1. Maria Santos

    Em Faro, na Sé, o espectáculo que apresentou foi excelente! Espero que os festivais de órgão continuem.