“Musical Trouble: after Butler”, conferência realizada nos dias 4 e 5 de Dezembro de 2015, reuniu na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa musicólogos e outros investigadores e interessados em torno de questões relacionadas com representações e identidades de género e música, na esteira do livro de Judith Butler, Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity, publicado em 1990.
Para o balanço desses dois dias de intensa actividade e de fervilhar de ideias e debates, a Glosas falou com a Professora Paula Gomes Ribeiro, coordenadora do NEGEM – Núcleo de Estudos em Género e Música, do CESEM, responsável pela organização da conferência.
“Musical trouble: after Butler” foi o título dado à conferência. Porquê “after Butler”? Qual a importância desta autora e do seu livro Gender Trouble para os estudos de género e a musicologia?
A expansão dos estudos de género, cujo campo é extremamente vasto, complexo e interdisciplinar, é relativamente recente, mesmo se precedida por áreas e publicações que contribuiram decisivamente para a sua formação. Os trabalhos de Judith Butler nos domínios da identidade, do poder, do género, da sexualidade (especialmente Gender Trouble, cujos vinte e cinco anos assinalámos neste colóquio) foram decisivos não só para a produção científica no domínio dos estudos de género, ou da musicologia, como para as ciências sociais em geral. A autora defende que o conceito de género deve ser entendido como a relação entre sujeitos constituídos socialmente, em contextos específicos. Assim, ao invés de ser aceite como um atributo, o género deve, segundo ela, ser encarado como uma circunstância fluida que conhece variações e inflexões no contexto das próprias experiências e cruzamentos sociais quotidianos. A recusa de submissão a oposições binárias, que operam alegadamente para erradicar a ambiguidade e proporcionar uma pretensa integração e equilíbrio, é um dos principais alicerces do pensamento desta autora, que encontra no conceito de queer a instabilidade e liberdade que pronuncia. Pensar o género deste modo tem consequências drasticamente importantes na revisão do conceito de identidade, da sua construção social, bem como das interacções sociais e sociabilidades, logo, um impacto determinante no modo como são encaradas as práticas e vivências musicais. Insere-se num processo de libertação de constrangimentos e desigualdades fundamentados por sistemas binários centenários, fortemente enraizados culturalmente, e que se reproduzem como ‘senso comum’, ou habitus, mantendo assimetrias sociais (mente/corpo; homem/mulher; razão/emoção…).
No momento em que Butler publica Gender Trouble (1990), grupos de investigadores em música acolhem com muito entusiasmo o seu pensamento, bem como o de outros autores dedicados a estes processos. As publicações que, na área da musicologia, pontuam os primeiros anos da década de 90, caracterizam-se por uma enorme capacidade exploratória, assumindo riscos, desafiando preconceitos e transgredindo padrões e cânones de escrita e pensamento. No ano seguinte ao da publicação de Gender Trouble, Susan McClary publica uma monografia que estabelece um marco no pensamento sobre género e música, Feminine Endings. O impacto que este volume tem na prática musicológica é decisivo. Vários outros autores repensam narrativas e exploram ideias (como Brett, Wood, Thomas, Blackmer e Smith, Kramer, Subotnik ou Solie), utilizando não só o género como um objecto de estudo, associado a um conjunto de tópicos e problemas, mas também como um ‘álibi’ para o que consideram ser uma abertura necessária a novos trajectos de pesquisa, e uma renúncia aos cânones positivista e formalista dominantes especialmente até à década de 80.
Que balanço faz da conferência e das comunicações apresentadas?
O balanço é muito positivo. Quisemos provocar alguma ‘agitação’ no pensamento musicológico, desafiando reflexões sobre o estado da arte actual da investigação no domínio do género e música, a exposição de trabalhos em curso e a discussão de aspectos epistemológicos, ontológicos, culturais e sociais. Quisemos pensar a própria condição da música enquanto elemento política e culturalmente decisivo na construção de identidade e diferença, nos processos de estratificação e ordenação social, na definição de múltiplas expressões de sociabilidade e humanidade… Como elemento agregador mas também como gerador de distinção ou mesmo de exclusão. Quisemos pensar os modos como herdamos e assumimos compromissos e estereótipos, submetendo-nos com alguma frequência acrítica e passivamente às múltiplas manifestações de binarismo de género que se repetem (inclusivamente através dos códigos musicais) nos mais avançados paradigmas comunicacionais, tecnológicos e industriais, nas quais ‘ser mulher’ ou ‘ser homem’ (com os respectivos sistemas de desigualdades associados) se torna mais relevante do que ‘ser pessoa’: em conteúdos televisivos, produções cinematográficas, videojogos, videoclipes, indústrias musicais ou em múltiplos produtos audiovisuais em linha…
Foi muito gratificante assistir a catorze comunicações muito dedicadas, além de duas intervenções no painel de abertura de figuras tão decisivas para o campo em estudo e, mais genericamente, para a cultura portuguesa, como os professores Zília Osório de Castro e Mário Vieira de Carvalho. Uma mesa redonda muito participada reuniu, em vivas discussões, todos os que estiveram presentes. Abrangeram-se várias épocas e espaços geográficos, sob diversas perspectivas e pontos de vista, inter- e multidisciplinares. Visaram-se objectos tão diversos como aspectos de género em Homeland de Laurie Anderson, heteronormatividade nos reality pop programs na televisão portuguesa, os usos da música na pornografia audiovisual, a representação de personagens femininas em videojogos, políticas do género na música metal, a performance do transformismo em Lisboa; género, sociabilidades e práticas musicais nas cortes portuguesas seiscentistas; a estratificação de género no ensino da música e nas indústrias musicais; figurações de Narciso, na música, nas artes e no quotidiano actual; a maestrina Josephine Amman; representações da não-normatividade de género na opereta em Portugal, entre muitos outros.
Pode concluir-se que o estado dos estudos de género e música em Portugal está num bom caminho e em crescimento?
Julgo que a sensibilidade a aspectos relacionados com a relevância da música na construção de subjectividades e no estabelecimento de diferença é, neste momento, crescente nos domínios musicológicos. No entanto, há ainda muitíssimo trabalho para fazer, dentro e fora da academia, dada a imponência duma estrutura social e cultural na qual o binarismo de género e a heteronormatividade são claramente dominantes, processando-se sem questionamento, e os preconceitos e tabus em relação a toda uma diversidade de abordagens e vivências se mantém ainda em muitas circunstâncias. É, por exemplo, frequente pensar-se que os estudos de género estudam as práticas das mulheres, e as suas representações na música. Podem fazê-lo, se assim o desejarem, mas não é esse o seu foco principal: o estudo da ‘feminilidade’ como da ‘masculinidade’ ou dos ‘feminismos’ (outras áreas próximas se ocupam com muita competência desses aspectos) são fragmentos de um questionamento mais vasto e intenso sobre aspectos de identidade humana e social, em cruzamento com tantas outras ‘determinantes’… Quando se fala em ‘género e música’, fala-se de ordens políticas de gestão do quotidiano, como por exemplo, processos de invisibilização de alternativas (daí o interesse do conceito de identidade fluída ou de queer) ou sistemas de dominação (reforçadas ou construídas também pela música, entre outros elementos). Julgo que o NEGEM, bem como outros investigadores, departamentos e centros de estudos, têm não só um papel deveras importante a desempenhar na muito rica actividade musicológica nacional, como uma grande responsabilidade social.
Continua, assim, a ser relevante, vinte e cinco anos depois da publicação do livro de Butler, a discussão dos assuntos debatidos na conferência?
Depois da exploração epistemológica dos anos 90, nomeadamente com a publicação de Feminine Endings (1991) por Susan McClary, que se tornou um marco decisivo no pensamento sobre género e musica, ou de Musicology and Difference, Gender and Sexuality in Music Scholarship (1993), por Ruth Solie, ou ainda Queering the Pitch, the New Gay and Lesbian Musicology (1994), por Brett, Wood e Thomas, entre tantas outras referências, julgo que houve uma necessidade de repor normas e reencontrar o que pode ser mencionado por alguns como equilíbrio e por outros como disciplinação dos saberes…
Estou convicta de que muitos destes textos, ao invés de serem integrados, lidos e discutidos criticamente, dando origem a novas ideias e publicações, foram, e são, encarados frequentemente com algum cepticismo e desconfiança e, por vezes, marginalizados e esquecidos. Negligencia-se igualmente a inserção dos problemas por eles introduzidos no contexto específico em que se colocam – aos níveis social, temporal, cultural, político, ideológico –, o que em nada beneficia o seu entendimento e exploração.
Quero assim dizer que é, para o NEGEM, extremamente importante trazer todas estas questões e problemas a debate, não só em contextos académicos mas também em outros universos sociais, com a intenção de incentivar a produção no domínio visado, de questionar as práticas musicais e representações (pedagógicas, performativas, etc.), apoiar trabalhos em curso, reler e repensar publicações anteriores, estimulando um pensamento crítico e desenvolto sobre tópicos que se encontram por vezes envoltos por ideias mistificadas e julgamentos apriorísticos garantindo a diversidade de abordagens.
Quais são os projectos do NEGEM para 2016?
Iremos prosseguir trabalhos em curso, no âmbito do género e música, relacionados com o estudo dos estilos de vida, das sociabilidades e dos seus espaços, das estruturas de poder e dominação e das suas hierarquias, da construção de diferenças, dos processos de naturalização de comportamentos e ideias, da racionalização do conhecimento e dos processos de gestão, canonização e invisibilização de discursos, figuras ou ideias.
Continuaremos a enraizar a nossa acção no âmbito da realização, discussão e disseminação de trabalhos científicos no campo visado, de formação para públicos diversos, incentivando o debate académico e social. Neste sentido, prevemos, entre outras acções, a realização de uma publicação decorrente do colóquio Musical Trouble e de uma segunda edição deste evento, com uma componente internacional mais forte, que iremos em breve divulgar.