A pergunta pode soar esdrúxula, mas torna-se perfeitamente plausível depois de se assistir ao espetáculo Vortex Temporum, concebido e dirigido por Anne Teresa de Keersmaeker com os grupos Rosas e Ictus. Realizado nos dias 29 e 30 de setembro na Culturgest, em Lisboa, o espetáculo de dança é baseado na obra homônima do grande compositor francês prematuramente falecido Gérard Grisey.

Vortex Temporum (1996) é uma obra de maturidade de Grisey, resultado de suas profundas pesquisas sobre a música espectral, estética da qual frequentemente é considerado um dos precursores.

Embora muito ignorada e por vezes até inibida, a gestualidade é parte fundamental na performance musical. Desde o ágil toque nas chaves de um clarinete até os gestos mais exagerados de um maestro conduzindo uma obra grandiosa, toda a performance musical gera – e é gerada por – movimento. É a partir da observação dos movimentos dos instrumentistas que Anne Teresa de Keersmaeker cria a dança sobre a música de Grisey. De acordo com a coreógrafa, ela e o grupo Rosas dedicaram bastante tempo à observação dos músicos do grupo Ictus a tocar, em busca da dança que emerge da música[1]. Este minucioso trabalho de observação pode ser constatado na transformação de ações como a arcada do violoncelista e o toque percutido do pianista, em reações corporais a partir das quais os bailarinos desenvolvem suas potencialidades ao extremo do físico: música que se torna gesto.

Este, certamente, não é um procedimento novo, e na área musical foi uma técnica amplamente desenvolvida por compositores como Mauricio Kagel, Georges Aperghis e Gilberto Mendes, que muitas vezes extraíam da gestualidade dos instrumentistas o material para suas composições. De acordo com Gilberto Mendes, importante compositor brasileiro e um dos principais nomes na área da música-teatro (ou teatro-musical, como preferem alguns estudiosos), sua obra desta natureza “é algo que decorre da exploração do que há de performance visual, teatral, na própria execução da música”, e que pode chegar “a extremos de cortar a própria música”[2].

É particularmente interessante observar como o processo adotado por De Keersmaeker é semelhante a este pensamento composicional de Mendes. A primeira parte da obra é apenas tocada pelos músicos do Ictus, sendo na sequência substituídos pelos dançarinos, cada qual representando um instrumentista. A partir de então, eles passam a dançar. Não apenas dançar a música, mas antes dançar o instrumentista, dançar o instrumento. Dança visceral que se transforma em música e, por fim, transforma-se em sua própria saturação.

Mas da própria música também surgem inspirações para a dança. A sensação vertiginosa magistralmente construída por Grisey é realizada visualmente através de movimentos espirais que transformam o palco em um grande furacão, do qual nenhum elemento está imune, nem mesmo o piano em toda sua densidade. Acontece que, com a ajuda do maestro, o instrumento é conduzido em longas espirais a atravessar todo o palco, tornando-se o principal bailarino, até mesmo com a iluminação a acompanhar. Diante de nossos olhos, um piano a dançar em amplos movimentos de rotação e translação, com a ainda brilhante atuação do pianista sendo conduzido pelo instrumento…

Vortex Temporum é um espetáculo que desafia nossa ainda compartimentada visão sobre arte. Coloca-nos em posição desconfortável perante aquilo que julgamos saber. Tira-nos o chão e, com isso, permite-nos voar. Em vórtices… No tempo…


 

 

Ficha técnica

Coreografia: Anne Teresa De Keersmaeker; Criado com e dançado por: Boštjan Antončič, Carlos Garbin, Maria Goudot, Cynthia Loemij, Julien Monty, Michaël Pomero, Mark Lorimer; Música: Vortex Temporum, Gérard Grisey (1996); Direção musical: Georges-Elie Octors; Músicos Ictus: Jean-Luc Plouvier (piano), Michael Schmid (flauta), Dirk Descheemaeker (clarinete), Igor Semenoff (violino), Jeroen Robbrecht (viola), Geert De Bièvre (violoncelo); Desenho de luz: Anne Teresa De Keersmaeker, Luc Schaltin; Aconselhamento artístico para a luz: Michael François; Figurinos: Anne-Catherine Kunz (com assistência de Valérie De Waele); Dramaturgia musical: Bojana Cvejić; Assistente artística: Femke Gyselinck; Coordenação artística e planeamento: Anne Van Aerschot; Diretor técnico: Joris Erven; Som: Alexandre Fostier; Guarda-roupa: Valérie De Waele; Costureiras: Maria Eva Rodriguez, Tatjana Vilkitskaia; Técnicos: Michael Smets, Clive Mitchell; Produção: Rosas; Coprodução: De Munt / La Monnaie (Bruxelas), Ruhrtriennale, Les Théâtres de la Ville de Luxembourg, Théâtre de la Ville (Paris), Sadler’s Wells (Londres), Opéra de Lille, ImpulsTanz (Viena), Holland Festival (Amesterdão), Concertgebouw Brugge (Bruges); Estreia mundial: 3 de outubro de 2013, Ruhrtriennale; Agradecimentos especiais: Thierry Bae, Jean-Paul Van Bendegem.

 


 

[1] Anna Teresa de Keersmaeker, entrevista por Bojana Cvejić, Monnaie Munt Magazine, Maio 7, 2013.

[2] A Odisseia Musical de Gilberto Mendes, dirigido por Carlos de Moura Ribeiro Mendes (2006; Brasil: Berço Esplêndido Produções, 2006), DVD.

Sobre o autor

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Fernando Magre é doutorando em Música pela Universidade Estadual de Campinas, Mestre em Música pela Universidade de São Paulo (2017), Especialista em Regência Coral (2015) e Licenciado em Música (2013) pela Universidade Estadual de Londrina. Desenvolve pesquisa sobre a obra de música-teatro do compositor brasileiro Gilberto Mendes. É colaborador do CESEM – Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (Lisboa), onde realizou parte da pesquisa de Mestrado entre 2016 e 2017, sob supervisão da Prof. Doutora Maria João Serrão. Como musicólogo, tem participado de conferências no Brasil e no estrangeiro, com destaque para as conferências do RIdIM de 2015 (Columbus) e 2016 (São Petersburgo), Conferência Essence and Context (Vilnius) em 2016 e EIMAD – Encontro de Investigação em Música, Artes e Design (Castelo Branco), em 2017.