No passado dia 17 de Janeiro, comemorou-se no espaço O’culto da Ajuda os 1.000.056 anos do Nascimento da Arte. Explico: a 17 de Janeiro de 1963, o multiartista Robert Filliou sugeriu que a Arte tivesse nascido precisamente há 1.000.000 de anos, no momento em que alguém lançou uma esponja seca num balde d’água. Dez anos depois, celebrou-se o 1.000.010.º Aniversário da Arte na Neue Galerie em Aachen (Alemanha), e desde então a data vem sendo celebrada em diversas partes do mundo.
A representação portuguesa desta efeméride ficou a cargo do Sond’ar-te Electric Ensemble, grupo criado em 2007 e que vem se destacando como um dos mais importantes difusores da nova música portuguesa dentro e fora do país. Sob a precisa direcção do maestro Pedro Carneiro, o ensemble apresentou um programa vigoroso que deixou latente o alto nível do trabalho desenvolvido ao longo desses anos.
O Aniversário da Arte não tem um formato fixo, e cada agrupamento de artistas é livre de definir a maneira como irá celebrar a data. No entanto, consolidou-se a prática de partilha desses “presentes” à arte através de sistemas de redes, antigamente através de fax, telex, arte postal, e, mais recentemente, através de radiodifusão e Internet.
Como explicou Miguel Azguime (fundador e director artístico da Miso Music Portugal, do qual o espaço O’culto da Ajuda é parte integrante), desde o início dos anos 2000 começou a haver uma cumplicidade entre rádios europeias, através do Grupo Euroradio Ars Acustica, para a celebração, no âmbito musical, do Aniversário da Arte. A contribuição portuguesa contou com a transmissão em directo pela Antena 2, representada pela figura de seu director, João Almeida, que esteve presente no concerto.
O programa apresentado pelo Sond’ar-te Electric Ensemble não se presta a ser uma simples exibição do repertório do grupo. Ao contrário, percebe-se a unidade do programa através do entrelaçamento entre persistências e transparências. De um modo geral, todas as obras jogam com esses dois conceitos, ora dissolvidos, ora em evidência dentro de cada peça.
Quando falo em persistência, refiro-me à repetição insistente de determinados gestos sonoros, notas ou conjuntos de notas, e desenhos rítmicos. Essas persistências podem ser observadas nas obras Asper de Ricardo Ribeiro, Sonderart des Kreisens II, de Ka’Mi (estreia absoluta) e Variações Sobre Glosas, de António de Sousa Dias.
Na música de Ricardo Ribeiro, a persistência ocorre no âmbito dos gestos musicais e conjuntos de notas. A reiteração desses elementos faz de Asper uma música muito coerente, fazendo ressoar na memória os seus precisos objectos sonoros. Particularmente, é muito bonito ver a teatralidade que brota nesta obra, sobretudo na interpretação da pianista Elsa Silva, que parece dançar em seus movimentos entre as teclas e as cordas do piano. Asper abriu o programa de modo eloquente, deixando em evidência o virtuosismo dos instrumentistas, considerando a visível dificuldade técnica.
Na obra de Ka’Mi, a persistência acontece na repetição obstinada de uma célula ritmica que imediatamente me remeteu ao tema do 1.º andamento da Quinta Sinfonia de Beethoven. Esse ritmo, com algumas variações, é repetido à exaustão, servindo de base para um rico desenvolvimento tímbrico, entremeado de texturas rarefeitas. Não é uma música fácil de ouvir, mas recompensa o ouvinte mais atento.
Em Variações Sobre Glosas, a persistência de António de Sousa Dias encontra-se na repetição de algumas notas, que passeiam entre os instrumentos, criando uma textura etérea, entremeada por alguns gestos mais incisivos. O início somente com um intervalo consonante tocado no piano, suave e contido, acalma os ânimos e prepara os ouvidos para as intervenções dos demais instrumentos, numa textura que se vai adensando.
Entremeando as obras de persistência, encontramos as texturas cristalinas e transparentes de Gárgulas d’Arga, de Ângela Lopes, e Equilíbrio, de Gonçalo Gato. Na obra de Ângela Lopes, salta aos ouvidos o lirismo criado na relação entre instrumentos acústicos e electrónica, que cria uma ambiência onírica. Este efeito é resultado de um élan criado a partir da sobreposição de sons que vai criando camadas translúcidas. Uma música que merece ser ouvida mais vezes.
A obra Equilíbrio, de Gonçalo Gato, inequivocamente actua como um equilíbrio no programa e entre os conceitos aqui mencionados. De forma muito inteligente, o compositor cria harmonias de sabor tonal que se dissolvem em sonoridades incorporadas pela electrónica. Se na harmonia as transparências se evidenciam, no jogo entre os instrumentos e electrónica as persistências encontram-se. Gestos que se repetem, mas sempre com diferentes ressonâncias.
A caminho de quase vinte anos de século XXI, a reflexão sobre o que é a música contemporânea aparece latente na música desses compositores. Estéticas diferentes, pessoais, mas que ao mesmo tempo se permitem contaminar com o ambiente em que estão inseridas. E tudo isso muito bem amarrado pela sensível e competente interpretação do Sond’ar-te Electric Ensemble. Um concerto memorável. No mais, eu, como brasileiro, só posso reafirmar a grande e feliz surpresa que é ouviver a música (emprestando aqui uma expressão do poeta Décio Pignatari) produzida em Portugal.
Pedro Carneiro | direcção
Sílvia Cancela | flauta
Nuno Pinto | clarinete
Vítor Vieira | violino
Luís André Ferreira | violoncelo
Elsa Silva | piano