Uma transformação radical (e ainda inconclusiva)
Ouvir música é um dos fenómenos culturais que mais se transformou nas últimas décadas graças ao advento da Internet e, em especial do streaming. A capacidade de, “à distância de um clique”, aceder a uma discoteca “infinita”, a qualquer momento do dia, através de qualquer dispositivo electrónico que se encontre à nossa mão (uma TV, um smartphone, um iPad, um computador…), remeteu a tecnologia dos discos compactos para a extinção. Neste processo, o novo fôlego dos vinis é bem um sintoma de que só pelo aspecto ritualístico e pelo charme do objecto-arte se conseguirá, e ainda assim em contexto de nicho, contrariar a inconteste vitória de plataformas como o Spotify.
Mas nem tudo são rosas. O streaming libertou o mundo de toneladas de plástico, mas o seu impacto ecológico acaba, por outras vias, por ser potencialmente maior;1 e, depois, o mercado é extremamente competitivo, com inúmeras plataformas a disputar o mesmo espaço sem que alguma delas consiga revelar uma clara vantagem diferencial: por isso, apesar de o Spotify ser a maior delas, o seu futuro permanece sombrio em face de constantemente duvidosos indicadores financeiros.2
 
 
A melhor notícia: o streaming diluíu a pirataria?
Como observou Mariana Freixo Nunes,3 o volume de vendas da indústria da música começou a diminuir na década de 1990, graças sobretudo ao aumento de pirataria através da Internet; os artistas e as editoras iniciaram batalhas legais e investiram em campanhas de sensibilização para explicar o valor da propriedade intelectual; hoje, os tempos são claramente de mudança: em 2016, o revenue de música gravada cresceu 14%, o maior aumento desde 1998, e, nesse crescimento, o streaming ultrapassou os formatos tradicionais.
Para o tema aqui em observação, entre as conclusões mais interessantes a que a investigadora chegou contam-se a de que, com efeito, o streaming fez perder espaço à pirataria, e a de que, face a um serviço de streaming gratuito, os utilizadores que responderam ao seu inquérito estariam dispostos a pagar, em média, um extra de € 6,99 por uma plataforma sem publicidade. Destaque-se que este valor varia entre os € 4,95 para estudantes até aos 18 anos, e os € 17,30 para estudantes entre os 24 e os 34 anos. Estes números são particularmente intrigantes quando emparelhados com a actual tabela de preços do Spotify, que oferece subscrição, em Portugal, de € 3,49 para estudantes € 6,99 para não estudantes.4
Estará o Spotify, deliberadamente, a “perder dinheiro”? Pretenderá assim cativar o maior número possível de utilizadores? Certo é que o preçário do Spotify é altamente variável em função da região de que é proveniente o utilizador: se na Índia começa em $ 1,58, na Dinamarca chega aos $ 14,39.5 Naturalmente, a empresa procura responder ao poder de compra do utilizador mediano de cada país, mas será que não está a nivelar-se por baixo – ou, se quisermos, a basear a sua política de preços numa competição com a gratuitidade da pirataria?
Parece tratar-se, nesta perspectiva, de uma lógica de value based pricing que tabela “por baixo” de forma indiferenciada (excepto inter-regionalmente) e massificada, e que leva em conta não o valor da música em si mas do serviço de streaming, sujeito este a uma percepção altamente contaminada pelo fenómeno ainda recente da pirataria. Poderão as plataformas de streaming subir os preços à medida que mais utilizadores se “sensibilizem pela causa” e (ou) a gratuitidade absoluta que a pirataria potenciava se desvaneça na memória da geração que experimentou a Internet dos anos 1990?…
 
 
Desagrado inconsequente?
Podemos argumentar que o facto de as plataformas de streaming terem contribuído para o decréscimo da pirataria foi uma boa notícia para os artistas. Mas se este pricing aparentemente dependente do imaginário da música gratuita poderá parecer justo para o consumidor, sê-lo-á para o “criativo”?
A questão tem levantado muita discussão, e há muitos artistas – inclusivamente alguns dos que mais volume de streams e downloads atingem – que se têm insurgido contra as margens medíocres que tais plataformas oferecem aos criadores. No ano passado este mal-estar ganhou grande amplitude em virtude de uma ideia anunciada pelo Spotify com um timing assaz infeliz: em plena pandemia, num momento histórico e global em que a Covid-19 afectou a dinâmica dos concertos ao vivo, cancelando milhares de concertos por todo o mundo, a empresa sugeriu que os artistas vissem reduzidos os seus royalties contra a possibilidade de o algoritmo oferecer-lhes mais visibilidade…6
Em 2019, no Reino Unido, um inquérito empreendido pela The Ivors Academy e pela Musicians’ Union mostrou que 82% dos participantes havia recebido menos de £200 como rendimento provindo de plataformas de streaming; para 92%, esse valor representava menos de 5% dos seus rendimentos totais; 50% considerava ter perdido rendimento de música gravada nos últimos dez anos; 43% adiantou que os baixos rendimentos fizeram com que procurassem trabalho fora da área. O desagrado culminou numa petição endereçada ao governo com 17 000 assinaturas e, ultimamente, com uma investigação a decorrer, especula-se sobre se o Spotify não será mesmo forçado, em virtude de nova legislação, a rever a sua política de royalties.
Segundo Graham Davies, CEO da The Ivors Academy, “This survey is further demonstration that the song and the songwriter are undervalued. Too much streaming money is going to the major labels, this is an outdated model and needs reform”.7 E há, para além de reclamações relativas ao magro revenue geral, aquelas que se reportam à forma de distribuir o lucro pelos artistas. Neste quesito merece destaque, pela positiva, a estratégia do Deezer, uma plataforma concorrente do Spotify, ao optar por um user centric payment system: os artistas deixam de ser remunerados pelo número global de streams a partir do total de subscrições arrecadadas, são-no pelo número particular de streams em função de cada subscrição particular (ver imagens seguintes para uma melhor compreensão desta diferença distributiva).
 
 
 
 
Em cima: o sistema de distribuição tradicional em praticamente todas as plataformas de streaming.
Em baixo: o User Centric Payment System proposto pelo Deezer (ver https://www.deezer.com/ucps,consulta a 14/02/2021).
 
 
 
 
O streaming é o futuro, mas a que preço?
Como concluiu Jodi Beggs, “a good pricing strategy is critical for any industry, from automobiles to music. Even though economists and psychologists have plenty to say about prices beyond Economics 101, it is unfortunate that there is as yet no blueprint for recording artists. Also, a proper discussion and understanding of the tradeoffs involved between low and high priced alternatives is missing”.8
E, na falta desta reflexão mais profunda, Beggs avança com algumas ideias exploratórias que mereceriam, de facto, investigação, propondo que pode dar-se o caso de os preços baixos com que se vende música gravada estejam, inadvertidamente, por razões várias, a baixar a percepção de qualidade (e, logo, a baixar o volume de vendas) de determinada música, a baixar até o nível de envolvimento do ouvinte com o produto adquirido e, naturalmente, a condicionar o consumidor a não pagar aos artistas o que eles considerariam um preço “justo” pelo trabalho realizado.
Acrescento que o referido peso da gratuitidade do fenómeno da pirataria pode estar a impactar negativamente as gerações que a experimentaram, como factor de inércia motivacional. Veremos o que nos reserva o futuro, mas diria ser urgente discutirmos já de que maneira pode o preço da música melhor ajustar-se às necessidades dos artistas, à dignificação da música e à disponibilidade dos ouvintes. Em particular, valeria a pena reflectir sobre a proposta de um value based pricing que tivesse como princípio valorativo não o serviço mas a música, tal como de certa forma recentemente sugeriram Tobey Ko e Henry Lau: “an alternative pricing scheme for the digital music market, where the musician’s differentiated characteristics such as fame, popularity, and listener share […] is incorporated into the pricing decision by the record label […]. We argue that in the co-existence of free music streaming, the retail price of a musical product should be allowed to vary in a manner that reflects the differences in market environment and the musician’s characteristics”.9
 
 
1 Maeve Campbell, “Is our addiction to Spotify ruining the planet? The environmental cost of streaming is invisible”,Euronews (16/03/2020), https://www.euronews.com/living/2020/03/16/is-our-addiction-to-spotify-ruining-the-planet-theenvironmental-cost-of-streaming-is-invi .
2 David Trainer, “It Sounds Like Spotify Is In Trouble”, Forbes (13/10/2020), https://www.forbes.com/sites/greatspeculations/2020/10/13/it-sounds-like-spotify-is-in-trouble/?sh=4c7bf77c813b .
3 Mariana Freixo Nunes, On-Demand Music Streaming and Its Effects on Music Piracy (Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2018).
4 www.spotify.com (consulta a 13/02/2021).
5 Jason Heffler, “Spotify premium prices differ around the world – here are the countries paying the most and least”, EDM (27/07/2020), https://edm.com/industry/spotify-premium-prices-by-country.
6 Nastia Voynovskaya, “A Pandemic Is Not the Time for Spotify to Undercut Artist Pay”, KQED (09/11/2020), https://www.kqed.org/arts/13888879/a-pandemic-is-not-the-time-for-spotify-to-undercut-artist-pay .
7 “8 out of 10 music creators earn less than £200 a year from streaming”, The Ivors Academy (07/12/2020), https://ivorsacademy.com/news/8-out-of-10-music-creators-earn-less-than-200-a-year-from-streaming-finds-survey-ahead-of-songwriters-and-artists-giving-evidence-to-a-select-committee-of-mps/ ; Murray Stassen, “Is Spotify in for a rough ride from UK politicians?”, Music Business (15/01/2020), https://www.musicbusinessworldwide.com/is-spotify-in-for-rough-ride-from-the-uk-government/.
8 Jodi Beggs, “Pricing Music”, Music Business Journal, http://www.thembj.org/2012/05/starbucks-or-pennies-a-musicians-dilemma-2/ (consulta a 14/02/2021).
9 Tobey Ko e Henry Lau, “A Brand Premium Pricing Model for Digital Music Market”, International Journal of Trade, Economics and Finance 6/2 (04/2015), http://www.ijtef.org/vol6/454-BE00009.pdf .