Não fiques para trás ó companheiro
É de aço esta fúria que nos leva
Para não te perderes no nevoeiro
Segue os nossos corações na treva

Vozes ao alto
Vozes ao alto
Unidos como os dedos da mão
Havemos de chegar ao fim da estrada
Ao sol desta canção!

“Jornada”, José Gomes Ferreira
poema integrado no ciclo Canções Heróicas de Fernando Lopes-Graça


 

artigo originalmente publicado na revista

 

 


 

 

Nas últimas semanas tornou-se mediática uma luta que dura há muitos (demasiados) anos. Um vasto leque de adjectivos tem definido as condições do edifício da Escola de Música do Conservatório Nacional (EMCN). Desde deplorável, vergonhosa, inconcebível, gritante, calamitosa, triste, criminosa, e por aí fora – todas estas palavras juntas são pouco para descrever a realidade que é da exclusiva responsabilidade das sucessivas performances de «assobio para o lado», protagonizadas por responsáveis da tutela (ministros, secretários de estado, directores de vários organismos públicos) nos vários governos PS, PSD e CDS. São estes os responsáveis por toda esta história decadente de má qualidade!

A história é demasiado longa para ser aqui narrada; não obstante, o comunicado de Fevereiro de 2015, da Associação de Pais da EMCN, reúne alguns dos principais dados a partir de 2000. Já os factos estão à vista de qualquer um que arrisque passar pela Rua dos Caetanos, no Bairro Alto, em Lisboa. Para aqueles que não conhecem esta realidade de perto e queiram, por curiosidade, experienciar uma escola que funciona num edifício em ruínas, é bom que tomem algumas precauções. Basta a leitura do “Auto de Vistoria”, da Unidade de Coordenação Territorial da Câmara Municipal de Lisboa, com a data de 3 de Dezembro de 2014, para percebermos a gravidade da situação:

  1. A última «grande campanha de obras» no edifício onde a EMCN está instalada desde a década de 30 do século XIX data de 1942;
  2. A «queda de elementos metálicos e de madeiramentos para a via pública» é comum, bem como a «sujidade generalizada», o envelhecimento, a degradação, a «fissuração dispersa» e as «extensas áreas enegrecidas» das paredes exteriores e interiores;
  3. Verifica-se a «insegurança em relação ao risco de incêndio devido às infiltrações em contacto com a rede eléctrica que evidencia vetustez e elementos em falta»;
  4. «Os elementos estruturais que poderão oferecer maior risco são as paredes, por risco de queda de elementos de revestimento e por apresentarem fendilhações e (ou) deformações significativas, bem como outros elementos, nomeadamente os madeiramentos estruturais degradados, com anomalias resultantes de infiltrações prolongadas de águas, referindo-se os vigamentos nas zonas localizadas junto às fachadas (onde se observam as manchas de humidade no interior das salas), alguns vigamentos da estrutura da cobertura, dos tectos e dos pavimentos».

Ora, se por um lado podemos ver aqui, em toda a plenitude, o desrespeito dos membros dos sucessivos governos pelo ensino artístico em Portugal, por outro lado, o simbolismo de toda esta situação é demasiado evidente para não ser referido. Na minha opinião, o edifício da EMCN é talvez a melhor representação simbólica de todos os constrangimentos e condicionantes do campo artístico e cultural em Portugal.

Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, no livro O Capitalismo Estético na Era da Globalização (2014), afirmam que se pode «reconhecer nas artes o laboratório do mercado de trabalho tal como ele se desenvolve no neo-capitalismo desregulado. Com efeito, o que domina a organização dos ofícios da arte é o trabalho como free-lance, o emprego intermitente, a flexibilidade contratual […]. Multiplicam-se os empregos atípicos, os empregos a tempo parcial, temporários, trabalho independente: o momento é de individualização e de multiplicação das formas do salariado. Pierre-Michel Menger sublinha [em Portrait de l’artist en travailleur. Métamorphoses du capitalisme (2002)], justamente a ironia da nossa época na qual as artes, que durante muito tempo fizeram figura de realidade oposicional à hidra capitalista, aparecem hoje como vanguarda da hiperflexibilidade do mercado de trabalho» (Lipovetsky e Serroy, 2014: 72).

Ao analisar o estado do ensino artístico em Portugal, bem como das práticas culturais, verificamos exactamente este «laboratório do mercado de trabalho» tal como descrito. Ora, é urgente pensar e discutir estruturalmente todo o ensino artístico! É urgente deixarmos de tapar os olhos quando confrontados com professores de música que demoram 10, 15, 20 anos a se tornarem efectivos numa escola – há vários exemplos como este na própria EMCN. É urgente a solidariedade e luta por uma maior dignificação da grande maioria dos professores de música em todo o país que sobrevivem com salários de apenas nove meses, apenas pagos à hora – na verdade as entidades patronais reduzem a hora a 45 minutos –, ignorando todo o tempo de estudo, preparação das aulas, desgaste dos próprios instrumentos, deslocações entre escolas com o seu próprio carro sem direito a subsídios, entre muitas outras condicionantes. É fulcral fazer uma revisão de fundo ao enquadramento legal dos professores de música, de forma a que estes tenham condições para lutar pelos seus próprios direitos e confrontar – quando necessário – as entidades patronais, que não poucas vezes utilizam a chantagem e a necessidade dos próprios professores para não efectuarem os pagamentos de salários, muitas vezes por seis meses – aliás, como foi também tornado público recentemente.

Estas e muitas outras questões – sobre as quais é urgente reflectir criticamente e agir em colectivo de forma a encontrar soluções para a dignificação do campo artístico – assumem uma importância ainda maior ao reflectirmos sobre o seu impacto na própria classe profissional. Músicos e professores de música por todo o país encontram-se literalmente desamparados, pois devido a todas estas condicionantes que resultam do sistema capitalista não se pode dizer que exista um sentimento de pertença a uma comunidade, a uma classe profissional. Se nada for feito, o futuro dos alunos de hoje tenderá obrigatoriamente a ser ainda pior que o presente dos seus professores.

De notar ainda o silêncio embaraçoso do Sindicato dos Músicos, dos Profissionais do Espectáculo e do Audiovisual (CENA) a este respeito, quando se exigiria do mesmo uma participação activa e mobilizadora. A título de exemplo, um debate semelhante foi lançado na Alemanha em Novembro de 2014, com algum impacto nos média. Os professores de várias Musikhochschule (Escolas Superiores de Música) denunciaram precisamente estas situações contratuais que descrevi e receberam um grande apoio da comunidade musical e artística, bem como da sociedade civil – o apoio da violinista mundialmente reconhecida Anne-Sophie von Mutter teve um grande destaque, por exemplo.

Se é de aplaudir de pé a mobilização por parte da direcção, dos professores, dos pais e dos alunos da EMCN, não posso deixar de fazer três apelos para que este esforço mobilizador seja o início de uma luta que tarda em ser travada. O que se joga aqui não são simplesmente umas obras de recuperação de um edifício histórico ou o direito a condições dignas para o funcionamento de uma escola pública:

  1. Esta luta tem de ser o início de muitas outras lutas. Não deitemos fora a oportunidade criada pela mobilização que se tem verificado nas últimas semanas;
  2. É necessário o envolvimento de toda a comunidade musical e cultural – universidades, escolas superiores, outros conservatórios, escolas de música, instituições culturais e de promoção da cultura, associações de ensino e divulgação de cultura, sindicatos, etc. – porque esta luta tem de ser o início da luta pelo direito à cultura em Portugal, bem como pelo direito a condições dignas para os seus agentes – profissionais, académicos, alunos, pais, públicos;
  3. É urgente o envolvimento da sociedade civil. Tal como a mobilização verificada no apoio ao movimento ‘Não TAP os Olhos’, pela não privatização da TAP – apenas para citar o mais recente –, o apoio e a solidariedade de outros sectores de actividade e da sociedade em geral também tem de ser demonstrado neste caso. Na minha opinião, os públicos de arte têm aqui um papel fundamental. Ao fazerem parte de toda esta estrutura e ao integrarem o tecido social de produção de conteúdos e actividades artísticas têm de tomar necessariamente a parte dos próprios artistas e não daqueles que os querem constantemente humilhar e não dignificar.

Durante os abraços, as vigílias, os concertos de protesto e as manifestações, têm de ser lançadas as bases para as lutas que têm de ser travadas amanhã (e este amanhã é mesmo literal)! Não nos podemos esquecer de que as condições de trabalho e de ensino não são constituídas apenas por infra-estruturas. Mesmo que estas sejam renovadas, urge lutar pela dignidade de uma classe profissional que teima em não se afirmar enquanto tal. Com trabalho, empenho, mobilização e uma perspectiva mais alargada desta luta e das que se avizinham, estará a ser criada uma oportunidade histórica para a construção de um futuro melhor, mais justo e mais democrático. Resta-nos lutar e colocar todo o nosso empenho para que isso aconteça. Não deixemos escapar esta oportunidade!

Sobre o autor

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Sociólogo da música, encontra-se neste momento a desenvolver a sua tese de doutoramento no Institut für Musikwissencschaft, na Universität Leipzig, Alemanha, sobre a importância da 'Escola de Darmstadt' no panorama europeu de música contemporânea. Estudou guitarra na Academia de Amadores de Música de Lisboa, e musicologia (licenciatura e mestrado) na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. É Investigador do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical, integrando neste contexto o NEGEM, Núcleo de Estudos de Género e Música; o SociMus, Group for Advanced Studies on Sociology of Music; e a Linha de Teoria Crítica e Comunicação. Foi também Presidente da Direcção da Sociedade Portuguesa de Investigação em Música entre 2013 e 2015.