O que podem Händel e Star Wars ter em comum? Mais do que se imagina, como provou a surpreendente montagem da ópera Alcina apresentada no Theatro São Pedro, em São Paulo, entre os dias 22 de Junho e 1 de Julho. O caráter solene dos momentos de menos ação na saga que inspirou os figurinos de Fábio Namatame adequou-se perfeitamente à estrutura monológica das árias e recitativos, e, como referiu Leonardo Martinelli em sua nota de programa, à natureza feérica do enredo. Contrariando o que se esperaria ao pensar em barroco, a solução minimalista e dinâmica do cubo branco na cenografia de William Pereira e iluminação de Mirella Brandi só fez aumentar essa solenidade. Uma maior sincronia entre as cores e os afetos das cenas poderia tornar essa interação ainda mais expressiva.
Surpreendeu, acima de tudo, a fluidez do espetáculo. As quase três horas de recitativos, árias e balé (no qual houve cortes significativos) passaram prazerosamente e prenderam o espectador, graças à magistral escrita de Händel e à competente interpretação dos artistas. Os jovens Thayana Roverso (Morgana) e Caio Duran (Oronte) estavam muito bem cênica e musicalmente. Percebia-se em Thayana, de início, alguns ajustes em relação à afinação, dinâmica e vibrato, mas logo se estabeleceu um equilíbrio das questões técnicas e sua personagem brilhou, especialmente na célebre ária Tornami a vagheggiar, numa bem conduzida cena de explícita sedução com um forte aspecto cômico. Carolina Faria (Bradamante/Ricciardo) e Norbert Steidl (Melisso) demonstraram pleno domínio técnico e naturalidade cênica. Chamou especialmente a atenção a elegância da cena da troca de roupa de Ricciardo/Bradamante. Notava-se a musicalidade e conhecimento do papel no contratenor israelense David Feldman (Ruggiero). Contudo, a pouca liberdade vocal na região médio-aguda prejudicou a afinação e a projeção, refletindo-se numa interpretação insegura da personagem. Marília Vargas estava esplêndida, numa verdadeira lição de musicalidade e presença de palco. Sua voz, à qual se costuma associar muita leveza, soava gigante e perfeitamente adequada à dramaticidade um tanto caricata da personagem-título. Suas interações com o balé potencializavam os aspectos psicológicos e fantásticos da narrativa.
A Orquestra do TSP — e músicos convidados de instrumentos históricos — estava impecável. O competentíssimo regente/continuísta Luís Otávio Santos, de tão entusiasmado, deixou até escapar uns murmúrios de linhas vocais e instrumentais em bocca chiusa, que se ouviam do fundo da plateia. Uma parte do público deve ter ficado incomodada…
Noite memorável e deliciosa. Que venham seqüências dessa volta para o futuro!