O Teatro Nacional de São Carlos transmite hoje, 2 Abril, pelas 21h, um concerto gravado na passada semana com uma obra fulcral no conjunto da escrita de Eurico Carrapatoso. O Requiem à memória de Passos Manuel, Op. 48, obra composta em 2004, numa encomenda da Fundação Passos Canavarro a propósito das comemorações do bicentenário de nascimento do ilustre político português, será interpretado por João Merino, o Coro do TNSC e a Orquestra Sinfónica Portuguesa, sob a direcção de João Paulo Santos.
Os bilhetes para o concerto ainda estão disponíveis.
A Glosas teve a oportunidade de recolher uma pequena e bem-humorada entrevista com o compositor.
Como vê esta nova oportunidade de apresentação do Requiem?
Eurico Carrapatoso — Com alguma emoção. É uma obra dilecta. E de maturidade. Escrita em 2004-2005, na sequência de obras centrais do catálogo do início do século XXI, tais como O lobo Diogo e o mosquito Valentim e a ópera A floresta, é bem representativa de tudo aquilo que sou e que faço.
Tem acompanhado os ensaios?
EC — Sim. É um episódio da vida que fica, algo que um avô poderá contar a seus netos. “Sou do tempo em que assisti aos ensaios do Requiem à memória de Passos Manuel de vosso avô que vos quer muito: estava de máscara e muito desinfectadinho. Mediram-me a temperatura na entrada dos artistas. Todos os músicos da orquestra estavam de máscara como eu. O próprio maestro dirigia com suas mãos assépticas. O barítono solista só tirava a máscara nas suas deixas. E o coro estava engaiolado em jaulas isoladas*, como uma montra de aves canoras, fazendo lembrar até uma célebre rua de Amesterdão.” É nesta altura que a avó me diz para ter tento na língua e “atenção às crianças.” Acima de tudo, foi emocionante ver a entrega de todos, a vontade de fazer bem, de celebrar a arte e a vida numa comunhão absoluta de sensibilidades, numa época que mereceria um título à García Márquez: “O Amor nos Tempos de Pangolins”. Vivir para contarla.
Recorde-nos brevemente a génese desta obra.
EC — Passos Manuel é uma figura ilustre da história portuguesa, dada a sua dimensão quer como político visionário, quer como homem de cultura. A sua acção política é particularmente relevante a partir da década de 1830 e, como Ministro do Reino entre Setembro de 1836 e Julho de 1837, deixou um conjunto de reformas espectaculares ao nível da economia e, mormente, da educação e da cultura. A sua imagem está, desde então e para sempre, associada ao perfil do grande democrata, reformista, progressista, patriota e liberal indefectível. Também célebre é a sua atitude sempre contemporizadora para com os seus adversários políticos, de um trato diplomático e de uma educação subtil impecáveis que sempre vigoraram, mesmo no ambiente explosivo próprio do quadro obsidiante de guerra civil que Portugal viveu naquela época — um verdadeiro vórtice político, com todas as convulsões que acompanharam a transição do Ancien Régime absolutista para o liberalismo. Sempre sereno nesse maremoto, Passos Manuel foi a imagem da calma helénica, tendo tratado os adversários com honra e distinção. Retirou-se da vida política em 1838 e em 1841 adquiriu a Alcáçova de Santarém, nas proximidades da Porta do Sol, onde fixou a sua residência permanente e onde haveria de falecer em 1862. Passos Manuel atravessou o poder sem se demorar, serviu sempre desinteressadamente o seu país, não tendo dele recebido nem honras, nem empregos, nem benefícios. É, para mim, um paradigma de dignidade cujo exemplo é infelizmente pouco seguido, dado o devorismo que, não raro, se foi insinuando na conduta dos políticos (vide as caricaturas sarcásticas de Rafael Bordalo Pinheiro, com os políticos sebentos a mamarem na grande porca) e que tantas vezes caracteriza uma parte da classe política do nosso próprio tempo.
Ainda se recorda da estreia, com Jorge Vaz de Carvalho e, como hoje, a direcção de João Paulo Santos?
EC — A estreia na jóia do gótico, a Igreja da Graça em Santarém, foi mágica. 18 de Janeiro de 2006. A obra no seu elemento.
Quais as restantes apresentações que gostaria de destacar?
EC — Em 2008, na Sé de Santarém, o Requiem foi feito no decurso da liturgia do Dia dos Fiéis Defuntos: especial. Foi também apresentado na Igreja de São Francisco, em Évora! Local mágico. Cidade eterna. Recordo ainda um concerto na Igreja de Santo António, em Haia, já em 2014: a excelência dos músicos holandeses a celebrarem comigo a arte e a vida.
Algum projecto próximo que gostasse de nos revelar neste momento?
EC — Estou a escrever. Estou activo. Isso não é mau nestes tempos de seca. Este ano será estreada uma obra de homenagem ao Quatuor pour la fin du temps por intérpretes de excelência mundial. Lá para Novembro, no Centro Cultural de Belém, assim a situação sanitária o permita.
*Este concerto inaugura uma estrutura concebida à medida do palco do TNSC que permite acolher em espaços individuais, de acordo com as normas de distanciamento agora vigentes, os 48 coralistas.