A imprensa como fonte para a história da interpretação musical consiste numa compilação de estudos, publicada em 2021, cuja edição ficou a cargo da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) e do INET-md, Centro de Estudos em Música e Dança (Universidade NOVA). Este livro conta com uma produção bilíngue, em português e em castelhano, sendo resultado de uma seleção de comunicações inseridas no congresso internacional homónimo, cuja quinta edição decorreu, em 2017, na BNP. Além do grupo de investigação que usualmente dinamiza este congresso, o “Música y Prensa” da SEDEM, Sociedade Espanhola de Musicologia, também o de “Estudos Históricos e Culturais em Música” do INET-md participou nesta organização. Note-se, no entanto, que a obra conta também com colaborações externas, oriundas de projetos como o “La Música como Interpretácion em España: História y Recepción”, associado à Universidad de La Rioja, e o “PROFMUS”, este associado à NOVA.
Como indicado pelo título deste volume, coordenado por Cristina Fernandes e Miguel Ángel Aguilar Rancel, os objetivos centrais prendem-se na utilização da imprensa escrita como fonte primária e recurso fundamental para variados estudos musicológicos. Tal surge da perceção da imprensa como importante veículo de informação sobre a vida musical em âmbitos cronológicos e geográficos distintos, já que se esta é muito relevante para a análise da comunicação musical das grandes cidades, é também particularmente reveladora nos núcleos de menor dimensão, na falta de outras informações. Por sua vez, difunde-se também a compreensão da imprensa como elemento-chave nas análises sociais e culturais das diferentes práticas musicais, mesmo que a pouca incidência contemporânea não deixe tão clara esta intrincada ligação de outrora.
O conteúdo do livro encontra-se divido num total de treze artigos, riquíssimos a nível visual, já que a obra conta com inúmeros elementos gráficos, reveladores de anúncios, programas de concertos, mas também de caricaturas e partituras, recortes que, mesmo à margem da crítica ou da notícia de música, apresentam elementos valiosos para os mais diversos estudos musicológicos. A obra encontra-se também ela pensada consoante os três papéis da imprensa: a exposição objetiva da vida musical; o relato mediado da receção do objeto musical, assente num quadro de valores e expetativas transversais a esses processos; e o perfil crítico do autor. Desta forma, marca-se um enfoque privilegiado do século XIX e das primeiras décadas do século XX, dada a maior variedade periódica desse material, pelo que as temáticas dominantes são a figura do virtuoso, o músico como celebridade, as relações entre profissionais e diletantes, o corpo do intérprete e as questões de género, entre outras.
Com efeito, a obra é iniciada pela secção virtuosística, mediante um artigo de Luísa Cymbron, que se centra no entendimento do violino no espaço atlântico ao longo do século XIX; a par de um outro estudo de Luís Santos, que se circunscreve a Lisboa e redireciona o seu foco para os diretores de orquestra. Segue-se o enquadramento da mulher na imprensa e interpretação musical, seja na Gazeta Musical de Josephine Amann, também ela instrumentista e maestrina, artigo elaborado por Maria José Artiaga; seja na vida musical parisiense, mais precisamente nas críticas de Joaquín Turina, repletas de ideias feministas e toques de humor, tratadas por María Palacios. Relativamente ao binómio profissionais-amadores, Carolina Gutiérrez evoca a figura de Marcial del Adalid, compositor espanhol de práticas musicais, discursivas e ideológicas muito próprias, seguindo-se cenários do Sexénio Revolucionário espanhol, período entre o triunfo da Revolução de Setembro de 1868 até ao iniciar da Restauração Borbónica, em dezembro de 1874, trabalhado por María Hilillo. Antes da secção dedicada à música antiga, elaborada pelos dois coordenadores do volume, em conjunto com Pompeyo Díaz, os quais partiram do Quartetto Vocale Romano e da Schola Cantorum, Jorge Costa brinda-nos com folhetins de oitocentos, através dos quais revive o ambiente musical lírico portuense. Já no penúltimo capítulo, surge um escrutinar relevante dos perfis críticos de Santiago Kastner, nome incontestável da crítica lisboeta dos anos quarenta, e de Ramón de Arana, mais conhecido como “Pizzicato”, já num cenário galego. Os estudos são da autoria de Sonia Delgado e Javier Montabes, respetivamente. Por fim, é apresentado ao leitor uma reflexão sobre a caricatura de imprensa em Portugal, tema que me suscitou particular interesse, sendo o foco de Maria João Albuquerque a segunda metade do século XIX; seguida de um outra breve investigação sobre o Cancioneiro da Fundação Biblioteca Nacional carioca, assinada por Alberto Pacheco.
Apesar da limitação temporal e espacial, não antecipadas pelo título da compilação, este é um volume de grande interesse, uma vez que permite conhecer um pouco mais da ligação entre os variados recortes de imprensa e a história da interpretação musical, sempre de forma coesa e fluída. Ficam ausentes algumas problemáticas, naturalmente, dada a finitude do volume, embora o considere eficazmente concentrado. A imprensa como fonte para a história da interpretação musical constitui um passo relevante para o meio musicológico nacional, mas também ibérico, apresentando-se como ferramenta muito útil, com inteligentes e pontuadas citações, notas de rodapé e tabelas explicativas; e de muito valor, principalmente se disposta na orientação de futuros estudos acerca da mediação das práticas musicais até à nossa contemporaneidade.