Manuel Cardoso nasceu em Fronteira, possivelmente no segundo semestre do ano de 1566, uma vez que foi baptizado a 11 de Dezembro desse ano na Igreja Matriz desta povoação alentejana. Os detalhes biográficos de Manuel Cardoso foram-nos transmitidos pelo cronista da Ordem do Carmo, Fr. Manuel de Sá, que, em 1724, publicou as Memorias historicas… da Ordem de Nossa Senhora do Carmo, dedicando três páginas ao compositor alentejano.

De acordo com Fr. Manuel de Sá, Manuel Cardoso foi enviado para Évora com o propósito de estudar “gramática e a arte da música”, muito possivelmente no Colégio dos Moços do Coro afecto à Catedral. Cardoso tomou hábito no Convento do Carmo de Lisboa em 1 de Julho de 1588, tendo professado no dito convento a 5 de Julho do ano seguinte, aos 23 anos de idade. O cronista da Ordem do Carmo enalteceu as qualidades de Cardoso durante os anos que permaneceu no Convento do Carmo. Para além de o considerar “hum dos mayores, e mais insignes compositores, que houve naõ só neste Reyno, mas em toda a Europa”, também lhe enumerou as virtudes, afirmando que “no comer foy muyto parco, na modestia singular, na guarda do silencio vigilantissimo, nos votos essenciaes observantissimo, na probreza taõ pontual, que nunca teve cousa propria”.

Sobre a música de Cardoso, Peter Philips (director do grupo vocal de música antiga The Tallis Scholars) afirmou nas notas ao CD dedicado a este compositor que, entre outros compositores portugueses, “foi Cardoso quem combinou o antigo e o moderno com maior sucesso, produzindo o seu próprio estilo com um alto carácter” emocional. Manuel Cardoso foi um dos compositores portugueses que mais música viram ser impressa. Ao todo, foram impressos cinco volumes de polifonia vocal sacra na oficina Craesbeeck ao longo de um período de quarenta anos. Estes volumes incluem um livro de Magnificat (1613), três livros de missas (um em 1625 e dois em 1636) e uma colecção de motetes, lamentações e outros géneros (1648).

hum dos mayores, e mais insignes compositores, que houve naõ só neste Reyno, mas em toda a Europa

O motete Mulier quae erat foi publicado numa colecção de música que também inclui, para além de outros motetes, uma miscelânea de outros géneros (como Missas, Lamentações, Responsórios, Hinos, Lições entre outras obras de menor dimensão). O denominado Livro de varios motetes… e outras cousas foi impresso em Lisboa, no ano de 1648, por Lourenço Craesbeeck. Esta obra pertence a um grupo de motetes para cinco vozes com a inclusão de um segundo Altus ao quarteto de vozes usual (SATB). Apesar de não possuir uma indicação directa quanto ao seu uso litúrgico, este motete encontra-se entre o grupo de obras destinadas aos últimos domingos da Quaresma. Outros compositores, como Estêvão de Brito ou Estêvão Lopes Morago, também escreveram motetes para os domingos do Advento e Quaresma. Tal como os motetes para os domingos, também este utiliza uma passagem textual proveniente dos Evangelhos (neste caso Lucas 7:37-38).

O texto do motete encontra-se dividido em cinco segmentos:

  1. Mulier quae erat in civitate peccatrix
  2. stans retro secus pedes Domini
  3. lacrymis cepit rigari pedes ejus
  4. et capillis capitis sui tergebat
  5. et osculabatur pedes ejus et unguento ungebat.

O início é algo ambíguo em termos do estabelecimento de uma “tonalidade”. As vozes iniciam o ponto de imitação, baseado no motivo musical associado ao texto “mulier” e “quae erat”, com entradas sucessivas das vozes (Tenor, Superius, Altus 1, Altus 2 e Bassus respectivamente) à distância de um intervalo de oitava ou de quinta. Um segundo motivo aparece associado ao texto “in civitate peccatrix”. Este é o segmento mais extenso do motete, junto com o quinto, não só por conterem mais texto, mas também devido a serem os segmentos exteriores da obra.

A música de Cardoso é também conhecida como possuindo características emotivas muito fortes. Os motetes, pelas suas características, são géneros propícios a momentos de word-painting, expressão herdada da análise de madrigais e chansons, que encaixa perfeitamente em Mulier quae erat. Determinadas passagens do texto ou palavras, como “peccatrix” ou “lacrymis”, são enfatizadas através de um controlo da dissonância comum no contraponto (retardo e notas de passagem) e algo característico na música de Cardoso, referido em termos analíticos como inflexão cromática. No último ponto de imitação, o motivo associado ao texto “et osculabatur pedes ejus” é desenvolvido por Cardoso, como aparece regularmente em outras obras, através da sua inversão.

O vídeo que acompanha este artigo foi gravado pelo Grupo Vocal Olisipo no passado dia 6 de Novembro, no concerto intitulado Vocem Flentium – A voz do pranto. Este concerto, realizado na igreja do mosteiro de Santos-o-Novo, integrou a 28.ª edição da temporada “Música em S. Roque”, organizada pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. A música de Manuel Cardoso tem constituído um elemento central nos programas do Grupo Vocal Olisipo, contando mais de trinta anos de actividade, que dedicou um CD a este compositor (partilhado com os responsórios de Sexta-Feira Santa de Francisco Martins), mais concretamente à Missa pro Defunctis a quatro vozes que, tal como o motete Mulier quae erat, também se encontra no Livro de varios motetes.

Sobre o autor

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Musicólogo açoriano, doutorando na Universidade de Évora, é mestre em Ciências Musicais (FCSH NOVA) e licenciado em Música (UÉvora). É investigador em formação no CESEM e membro do MPMP. Catalogou o arquivo musical da Sé de Angra, foi bolseiro no projeto ORFEUS e também investigador no projeto PASEV. Fundou e dirigiu o Ensemble da Sé de Angra e também o Ensemble Eborensis, com concertos nas ilhas dos Açores, Continente português e França. Os seus interesses de investigação centram-se na polifonia portuguesa seiscentista, especialmente no Alentejo, e a música nos Açores do século XV ao final do XIX.

Uma resposta

  1. Vic

    The sound is breathtaking, the voices perfectly blended with the exceptional sopranos soaring above the other voices. Whilst the requiem is the major work on the CD, the motets and magnificat are superb works in their own right.