Nos dias 20 e 21 de julho foi apresentada no Theatro Municipal de São Paulo a ópera Piedade, A paixão segundo Euclides da Cunha, em versão de concerto. Com libreto e música de João Guilherme Ripper, estreou em abril de 2012 no Rio de Janeiro, encomendada pela Orquestra Petrobrás Sinfônica. O atual vice-presidente da Academia Brasileira de Música é um dos compositores brasileiros que mais têm se dedicado ao gênero nos últimos anos, sendo a mais recente de suas óperas Kawah-Ijen, estreada em maio deste ano no Festival Amazonas de Ópera. 

Piedade integrou a temporada 2017 do Teatro Colón, de Buenos Aires, onde será reapresentada em agosto. Apesar de o programa do TMSP anunciar a sua “estreia Paulista”, a obra foi, na verdade, apresentada em 2012, poucos meses depois de sua estreia nacional, no Festival de Inverno de Campos do Jordão. Não foi esta, infelizmente, a única falha de informação. De um programa em que o nome do compositor ocupava duas seções e meia, estava ausente o seu currículo, bem como o do violonista Edelton Gloeden e da soprano Laura Pisani, solistas do espetáculo. Uma seção inteira era dedicada à divulgação do concerto da pianista ucraniana Valentina Lisitsa, agendado para a semana seguinte. Com ingressos reservados na plateia, não posso dizer que não tenha funcionado, mas quanto descuido e desrespeito em nome do design e da publicidade! Bem, vamos à obra. 

O mote é dado pela “Tragédia de Piedade”, como ficou conhecido o episódio do triângulo amoroso que levou à morte do multifacetado intelectual brasileiro Euclides da Cunha, autor de Os Sertões. Ripper constrói um libreto fluente e poético, que impacta o espectador sem roubar a cena à música. É bem sucedido — para não dizer feliz — sobretudo o jogo de palavras que evoca múltiplas camadas de significado de “piedade” (o bairro do Rio onde ocorreu a tragédia, o sentimento que faltou ao marido traído) e “paixão” (o sofrimento que Euclides traz de suas experiências vividas na Guerra de Canudos, o que move sua obsessão pelo trabalho, o que o leva a “matar ou morrer”, o que desencadeia a relação de Anna, dilacerada pela falta de atenção do marido, com Dilermando).

Ripper não é compositor de escuta difícil, a música é tonal na maior parte do tempo, afastando-se organicamente rumo ao atonal, em passagens de forte cromatismo e dissonância, nos momentos de maior dramaticidade do enredo. É nítido o constante diálogo da orquestra com o que se passa em cena, sendo frequentes referências musicais como passagens modais lembrando a música nordestina quando Euclides descreve experiências vividas em Canudos, ritmos pontuados lentos sobre uma mesma nota, por vezes sobre uma harmonia tensa, indicando fatalidade iminente (algo como numa marcha fúnebre), ou às vezes até caricaturalmente óbvias, como um toque de trompete com surdina quando Dilermando de Assis se apresenta como cadete do exército. Interessante observar a brincadeira com os clichês da ópera que antecede essa passagem. Dilermando, tenor, pede: “Voglio una aria!” 

As linhas vocais são bastante desafiadoras, com notas muito agudas sustentadas em pianissimo, dificuldade perceptível mesmo em cantores experientes e de refinada técnica, como Homero Velho (Euclides) e Laura Pisani (Anna da Cunha). Isto, contudo, não afetou em nada o domínio interpretativo de ambos. Eric Herrero (Dilermando), único do elenco a cantar o papel pela primeira vez, estava muito bem, mas ainda não completamente à vontade. Sua voz em alguns momentos carecia de projeção nas regiões média e grave e sua pronúncia plena da vogal “E” por vezes distanciava-se da coloquialidade brasileira. Mas foi justamente sua “ária-seresta” o momento que mais arrebatou o público, sendo bisada ao fim, na hora da #eunomunicipal. Foi surpreendente a primorosa dicção de Laura Pisani. Apenas alguns discretos “nia” em vez de “nha” revelavam que a soprano não era falante nativa de português. À parte de orquestra, apesar de muito bem executada, faltavam alguns pequenos ajustes de precisão de ataque e equilíbrio sonoro na interação com os cantores. 

Outros interessantes recursos foram as gravações de poemas de Euclides da Cunha (recitados pelo barítono Homero Velho), reproduzidas antes de cada uma das quatro cenas, e a participação do violão solo em quatro prólogos e na ária seresteira de Dilermando. Em entrevista à revista CONCERTO, Ripper disse ter decidido incluir o instrumento devido à sua relevância para a cultura brasileira e citou passagens operísticas em que há serenatas acompanhadas por instrumento de cordas dedilhadas, como é o caso de Deh vieni alla finestra, de Don Giovanni. Outra associação me veio à mente durante a escuta, e pensei se não teria sido uma brincadeira com uma referência que possivelmente surgiria a um músico diante de um nome tão raro: o violonista e compositor Dilermando Reis, célebre intérprete e autor de choros e valsas seresteiras. O jogo entre violão e orquestra levou-me também a um paralelo com o conto O Machete, de Machado de Assis, em que o violoncelista Inácio, sisudo e fechado em sua erudição, vê sua mulher ser arrebatada pelo amigo Barbosa e por sua música, de maior apelo popular. Mas este não é espaço para fantasiar intertextualidades. Até a próxima!

Sobre o autor

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Guilhermina Lopes é doutora em música pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Brasil, com tese sobre a obra musical de temática brasileira de Fernando Lopes-Graça. Realizou um estágio de pesquisa PDSE-CAPES entre 2015 e 2016 sob a coorientação de Mário Vieira de Carvalho. É actualmente investigadora colaboradora do CESEM-UNL, membro do Grupo de Investigação Música, Teoria Crítica e Comunicação, participante do projecto temático “O Musicar Local” (FAPESP – UNICAMP/USP) e segunda-secretária da Associação Brasileira de Etnomusicologia (ABET), gestão 2017-2019. Participou de diversos eventos académicos nacionais e internacionais, tendo apresentado comunicações em Portugal, Brasil, Chile e Espanha. Dedica-se também ao estudo do canto lírico e integra o Coro Contemporâneo de Campinas, grupo ligado à sua universidade de origem.