Entrevista de A. Baião-Pinto, fotografia de Jennifer Lima Pais e assistência técnica de António de Saldanha.


Realizador, escritor e editor de raizes luso-brasileiras, Guilherme Branquinho tem vindo a construir um portefólio cinematográfico variado, após ter completado o bacharelato em Film Production na University of Westminster. Mais tarde realizou um mestrado em Film Philosophy na King’s College of London, direccionado para o estudo dramatúrgico. Começou a realizar na produtora Ministério dos Filmes em 2018, tendo, mais tarde, em 2020, assinado com a Take it Easy. Mais recentemente, o seu guião Finisterra foi um dos cinco laureados com prémio mais alto no primeiro concurso de séries NETFLIX (em parceria com o ICA). A sua primeira curta-metragem, intitulada Vórtice (financiada pelo ICA), encontra-se em fase de pré-produção, e as filmagens estão agendadas ainda para este ano. Já em fase de pós-produção, encontra-se Clareira, um documentário pessoal que acompanha o percurso criativo do artista visual Fernão Cruz. Fomos ao encontro do autor, para melhor conhecer o seu percurso e alguns projectos de futuro.

Além do seu pai, que também seguiu uma carreira no cinema como director de fotografia, do seu avô diplomata (ao que sei, um excelente contador de histórias), apontam-se-lhe, na família, nomes da literatura como Branquinho da Fonseca e Tomás da Fonseca… Esta herança teve algum peso, quando se decidiu por uma carreira no cinema?

A resposta imediata é sim. Mesmo antes do meu avô, o meu bisavô, ainda que indirecto (Branquinho da Fonseca)… Posso dizer que tiveram alguma influência, pelo menos no que respeita ao storytelling. Mas principalmente o meu avô, pela sua capacidade de encher qualquer sala com as suas imensas histórias. O cinema aparece como algo muito orgânico, muito devido ao meu pai que, embora com uma actividade mais técnica, nunca deixou de revelar um grande interesse pelo conteúdo e pela narrativa de qualquer produção. Desde que tenho memória, lembro-me de o acompanhar algumas vezes aos sets. Nos últimos cinco anos, a escrita surgiu não só como uma necessidade mas, creio eu, como um resultado natural de todo este contexto.

 

 

O cinema, geralmente de um modo mais flagrante que qualquer outra arte, desenvolveu uma capacidade muito grande de renomear e atribuir outros significados a fenómenos que lhe precedem ou que lhe são paralelos – estou a pensar no caso da música, por exemplo?

Poderia falar de apropriação, mas não me parece o caso. A ideia de originalidade em si parece-me ser, hoje em dia, um pouco falaciosa. Independentemente da abordagem ou da desconstrução que possamos fazer, os grandes temas são tão velhos quanto a humanidade. A questão que se impõe é o formato, ou seja, de que forma é que nos é possível, de acordo com o meio utilizado, debruçarmo-nos sobre as temáticas e possibilitar novos pontos de vista, de maneira a que possamos alcançar outras conclusões, quiçá mais úteis ao tempo em que vivemos.

A novidade, independentemente do contexto, é muitas vezes vista como uma ameaça. Com o aparecimento do cinema, especialmente com a sua autonomização sonora nos anos de 1920, não terão sido poucos os que perspectivaram a decadência das artes cénicas. Qual é a reflexão que se impõe fazer entre o cinema e o streaming?

Eu encaro o cinema como uma arte contemporânea; nesse sentido, tudo o que é inovação não lhe é, à partida, estranho. Tudo o que vá contra esta premissa parece-me sempre um pouco estranho – o que, por si só, não invalidada um olhar crítico sobre o fenómeno. A experiência de assistir a um filme numa sala de cinema é diametralmente oposta a vê-lo via streaming, num contexto doméstico. Desde logo, pela ausência do contacto social físico. Em cinema, fala-se muito desta ideia de experiência colectiva – temos um público, numa sala escura, temos uma aparência de concentração, embora seja sempre possível perceber algumas reacções do público que nos rodeia. No entanto, hoje em dia, a experiência colectiva vai muito além do contacto social – basta pensarmos, goste-se ou não, da sensação causada pela série Game of Thrones: mal estreava um episódio e as redes sociais enchiam-se de partilhas e comentários.

No fundo, é como se o comentário de “foyer” transitasse para o universo “on-line”…

Sim. Embora eu não tenha o hábito de partilhar muito nas redes sociais. No entanto, tenho a plena noção de que estou a ver algo com milhares de pessoas… Isso deve-se ao imediatismo da comunicação. Mas a dimensão social já perdemos há muito tempo, o que não se traduz na ausência da “crítica”; aliás, hoje em dia qualquer pessoa tem opinião, poderão é não ter opiniões muito fundamentadas…

Na sua carreira conta-se, pelo menos, um videoclip com a banda They Must Be Crazy. Uma experiência quase inteiramente musical.

Sim, de facto foi um momento único. Confesso que, à data, a minha intenção foi “mostrar uma música” sem quaisquer intenções narrativas. Este tipo de trabalhos consegue, não poucas vezes, ser um pouco difícil de encarar. No fundo, tentámos, sendo um conjunto de imensos músicos, transmitir e enquadrar devidamente todas as potencialidades de storytelling. Tentei captar a natureza da música e das palavras, intimamente relacionadas com a temática do racismo e da segregação social. Trabalhei muito esta ideia de separação e de linhas invisíveis (ou não assumidas) numa cidade; essa é a principal razão para os músicos aparecerem a tocar isolados ou separados e, progressivamente, se irem juntando ao longo do filme. Foi um trabalho muito gratificante, em especial pela natureza da banda.

 

 

Falando agora de alguns projectos futuros – o que é nos pode dizer sobre esta incursão no género documental? O que te atrai em específico?

É sempre um pouco difícil falar de projectos em curso… Quanto ao que me atrai, atrevo-me a dizer que a questão é sempre a mesma, seja qual for o género – a possibilidade de contar uma história. Com certeza existem nuances entre a fixação e o documentário; no entanto, uma história imaginada ou relatada nunca deixa de o ser. Por exemplo, recordo-me sempre das ideias de Kieślowski: sucintamente, trata-se de um autor que iniciou a sua carreira no documentário e depois transitou para a ficção; ele costumava afirmar que lhe era sempre mais fácil transmitir uma ideia de verdade a partir da ficção. Ou seja, um documentário, para além de ser um relato, nunca se deve demitir de uma ideia de abordagem própria. A partir do momento em que apontamos uma câmara a um determinado momento, em detrimento de outro, já estamos, de certo modo, a agir de forma intencional. Resumindo: o que me interessa no documentário não é esta ideia de verdade, que o próprio género tenta transmitir, mas, por outro lado, o conseguir capturar uma certa essência. É esse o resultado que eu pretendo com o artista plástico Fernão Cruz, com quem tenho o privilégio de ter uma óptima relação pessoal. Neste género, o que me preocupa mais são as pessoas, mesmo além dos “factos”. Julgo ser esse o ponto em que é possível traçar uma fronteira com outras tipologias mais jornalísticas, porventura de reportagem.

Sobre o autor

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A. Baião-Pinto tem marcado presença habitual em diversos espectáculos como 'diseur' de prosa e poesia. No âmbito cultural encontra-se, neste momento, a trabalhar com a companhia Teatro Nacional 21, na qualidade de dramaturgista. Colabora, igualmente, com o MPMP Património Musical Vivo e com a GLOSAS. O seu percurso académico passou por instituições como a Faculdade Direito da Universidade de Lisboa, o Instituto Italiano de Cultura e o Ar.Co, tendo concluído uma pós-graduação em Direito da Igualdade no Centro de Investigação de Direito Privado da Universidade de Lisboa.