Em 2018 assistimos às celebrações de dois centenários na música: um, de peso mundial e com uma lamentavelmente tímida representação em Portugal, o outro de cariz nacional e com modesta, mas auspiciosa, representação no estrangeiro. A diferença é que o primeiro, de Leonard Bernstein, assinala-se sobre o ano do seu nascimento, enquanto o de Fragoso se assinala sobre a data da morte.

Curioso conceito este, o de celebrar a morte de alguém que se deseja homenagear. Mas Fragoso não é um caso qualquer, e há, a meu ver, duas razões para que este aparatoso centenário tenha sido em 2018, sobre a sua morte, e não em 1997, sobre o seu nascimento. A primeira razão é que a Associação António Fragoso, força motriz por trás desta efeméride, ainda não estava pronta para a tarefa em 1997, e ninguém mais havia que tomasse tão a peito o zelo pela memória e legado deste compositor. A segunda razão, quiçá mais importante ainda, é que, mesmo à distância de cem anos volvidos, o evento mais marcante e incontornável da biografia de António Fragoso continua a ser a sua morte. É o elemento que todos parecem conhecer e que continua a provocar uma comoção generalizada, como se fosse aquilo que verdadeiramente o torna um compositor a assinalar.

A figura de Fragoso é um estandarte feito à medida para a mitologia nacional sebastiânico-fatalista, que também já era o Portugal de 1918. Há uma linha que atravessa o nosso fim de século, quando o ultra-romantismo, na Europa tornado decadentismo e em Portugal derrotismo, faz gosto de uma certa debilidade e aptidão para a desgraça. Em mais lado nenhum vemos agrupada uma elite intelectual sob o chapéu de vencidos da vida, e basta ler o que escreve António Nobre, cansado e vergado ao peso dos seus vinte e dois anos de velhice, em 1889:

 

Falhei na Vida. Zut! Ideaes caidos!

Torres por terra! As árvores sem ramos!

Ó meus amigos! Todos nós falhamos…

Nada nos resta. Somos uns perdidos.

 

Choremos, abracemo-nos, unidos!

Que fazer? Porque não nos suicidamos?

Jezus! Jezus! Resignação… Formamos

No mundo, o Claustro-pleno dos Vencidos.

 

Este penchant pela derrota, conservador e inerte, também é, claro, um alvo gordo para outros criadores inconformistas, desde a sátira queirosiana à atitude altiva dos modernistas, mas o ambiente lá estava, e calou longamente sobre Portugal. Arrisco dizer que ainda não nos livrámos de todo dessa névoa, e falhámos a campanha para mediterranizar a música [leia-se arte / pensamento], que pedia Nietzsche faz agora cento e trinta anos, cansado que estava de tanta bruma à sua volta. Falhámos a vida, menino!

Fragoso, embora não tivesse vocação revolucionária, não era assim cabisbaixo, e certamente lhe custaria ver-se associado post mortem a estas cores pesadas, para onde ainda hoje o vemos muitas vezes votado, como peão de um destino contra o qual nada pôde. Até estranho que ninguém se tenha lembrado de escrever o Fado Fragoso em Coimbra. Terá sido apenas por falta de conhecimento?

Estamos em dívida para com o compositor, e devemos virar a página já faz tempo. Como confirmaria La Palice, Fragoso, antes de morrer, estava vivo. E foi vivo, e não ao morrer, que fez as únicas coisas que lhe podem garantir um lugar na história.

António Fragoso

António Fragoso | fotografia: espólio do compositor (Associação António Fragoso)

O primeiro obstáculo que nos salta ao caminho na apreciação da obra fragosiana é que não podemos afirmar que conhecemos a sua música. Fragoso não compôs como se devesse morrer aos vinte e um anos, com urgência e sofreguidão, e a sua obra é pequena, fragmentária, e principalmente feita de miniaturas, onde se misturam as obras de criação espontânea com os exercícios académicos e tentativas de avanço por terrenos ainda verdes. Vejamos o caso de Giovanni Battista Pergolesi, que ocupa talvez o segundo lugar no pódio da fatalidade, expirando aos vinte e seis anos em 1736: ninguém pode afirmar sobre ele aquilo que acabei de dizer sobre Fragoso. Pergolesi, quando morreu, era um compositor adulto e profissional, dominando todos os géneros que se impunham a um compositor activo em Itália no período barroco.

Os casos de Mozart (falecido aos trinta e cinco anos), Schubert (falecido aos trinta e um) e Mendelssohn (trinta e oito) são outros exemplos de compositores que, embora agindo em contextos profissionais e sociais completamente diferentes, compuseram de forma fértil, segura e ininterrupta desde muitíssimo cedo e que, se tivessem morrido antes da casa dos trinta, também nos deixariam legados notáveis.

Para azar de Fragoso, no início do século XX havia um programa de conservatório a seguir por vários anos com vista à obtenção de um diploma em piano, com férias de Verão incluídas, o que significava parar para descansar durante três meses de seguida todos os anos enquanto era aluno, e nunca precisou do seu trabalho para garantir a subsistência. Em suma, teve o privilégio de poder chegar à idade adulta mais tarde. De facto, Fragoso levou a vida com o seu ritmo próprio, aprendendo e absorvendo claramente o mais que podia e a passo acelerado, extraordinariamente curioso e maduro para a sua idade, mas ainda apalpando terreno e provando os muitos frutos que havia à sua volta.

Por vezes, vemo-lo mais saudosista, outras, mais moderno. Aqui interessa-se por um sentimento nacionalista e bucólico, mas logo no dia seguinte lhe chegam as saudades da vida cosmopolita que o esperava em Lisboa, com sonhos, de resto legítimos e até necessários, de deixar Portugal em direcção a Paris. Tanto se comove com os cantos que ouve na sua aldeia, como anseia por ouvir o tal Stravinsky, de quem muito se fala pela Europa

Fragoso é assim mesmo: vário, disperso, permanentemente apaixonado, heterogéneo e permeável. Cabe-nos ser francos e admitir que no seu catálogo nem todas as entradas são obras-primas e não estão todas ao mesmo nível. É necessário ultrapassar a comoção para ouvir com claridade. Como nota Paulo Ferreira de Castro a partir de Dahlhaus, a objectividade é impossível: saberemos sempre pelo menos o suficiente para impedir uma audição puramente baseada em princípios de fruição estética e saberemos sempre que estamos perante uma das primeiras, mas também das últimas, composições de Fragoso.

É importante que se atinja um consenso, hierárquico até, sobre quais são as poucas obras, representativas e essenciais, que verdadeiramente importa exaltar e difundir, mesmo que sejam apenas duas ou três. Este consenso, a existir, não será fruto de reflexão ou discussão, mas virá com o tempo, com a participação da obra fragosiana na vida de muitas pessoas. Acredito que Fragoso ficará mais bem servido desta forma do que tentando incluir toda a sua produção por atacado na dieta do público português, coisa possível apenas em 2018, porque o centenário da sua morte atingiu altos patamares de atenção e representação institucionais.

Dá-se o caso com este compositor de não haver uma única nota sua que tenha caído em esquecimento ou que se tenha perdido com o tempo. Desde a sua morte, família e amigos houve que zelassem por ele, num caso absolutamente único na história da música em Portugal, e por ocasião do centenário e graças ao esforço tocante da AAF, toda essa música estará disponível para a posteridade, tanto gravada como publicada e acessível a quaisquer intérpretes que por ela se interessem. Longe vão os tempos em que achei que seria uma miragem encontrar uma edição usada da Petite Suite à venda num escaparate da Companhia Nacional de Música ao Chiado…

Dado este passo, que urgia e cabia à AAF, acredito que está cumprido o fundamental da sua missão, e podem deixar que o tempo faça o que lhe compete. Intérpretes e público irão querer o melhor do que Fragoso nos deixou, e aqueles que mais o amarem terão sempre curiosidade pelo resto. Não deve haver inseguranças por parte de ninguém: falamos de um compositor de génio, que terá o lugar que merece nas salas de concerto.

Esta história podia acabar aqui, com tudo pronto para o futuro, mas a verdade é que não. Também há presente: através do ímpeto de Eduardo Fragoso, sobrinho do compositor e presidente da AAF, continuam a chegar-nos sons fragosianos aos ouvidos, porque está em curso uma estratégia de revalorização do catálogo do seu tio, através da encomenda de orquestrações e composições rapsódicas sobre materiais originais. O próprio autor destas linhas se viu na disposição espontânea de orquestrar um Nocturno, mas outros houve que aceitaram a tarefa de, das miniaturas, fazer obras de grande escala. Eduardo Fragoso é nisto, sem tirar nem pôr, o Diabelli da Pocariça, e o repto que lançou pode vir a dar frutos notáveis, mas isso também só o tempo dirá. Certo estou de que nenhuma orquestração poderá fazer jus à versão original, nem que a beleza de uma canção de dois minutos para canto e piano se veja aumentada por passar a coro e orquestra. Fragoso será sempre superior a tudo isso, tal como, no fim de contas, qualquer original de Bach é melhor do que os seus milhares de arranjos. Mas é bonito, reconheço-o abertamente, ver acontecer esta celebração em torno de um compositor, por demais com obra tão reduzida. Tomara que se tivesse feito metade disto por outros compositores portugueses, mas mais nenhum teve esta sorte. Só quem viu centenas de pessoas sentadas, noite adentro, expostas ao frio e ao vento em pleno Largo António Fragoso, na Pocariça, escutando com devoção a música que saía das janelas abertas, numa recriação assinalável dos serões musicais que António Fragoso aí comandava, pode ter uma ideia do que é a verdadeira celebração de um compositor, incorporando-o na vida das pessoas e fazendo a sua obra mais presente do que nunca. Apraz-me ainda dar conta do facto de esse evento não ter sido exclusivamente preenchido por música de Fragoso, como de resto não eram os serões em que o próprio se sentava ao piano. Pois é assim mesmo, em contexto e não em exclusividade, de forma natural e não imposta, que se deve celebrar Fragoso. Ouvindo-o no meio de outros, a esse compositor que escrevia debaixo dos bustos de Beethoven, Schumann e Grieg, e de quem são tão claras por vezes as influências de X ou Y.

Uma coisa é certa: se em matéria fragosiana ficássemos por aqui, já era muito. Mais do que o estudo da vida e obra, interessa-me a vida da obra, e, nesse capítulo, António Fragoso tem uma estrada larga e viçosa aberta diante de si. Mais promissora, pese a sua obra reduzida, do que a de muitos venerandos mestres que a história não consagrou ou que não soubemos preservar. Antevejo, pois, e desejo, longa vida à curta vida de António Fragoso!


Texto publicado no número 18 da revista Glosas (2018).

Sobre o autor

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Licenciado em Ciências Musicais pela Universidade Nova de Lisboa e em Direcção de Orquestra pelo Conservatorio di Musica Luca Marenzio di Brescia e Italian Conducting Academy em Milão, concluiu em 2018, com honras e enquanto bolseiro Eckstein e Fulbright, o mestrado em Direcção de Orquestra na Bienen School of Music, Northwestern University, onde foi aluno de Victor Yampolsky. Dirigiu e trabalhou com orquestras de sete países, e assistiu Christopher Rountree e Alan Pierson, entre outros. Em 2014, funda em Itália a Orchestra di Maggio, com quem se apresentou em várias cidades, e que foi objecto de um documentário e do apoio da Fondazione Torchiani. Em 2014, com os cursos “O que ouvir na música clássica?”, começou um percurso ligado à pedagogia e apreciação musical, com especial atenção ao pensamento contemporâneo sobre a Música, ao seu lugar na Cultura e à sua relação com as outras artes.