Duarte Pereira Martins | texto
Ana Salazar | fotografia
Isa Antunes, José Carlos Araújo e Philippe Marques | transcrição
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Como foi inicialmente pensada a sua colaboração com a Naxos?
A minha ideia começou com a integral das sinfonias de Joly. Depois havia outras obras, mas entretanto saí da Orquestra Sinfónica Portuguesa quando foi integrada no Teatro Nacional de São Carlos, decisão à qual me opus terminantemente. A OSP tinha sido criada como instituição autónoma e depois foi posta sob a égide de uma fundação que englobava o Teatro e a Orquestra, a Fundação São Carlos. Mas a orquestra era autónoma dentro da fundação. Eu incompatibilizei-me, naturalmente, com o responsável do São Carlos, que era o Paulo Ferreira de Castro, porque ele queria que a orquestra estivesse predominantemente ao serviço dele.
Que fosse a orquestra do teatro?
Eu disse-lhe: “A orquestra não é do Teatro Nacional de São Carlos. Está na Fundação São Carlos e enquanto eu estiver aqui faz aquilo que eu decidir, porque eu sou o director artístico e você é o director artístico do Teatro. Eu não me meto no São Carlos e você não se mete na OSP.” Infelizmente, quando houve eleições e apareceu o Rui Vieira Nery como Secretário de Estado, ele conseguiu convencê-lo a que a orquestra estivesse no Teatro Nacional de São Carlos. O lugar de director da orquestra foi eliminado e a orquestra foi posta no São Carlos. Eu opus-me por uma razão muito simples: dentro do São Carlos a orquestra é sempre secundarizada. Ora, a Orquestra Sinfónica Portuguesa tem um papel que transcende em muito o papel de orquestra do Teatro Nacional de São Carlos. O São Carlos como teatro de ópera, para já, não tem um fosso suficientemente grande e, mais a mais, a OSP, assim como foi criada, por minha iniciativa, tem cento e quinze elementos, de modo a poder dividir-se em duas. Enquanto uma toca no fosso do São Carlos, a outra pode sempre ter uma actividade sinfónica. O meu conceito era que houvesse uma actividade absolutamente regular e constante – que teve, no meu tempo –, independentemente do que acontecesse na ópera. Se houvesse ópera, havia sempre músicos suficientes, se não, podia fazer-se grande repertório sinfónico. Eu sabia, da minha experiência com a RDP, que uma vez integrada no Teatro, por muito bom que fosse o director, a orquestra estaria sempre em segundo plano. Se o director do São Carlos for um bom director, dá prioridade ao São Carlos e, portanto, é um mau director da Orquestra. Se for um mau director do São Carlos, não é uma boa recomendação para ser director da Orquestra. Em qualquer das circunstâncias, é negativa a integração da OSP. Então, eu era uma pessoa a abater e, efectivamente, fui abatido. O resultado está à vista: a orquestra, hoje, não tem presença. Faz concertos de vez em quando, mas aquilo que se espera da primeira orquestra de um país – que o nome indica que ela deve ser –, impacte nacional e internacional, não tem nenhum, absolutamente nenhum. Porquê? Por estar integrada no São Carlos.
Face a isso, como vê a situação global do Teatro Nacional de São Carlos hoje?
Não me pronuncio… não meto o nariz em seara alheia, nunca meti. Assim como não queria que interferissem. A OSP foi convidada a fazer uma tournée de dez concertos à Alemanha, com o último concerto no Konzerthaus de Viena, que foi inviabilizada pelo São Carlos. Nessa altura foi-me dito pelo Paulo Ferreira de Castro que iam fazer ópera e o que fizeram foi Il Mondo della Luna de Haydn, que tem uma orquestra de quinze ou vinte elementos. Dava perfeitamente; dos cento e quinze tiravam-se os quinze elementos e fazia-se a ópera. Mas foi inviabilizada. Eu convidei vários agentes internacionais para assistirem a concertos da OSP em Lisboa. Então, a orquestra foi convidada a fazer uma tournée ao Oriente – à Coreia –, com seis concertos com programas diferentes, no festival de Seoul, também inviabilizada pelo São Carlos, que tinha outros planos para a orquestra. No TNSC nunca se planeava com antecedência, enquanto estas coisas internacionais eram planeadas com antecedência. Por exemplo, estamos agora em Agosto de 2013: “Em Novembro de 2014 tenho um convite para ir com a orquestra à Coreia, há algum problema com isso?” – “Há, com certeza, porque eu não sei o que vou fazer nessa altura.” [risos] – “Está bem, faça o que puder, considerando que a orquestra está fora…” – “Não, tenha paciência mas você tem de se sujeitar. É muito mais complicado gerir um teatro de ópera do que uma orquestra.” E eu digo: “Não é disso que estamos a falar. Estamos a falar de uma coisa concreta: Novembro de 2014. Há alguns planos?” – “Não, não tenho.” – “Então, posso aceitar este convite?” – “Não, não pode, porque eu posso vir a ter planos que coincidam…” E assim foi inviabilizada uma tournée ao Oriente… foi inviabilizada uma tournée ao Brasil em que o São Carlos tinha tudo organizado, com os bilhetes de avião pagos pelos brasileiros. Esqueceram-se de os reservar… Esqueceram-se…! E as gravações destinavam-se a ser outra vertente da internacionalização da Orquestra Sinfónica Portuguesa. Evidentemente, ainda chegámos a ir a um festival em Espanha… mas muitos outros projectos foram inviabilizados por causa da situação que se vivia.
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Estão previstas outras gravações?
Está previsto um próximo disco com a sinfonia À Pátria, de Vianna da Motta, juntamente com o seu concerto para piano. Depois, tenho um disco previsto com obras de Luiz de Freitas Branco, como Viriato e As Tentações de São Frei Gil. Há ainda outro disco previsto com as Viagens na minha terra e o Canto de amor e de morte de Lopes-Graça, na versão para orquestra.
Quanto a Ruy Coelho, não me cheguei a debruçar sobre o seu repertório, que não conheço muito bem… não tenho acesso às partituras. Eu tenho uma partitura da segunda Symphonia Camoneana, publicada em Berlim. Digo-lhe, com toda a franqueza, que esbarrei com várias coisas, em termos de técnica de composição, que me deixaram perfeitamente atónito. Tinha de me debruçar mais sobre a obra de Ruy Coelho. Certamente, A princeza dos sapatos de ferro é uma obra boa, pelo menos tem sido bastante tocada, mas ainda não cheguei ao resto…
Conheceu Frederico de Freitas? A sua obra não é muito divulgada.
Com certeza. Na altura em que ele estava activo, era muito conotado com a música popular. Os intelectuais olhavam de lado…
Ele não estava dentro do círculo de que há pouco falávamos?
Não estava. Eu lembro-me de Pedro de Freitas Branco me contar uma vez: “Sabe como é que o meu ilustre colega, o maestro Frederico de Freitas, chegou a dirigir a orquestra de Bordeaux? Mandaram uma carta para a Radiodifusão a dizer que gostariam de convidar o maestro de Freitas! Deram o convite, então, ao Frederico de Freitas e ele aceitou, com certeza. Mas queriam convidar-me a mim…! Falei depois com o meu agente em Paris, que me perguntou porque não tinha ido dirigir…! Ele não sabia que tinham convidado o maestro Frederico de Freitas. Depois, verificou-se o engano!” Pedro de Freitas Branco contou-me isto com um ar muito superior. Quero dizer, Frederico de Freitas não se enquadrava na linha dos intelectuais da música naquele período. Havia um certo distanciamento, tanto pela formação intelectual como pela atitude social, a opinião. Frederico de Freitas era uma jóia de pessoa! Conheci-o perfeitamente, até porque lhe sucedi na orquestra da Radiodifusão, em 1970. O responsável pelo Departamento de Música da Emissora Nacional, Pedro do Prado, convidou-me para ocupar o lugar de subdirector da orquestra. Eu conheci-o muito antes. Era uma pessoa simpaticíssima, muito acessível e muito, muito fina. Mas, pela sua linguagem musical, não se enquadrava naquele ambiente.
Há algum momento da sua carreira que o tenha marcado especialmente?
Não. Foram tantas centenas de concertos! Quando cheguei aos mil e não sei quantos concertos desisti de fazer a contabilização. Só com a Nova Filarmonia Portuguesa, em cinco anos de actividade, dirigi setecentos concertos! De modo que há tantas coisas boas, tantas coisas más, que é muito difícil para mim seleccionar alguma. Em relação a obras, a nível internacional, nós não temos falado disso mas a minha actividade foi sempre mais orientada para fora de Portugal do que para dentro, porque as limitações aqui eram mais do que muitas e o mundo é muito grande. Quando eu fui para os Estados Unidos ofereceram-me o lugar de maestro assistente de uma orquestra em Nova Iorque. Depois fui estagiar com a Orquestra de Boston e ganhei o Prémio Koussevitsky, em 1969. Então houve uma catadupa de oportunidades, fui convidado por dezenas de orquestras, as portas abriram-se assim de repente.
Quando foi o 25 de Abril, eu estava a dirigir ópera no São Carlos e a orquestra quis sanear-me. Houve vários músicos da orquestra que diziam que eu tinha sido nomeado pelo governo fascista e, portanto, tinha de me demitir. Eu disse: “Se vamos por aí, vocês todos têm de se demitir, porque vocês também foram nomeados pelo governo fascista.” Não nos entendíamos e eu perguntei à Direcção o que achava se eu “saísse de circulação” durante uns tempos… Telefonei aos meus contactos internacionais e ofereceram-me um lugar na Universidade da Califórnia para chefiar a orquestra.
Convidaram-me depois para ir para Nova Iorque, onde me senti como peixe dentro de água e ensinei durante um ano na Julliard School. Fui convidado para dirigir uma orquestra de jovens recrutados a nível nacional nos Estados Unidos, com oito concertos, no Carnegie Hall, que tem uma acústica de sonho. Isso foi uma grande experiência! Eu lembro-me das críticas, tenho-as guardadas. Uma vez, a propósito do Don Juan de Strauss, um crítico escreveu que a orquestra tocou com tanto entusiasmo, tanta verve e tanta energia que parecia a Orquestra de Chicago em palco (que, com o Solti na altura, era a grande orquestra).
Na altura, deixei-me seduzir pela proposta do Ministro da Cultura, Coimbra Martins, que tinha conseguido criar a estrutura para a qual os músicos da Orquestra da Radiodifusão deveriam ser transferidos, para que pudesse ser reestruturada a Orquestra. Foi um projecto meu. Nessa altura, vagou o lugar de Chefe de Departamento das Orquestras da Radiodifusão e eu candidatei-me. Era um lugar que estava hierarquicamente acima do meu, eu era Maestro Director. Deram-me o lugar. Fiz as contas e cheguei à conclusão de que a RDP recebia 100 mil contos para financiar as duas orquestras (de Lisboa e do Porto); o dinheiro que se estava a gastar com os músicos era cerca de metade. Então fui ter com o Administrador do Departamento e disse-lhe: “Cheguei a uma conclusão muito simples. Os senhores dizem sempre que não há dinheiro, que não há dinheiro para preencher as vagas… Olhe, aqui está o que está a ser gasto para as duas orquestras. Não chega a 50 mil contos e a RDP recebe 100 mil do Orçamento Geral do Estado para financiar estas duas orquestras. Como é que o senhor diz que não há dinheiro?” E ele disse: “O que é que o senhor tem a ver com a maneira como a Radiodifusão gasta o seu dinheiro?” – “Não é o seu dinheiro, é o dinheiro dos contribuintes! É o dinheiro que está adstrito às orquestras, isto é um roubo que os senhores estão a fazer!” Ele disse: “Ponha-se lá fora!” Bom, eu “pus-me lá fora” e fui ter com um ex-colega de curso da Faculdade de Direito, que era na altura Secretário de Estado da Comunicação Social: “Olhe, passa-se isto… Eu vou deixar o lugar de Chefe de Departamento e vou para o meu lugar de Director da Orquestra, porque tenho este lugar nos Estados Unidos que vou ocupar a partir de Setembro. Mas vou dar uma conferência de imprensa para dizer que saio deste lugar porque a Radiodifusão Portuguesa está a roubar dinheiro que é das orquestras.” – “Não podes fazer uma coisa dessas! Isso é um escândalo!” – “Exacto! É um escândalo!” Antes do 25 de Abril, criei um grupo de amigos da Orquestra da Emissora Nacional, do qual faziam parte várias pessoas importantes, inclusivamente o Marcello Caetano, que foi meu professor na Faculdade de Direito e também contribuiu com dinheiro para comprar instrumentos e melhorar a orquestra, porque os instrumentos que eles tinham eram do tempo da Maria Cachucha…
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ENTREVISTA PUBLICADA NAS GLOSAS 10 e 11 ( Clique aqui para aceder aos artigos completos nas versões impressas ).