No passado dia 17 de Janeiro, a Glosas esteve presente na última récita de Pépito, no Teatro Ibérico, em Lisboa. Trata-se de um opéra comique em um acto, com música de Jacques Offenbach e libreto de Jules Moinaux e Léon Battu, cuja estreia absoluta aconteceu no Théâtre des Variétés de Paris, em 28 de outubro de 1853.

O enredo tem lugar na vila basca de Elisondo e desenvolve-se pela acção de três personagens: Manuelita, dona da estalagem “Na Esperance”; Vertigo, factotum e dono da estalagem “No Crocodilo”; e Miguel, amigo dos dois, regressado a Elisondo depois de uma temporada de estudos em Madrid. Manuelita namora com Pépito, que está há algum tempo ausente, a cumprir o serviço militar em Cádis. Também por este motivo, a jovem resiste às investidas de Vertigo, que via no desfecho amoroso entre ambos uma forma de concretizar a fusão entre as duas estalagens num só negócio. Quando Miguel chega a Elisondo, acaba por também se apaixonar por Manuelita, julgando-se em vantagem face a Vertigo pelas capacidades de sedução que crê ter adquirido durante a estada na capital. Num almoço entre os três amigos, leva Vertigo a embebedar-se, com o fito de desimpedir o caminho para conquistar Manuelita. A tarefa afigurou-se mais difícil do que previa, já que a rapariga não estava disposta a ceder ao ímpeto de Miguel em virtude do seu compromisso com o Pépito. Mais tarde, Vertigo, agora cumprindo outra das suas funções, desta feita como carteiro, entrega uma carta de Pépito a Miguel. Mantinham correspondência havia já algum tempo, e o soldado informa-o que se casou com uma das cantineiras do seu regimento. Numa altura em que, perante as recusas de Manuelita, Miguel já tinha desistido de a conquistar, a jovem muda de ideias quando surpreendida pelo casamento de Pépito. Toda a gente acaba contente, inclusive Vertigo que, frustrado o projecto de união com Manuelita, poderá ainda assim tocar o seu serpentão no casamento da amiga com Miguel.

As sessões do Teatro Ibérico contaram com a encenação de Laureano Carreira, direcção musical e acompanhamento ao piano por Armando Vidal e interpretações da soprano Leonor Robert (Manuelita), do barítono Calebe Barros (Vertigo) e do tenor António Geraldo (Miguel). Os modestos meios de produção incluíram a substituição da orquestra pelo piano, mas também a redução dos cenários e figurinos ao indispensável. Se, por um lado, a simplicidade da trama não exige grande sofisticação cenográfica, a impossibilidade de contar com uma orquestra acarretou, entre outros aspectos, a perda de pormenores sonoros importantes no realce de ambientes e jogos de significado a cuja criação são indispensáveis os contrastes tímbricos entre vários instrumentos. Não obstante, esta récita pautou-se pelo equilíbrio entre o piano, os dois cantores e a cantora. A realçar a juventude das vozes, sempre afinadas e expressivas, que foi empaticamente compensada pela elegância e contenção do maestro Vidal. O resultado final foi um espectáculo despretensioso e digno.

Embora os diálogos declamados tenham sido traduzidos, os números musicais foram mantidos no francês original (com projecção de legendagem em português). Compreendo que a tradução do texto e sua acomodação à música possa levantar vários problemas. Todavia, muita da eficácia dramatúrgica deste tipo de repertório se deve precisamente à forma como o texto é compreendido pelo público. Arrisco dizer que, hoje em dia, já poucas pessoas dominam a língua francesa, pelo que seria enriquecedor recuperar o hábito da tradução integral do repertório de opereta e ópera cómica, aliás à semelhança do que se fez em Portugal durante toda a segunda metade do século XIX, quando a popularidade destes géneros musico-teatrais atingiu o seu auge no país.

Laureano Carreira apresentou-nos uma leitura literal da obra, através de uma encenação, vestuário e cenografia coerentes com a idealização de uma pequena povoação espanhola, provavelmente de entre meados do século XIX e os primeiros anos do século XX. O palco dividiu-se em quatro zonas fundamentais. À direita e à esquerda duas instalações, cada uma com uma porta e uma janela protegidas por panos de correr, que representavam as estalagens de Vertigo e Manuelita. Ao centro, uma mesa de refeições. Ao fundo, um espaço de entrada e saída de personagens.

 

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Importa ressalvar que a reflexão acerca do desempenho do elenco, composto por intérpretes em início de carreira, tem de levar em consideração o depauperamento a que as instituições culturais do nosso país têm sido sujeitas, a redução generalizada de possibilidades de emprego e, por conseguinte, de oportunidades de aprendizagem, e a indefinição do estatuto laboral e regime de segurança social dos artistas portugueses. Tudo isto tem implicações directas sobre o seu trabalho e nunca é demais reafirmá-lo. É forçoso fazê-lo! Dito isto, começo por referir que as opções dramatúrgicas suscitaram-me algumas reflexões. Por si só, o libreto de Pépito contém uma descrição misógina do lugar da mulher na sociedade (aliás, à semelhança do que se passa na larga maioria do repertório oitocentista para teatro musical, quer de ópera, quer de opereta, quer de ópera cómica). Vertigo e Miguel vêem Manuelita como prémio da competição entre ambos. Tal objectificação é clara nos termos em que se referem à rapariga: “Olha para ela. Que coisa tão boa!” (Vertigo) ou “Uma miúda destas para um pateta daqueles” (Miguel). Note-se que o libreto aponta para que a acção da estalajadeira de Elisondo seja sempre entendida como consequente da de um homem: vive em função do seu compromisso com Pépito, apesar da ausência de notícias; por causa disso recusa namorar com Miguel; e só no último número musical, quando este lhe revela a carta onde Pépito contava ter-se casado com outra mulher, é que decide aceitá-lo. É a rapidez com que Manuelita muda de opinião que me leva a questionar a leitura apresentada no Teatro Ibérico, sobretudo porque, a meu ver, esse momento dá origem a um desequilíbrio na construção da personagem. Isto é, se permanecermos absolutamente fiéis ao texto, Manuelita é intransigente no seu compromisso com Pépito, rejeitando outros relacionamentos amorosos, apesar do namorado estar ausente e sem dar notícias. Foi uma perspectiva puritana da personagem a defendida pela interpretação de Leonor Robert, guiada por Laureano Carreira.

Mas não esqueçamos que a acutilância e popularidade do teatro de Offenbach se deve precisamente ao espaço que abre à criação de ambiguidades. No caso do texto de Pépito, haveria margem para que a personagem de Manuelita se adensasse, nomeadamente através da expressão mais afirmativa do seu desejo, da sua curiosidade face a outras pessoas, da sua sensualidade, e isto apesar de publicamente manter o vínculo ao noivo ausente. Isto teria sido importante para uma produção que, pelo contrário, me pareceu algo maniqueísta. Por exemplo, na cena VIII, o libreto indica que Miguel agarre Manuelita pela cintura para a obrigar a ceder. Assim fez o tenor António Geraldo. A reacção espelhada pela interpretação de Leonor Robert, tentando libertar Manuelita dos braços de Miguel, deu origem a um contraste que a meu ver resultou desproporcionado.

Dir-se-á que, enquanto homem, estarei também a expressar uma reificação patriarcal do universo feminino. Mas o que quero chamar à colação é precisamente a projecção de imagens da mulher como isenta de desejo e vontade própria, da mulher como incapaz de disputar o poder com o homem, inclusive o poder de seduzir e deixar-se seduzir. Tenho dúvidas que, quando da estreia absoluta da obra, a dramaturgia não tenha sido mais matizada. A produção «offenbachiana» vivia da criação de pontes com a realidade quotidiana, não só através dos temas abordados mas também das técnicas aplicadas. Não é por acaso que encontramos vários momentos de diálogo estabelecido pelas suas personagens directamente com o público, projectando a acção para lá do palco. Justiça seja feita: Laureano Carreira soube, por exemplo, valorizar a chegada de Miguel, fazendo-o entrar em palco (portanto, em Elisondo) vindo não dos bastidores mas da plateia. No plano simbólico, o público foi assim transformado na cidade de onde vinha o rapaz.

E a «cidade» é um conceito fulcral na construção do significado no teatro de comédia musical dita ligeira. É a esse ponto de vista que muitas das obras que compõem este repertório apelam: o lugar da pessoa na urbe, no mundo. É por isso que me parece importante questionar se a tão apregoada fidelidade ao texto faz neste caso (ou em qualquer outro) sentido. No caso da última récita de Pépito no Teatro Ibérico, isso terá dado azo a desequilíbrios na composição de uma das personagens centrais. Por outro lado (e eventualmente mais relevante), seguiu-se a hegemónica tradição de representar e, por conseguinte, reforçar uma posição subalternizada da mulher na cidade, enfim, na sociedade em que vivemos.

Sobre o autor

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Mestre em Ciências Musicais pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é actualmente bolseiro do Programa Doutoral "Música como Cultura e Cognição" da mesma instituição. Os seus interesses de investigação centram-se no espectáculo músico-teatral, nos géneros de comédia musical, e nas respe​c​tivas redes nas sociedades portuguesa e brasileira da segunda metade do séc. XIX às primeiras décadas do séc. XX. É colaborador da Linha de Investigação "Música no período moderno" do CESEM - Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical, integrando o projecto "'Teatro para Rir': a comédia musical em teatros de língua portuguesa (1849-1900)", o SociMus - Advanced Studies in the Sociology of Music e o NEMI - Núcleo de Estudos em Música na Imprensa. Foi Secretário da Direcção da SPIM, Sociedade Portuguesa de Investigação em Música, entre 2013 e 2015. É também coordenador do Coro Académico Romanos Melodos.

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