Com duas exibições no Centro Cultural de Belém nos dias 3 e 4 de Abril, a ópera de Nuno Côrte-Real foi reduzida a um efectivo instrumental menor do que o da estreia no São Carlos, em 2011, e apresentada em versão semi-encenada. Surpreendentemente, e talvez com um pouco de desalento, foi através da folha de sala que o público se apercebeu de que não iria assistir a uma produção completa da ópera, informação que poderia ter sido mais clara na divulgação de Banksters.

O espectáculo iniciou-se com uma vénia dos músicos em palco ao personagem de Santiago Malpago, demonstrando desde já a posição de poder deste banqueiro, poder que mais tarde se revela fictício. Estando o Ensemble Darcos e o Coro Ricercare em palco, juntamente com os solistas, esta encenação tirou partido da presença dos músicos, usando-os pontualmente para explicar certas intenções dos personagens – solução inteligente para uma produção de ópera em “versão de concerto”. O outro exemplo desta encenação hábil será também o gesto de Mimi Kitsch no segundo acto, que faz levemente passar uma rosa pelo rosto de um dos músicos do Ensemble Darcos, numa atitude de sedução e capricho.

O libreto de Graça Moura reconta-nos a história de uma peça de teatro de José Régio, passando-a para o contexto da alta finança dos nossos dias. Com humor, o antigo director do CCB apresenta-nos personagens complexas e gananciosas contrastando-as com a aparição de um anjo que apela à salvação do personagem principal. Ao ser visitado por este Angelino Rigoletto, que em vão lhe tenta explicar o episódio bíblico do Anjo e de Jacob, o banqueiro resiste constantemente, acusando-o de perseguição e temendo-o sempre. Por outro lado, Rigoletto assume uma forma humana, claramente manipuladora, que também ajuda à queda de Santiago. As tentativas deste anjo despoletam uma série de artimanhas por parte de Mimi Kitsch e do Accionista, a mulher e o irmão de Santiago Malpago, que conspiram para a sua demissão no banco e consequente infortúnio.

É no segundo acto que Mimi Kitsch se junta ao Accionista e combina a queda de Santiago Malpago. Mimi planeia vingar-se do marido por este ter aludido ao seu carácter adúltero à frente dos quadros da empresa, e tenciona servir esta vingança “gelada”. Brilhantemente interpretada pela soprano Dora Rodrigues, esta personagem dominou o primeiro e o segundo actos tanto na expressão vocal como na transmissão das suas intenções ao público, por vezes confuso com o enredo da história.

É de louvar a concepção cénica realizada pelo próprio compositor da obra, embora esta produção pudesse ter beneficiado com uma encenação mais completa dada a complexidade do argumento e dos personagens. Uma possível solução teria sido a apresentação da ópera apenas como um concerto, permitindo uma melhor fruição da música de Nuno Côrte-Real.

Musicalmente, e de acordo com o musicólogo Afonso Miranda, Nuno Côrte-Real usa temas diferentes, ou leitmotifs, para enriquecer e explicar as intenções dos personagens. Um dos temas mais aparentes é apresentado pelas notas agudas do piano que acompanha Angelino Rigoletto, interpretado pelo tenor Mário João Alves, e que evoca mistério e uma sensação do transcendente. O cantor interpreta fielmente este Rigoletto contemporâneo, guardando sempre o seu carácter ambíguo que ora é moralista ora é manipulador.

É também com a presença de Angelino nos primeiro e segundo actos que se denota a presença de referências e citações na música de Nuno Côrte-Real. Naturalmente Rigoletto é acompanhado por um excerto da famosa ária do Verdi La donna è mobile, presente na sua ópera homónima. Com esta citação, no entanto, Côrte-Real justapõe o famoso tema com algumas dissonâncias, um recurso que tão bem caracteriza a duplicidade de carácter de Angelino Rigoletto.

Não se pode deixar de referir também a guitarra eléctrica, subtil em determinados trechos, e que de acordo com Afonso Miranda poderá emprestar a Angelino Rigoletto a sua condição de outsider. Ao sublinhar certas pequenas melodias, este instrumento confere um carácter metálico e frio à música deste anjo, associando-o a um carácter menos inocente.

É desta forma que a música de Côrte-Real evoca de maneira muito eficaz as intenções de cada personagem, por vezes transmitindo uma qualidade quase fílmica à música de Banksters.

Com as diferentes facetas da mulher do banqueiro, Côrte-Real expõe-nos também diversas formas musicais no segundo acto e apresenta-nos uma citação de habanera, com ela sublinhando as intenções caprichosas e de sedução de Mimi Kitsch. As referências às outras formas musicais, como o funk, tal como sugere Afonso Miranda nas suas notas programáticas, é inserida quando o banqueiro descobre os planos de Mimi para o despedir do seu cargo. Pessoalmente, esta referência musical sugere também o famoso motivo da ‘danse sacrale’ em Le sacre du printemps de Stravinsky, aludindo ao carácter impiedoso e cruel de Mimi Kitsch.

De uma forma geral, o terceiro acto destacou-se dos dois primeiros; por um lado, a excelente performance de Luís Rodrigues exemplificou a dor e redenção de Santiago Malpago, emprestando-lhe também uma nova profundidade como personagem. Por outro lado, é também neste acto que se compreende a relação complexa entre este banqueiro e Angelino Rigoletto, revelando-se a sua intenção redentora na totalidade. Esta difícil personagem que Mário João Alves tão bem interpreta neste terceiro acto aparece-nos quase como a própria consciência do banqueiro com as palavras “Já ninguém me pode ver, Já ninguém me pode ouvir”.

É com um coro de anjos que a ópera de câmara Banskters termina, exultando a morte e rendição de Santiago Malpago, o banqueiro e personagem principal, interpretado por Luís Rodrigues. Com o etéreo “Dolcissima Morte, vienni a me”, cantado pelo Coro Ricercare, é-nos oferecido um final catártico, final adequado após as inúmeras manipulações e artimanhas sofridas pelo banqueiro. Numa última confissão, a voz de barítono de Luís Rodrigues canta as palavras ao estilo vicentino do libreto de Vasco Graça Moura: “Perdoa se te obriguei, A vir com máscara humana, Em minha perseguição, E as vezes que vagueei, Nos braços da maldição”. É realmente com esta ária que o lado intrinsecamente humano de Santiago Malpago é revelado, desta vez acompanhado por uma melodia melancólica no violoncelo, tocado por Mats Lidström, convidado do Ensemble Darcos.

Juntamente com a música e concepção cénica de Nuno Côrte-Real, o sprechtgesang dos solistas e a teatralidade que o texto de Graça Moura traz à obra, Banksters alude a diversas técnicas e momentos da história da ópera sem nunca perder a sua contemporaneidade.

 

'Banksters' em versão reduzida no CCB
Solistas
Direcção
Coro
Orquestra
Encenação
Cenografia, Figurinos, Luz
4.3Pontuação geral

Sobre o autor

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Terminou o curso complementar de piano na Fundação Musical dos Amigos das Crianças em 2007, completando também o ensino secundário na área de Artes Visuais. Em 2010, completou a licenciatura em Música no Goldsmiths College, University of London, com uma dissertação acerca dos desenvolvimentos contemporâneos do fado. Realizou o mestrado na mesma universidade, concluindo o curso Contemporary and Popular Music Studies em 2012. Foi com o apoio do Professor Sérgio Azevedo que desenvolveu a sua tese sobre Constança Capdeville, com uma análise do ‘Libera me’. Entre 2010 e 2014, deu aulas de piano e formação musical em diversas escolas de Londres, tendo também colaborado num projecto de inclusão social pela arte. Durante este período, realizou actividades de produção, curadoria e divulgação de música contemporânea.