No passado dia 19 de Fevereiro, o dia oficial do arranque da iniciativa em Portugal, a Madeira teve a honra de acolher um de mais de duzentos projectos e cerca de quatrocentos e oitenta eventos da Temporada Cruzada França-Portugal. Esta iniciativa, que será concretizada entre Fevereiro e Outubro deste ano em oitenta e quatro cidades francesas e cinquenta e cinco portuguesas, é fruto do intercâmbio cultural acordado entre os governos português e francês em 2018 e, entretanto, adiado devido à pandemia. Refira-se que a inauguração oficial da temporada teve lugar no dia 12 de Fevereiro em Paris, com um concerto pela Orquestra Gulbenkian, a pianista Maria João Pires e o maestro Ricardo Castro.

Na Madeira, a honra recaiu sobre a Orquestra Clássica da Madeira (OCM), que foi dirigida pelo maestro francês Michaël Cousteau, tendo sido solistas o pianista francês Bruno Belthoise e a soprano lusa Raquel Camarinha. Esse concerto, com o mesmo programa, os mesmos solistas e maestro, foi previamente apresentado no dia 11, em Paris, com a colaboração da orquestra Philharmonie de Paris.

O Director Artístico da OCM, Norberto Gomes, referiu que “o convite que a Orquestra Clássica da Madeira recebeu para participar nesta iniciativa representa, por um lado, um motivo de orgulho pelo reconhecimento da sua crescente qualidade artística e, por outro lado, a sua capacidade de integração em projectos de dimensão internacional”.

O programa deste concerto foi idealizado pelo maestro Cousteau, que solicitou para a Temporada Cruzada aos dois compositores contemporâneos a criação de duas obras para estes intérpretes específicos. Assim, o jovem compositor francês Benjamin Attahir escreveu a obra O pescador e a lua, e a compositora portuguesa Anne Victorino d’Almeida escreveu o seu Concerto para piano, Op. 78. Depois da estreia mundial no concerto em Paris, estas duas obras tiveram a sua estreia nacional na Madeira, completando-se este diálogo musical franco-português com duas obras por compositores consagrados do século XX, Maurice Ravel (o bailado Ma mère l’oye) e Fernando Lopes-Graça (Sinfonieta em homenagem a Haydn, uma encomenda da Orquestra Gulbenkian de 1980).

O jovem compositor francês Benjamin Attahir (nascido em Toulouse em 1989) que, entre outros professores, estudou também com Pierre Boulez, já possui uma carreira mundial e é conhecido pelo público português, tendo residido em Outubro de 2019 na Fundação Calouste Gulbenkian para a realização de três concertos com a respectiva orquestra. Uma das suas obras para piano foi encomendada por Daniel Barenboim para a inauguração da sala Pierre Boulez em Berlim. Em Maio de 2020, Renaud Capuçon estreou o seu concerto para violino, encomendado e dirigido por Daniel Barenboim, com a Staatskapelle Berlin na Filarmónica de Berlim. A soprano Raquel Camarinha já colaborou com Benjamin Attahir, tendo estreado o seu tríptico operático Le silence des ombres e o duplo concerto para soprano, violino e orquestra je/suis/judith, com o violinista Renaud Capuçon.

 

 

O texto da obra para soprano e orquestra de Attahir é um conto infantil cheio de ternura e fantasia, desenvolvido em diálogo entre a mãe (a soprano, que é a autora do texto) e o seu filho, ao embalá-lo, e combina as línguas portuguesa e francesa. Essa combinação reflecte o percurso da cantora que, depois da formação inicial em Portugal, se aperfeiçoou em França onde, em 2011, concluiu o Mestrado em Canto no Conservatório Nacional Superior de Música e Dança de Paris, e, em 2013, obteve os Diplomas de Artista Intérprete em Canto e Repertório Contemporâneo e Criação. Premiada em vários concursos internacionais, Camarinha tem desenvolvido um grande interesse pelo repertório contemporâneo, tendo estreado múltiplas obras de compositores portugueses e estrangeiros.

A pureza, delicadeza e precisão da sua voz combinaram de uma maneira quase instrumental com os timbres orquestrais, tecendo a história musical d’O pescador e a lua numa linguagem musical em que a fantasia, liberdade e comunicação artística foram os principais ingredientes para uma experiência musical cativante.

A violinista e compositora Anne Victorino d’Almeida, sobejamente reconhecida pela sua actividade artística e educacional, contribuiu de uma maneira deveras assertiva para o repertório português de concerto para piano e orquestra, criando este título que, nos seus quase quinze minutos de duração, concentra um microcosmo de emoções, contrastes inesperados e energia quase primordial, numa escrita idiomática e estilo ecléctico cujas inspirações apenas favoreceram o enriquecimento de uma linguagem eminentemente individual. É certamente uma obra que vai continuar a fascinar tanto os públicos como os intérpretes. Bruno Belthoise, “o pianista francês mais português”, segundo as palavras do maestro Cousteau, foi o intérprete ideal desta obra, combinando as suas qualidades pianísticas com o entrosamento simbiótico com a orquestra, sobretudo quanto à sua percepção orgânica da complexidade rítmica e da característica urgência da pulsação incessante.

 

 

O gosto pela concepção de programas originais do maestro Michaël Cousteau manifestou-se de uma maneira ímpar na elaboração desta comunhão musical e a sua comunicação com os solistas e a orquestra, através de gestos económicos mas muito precisos e pertinentes, contribuiu para criar uma cumplicidade artística, plenamente respondida pela orquestra, da qual beneficiaram os intérpretes, o público, e, sobretudo, a própria música. Uma ovação de pé prolongada premiou tanto o conceito idealizado como a prestação artística e a impressão emocional resultante.

Sobre o autor

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Robert Andres é diplomado em piano pela Academia de Música de Zagreb (Croácia), tendo também estudado em São Petersburgo e Viena. Enquanto bolseiro Fulbright, estudou nos Estados Unidos com Sequeira Costa na Universidade de Kansas, tendo recebido o doutoramento em artes musicais, assim como um mestrado em musicologia. Desde 1993 ensina no Conservatório – Escola Profissional das Artes da Madeira, sendo atualmente professor de quadro e delegado do grupo de instrumentos de tecla. Para além da actividade concertista, orienta regularmente masterclasses de piano e já integrou mais de uma dezena de júris de concursos internacionais. Tem escrito para revistas musicais especializadas, enciclopédias reputadas e jornais. Em 2001 a editora americana Scarecrow Press publicou o seu livro sobre os inícios da abordagem científica da técnica pianística.