A soprano alemã Annete Dasch juntou-se à Orquestra Gulbenkian e ao seu maestro titular, Paul McCreesh, nas passadas quinta e sexta-feira, para interpretar o ciclo de canções Les nuits d’été, op. 7, de Hector Berlioz (1803-1869). O concerto, que decorreu no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, incluiu ainda The Walk to the Paradise Garden, de Frederick Delius (1862-1934) e a Sinfonia n.º 5, em fá maior, op. 76, de Antonín Dvořák.
Fazendo parte de A Village Romeo and Juliet – a quarta ópera do compositor inglês Frederick Delius, composta entre 1899 e 1901 –, o interlúdio The Walk to the Paradise Garden só seria estreado seis anos após a conclusão da partitura original, durante a primeira apresentação da ópera em Berlim. Foi na versão arranjada pelo maestro inglês David Lloyd-Jones (1934-) que esta peça orquestral abriu o concerto de 17 de Abril de 2015 que hoje me proponho discutir.
Paul McCreesh conseguiu motivar a orquestra para uma prestação rica em termos tímbricos e expressivos. Numa obra caracterizada largamente pela simplicidade e reformulação melódica, a circulação de motivos pelos diferentes naipes foi sendo levada a cabo com subtileza e requinte, procurando cada instrumentista trabalhar cada reincidência com cores distintas, resultando daí uma interpretação matizada mas sempre suave. Destaque, naturalmente, para os sopros de madeira, mas também para as cordas que foram capazes de construir massas sonoras homogéneas, sem nunca perder o ímpeto dramático que, por exemplo, o clímax exige (nesta secção a minha vénia aos violoncelos que tiveram, esta noite, uma prestação de alto nível). Escolha interessante, a da inclusão em programa desta obra, raramente escutada e com a curiosidade de ter evidentes pontos de contacto com as texturas orquestrais e harmónicas da estrutura de Prélude à l’après-midi d’un faune de Claude Debussy (1862-1918) e um ou outro caso de plágio a motivos de Parsifal de Richard Wagner (1813-1883).
Seguiu-se Les nuit d’été. A prestação de Annette Dasch não foi ao encontro das minhas expectativas. Não obstante o acompanhamento de McCreesh, que procurou secundar os ritmos e intensidade da solista sem nunca lhe sobrepor o som da orquestra, a soprano demonstrou insegurança na afinação, recorrendo frequentemente a portamentos para atingir certas notas, sobretudo no registo agudo. A sua dicção foi também pouco clara, provavelmente resultado de um domínio insuficiente da pronunciação do francês, o que foi aliás agudizado pelo vício de transformar a maioria das vogais em «Ás», sobretudo em momentos de maior intensidade sonora. Seguindo o texto de cada canção foi, apesar disso, possível constatar que a cantora procurou dar destaque a palavras-chaves através de variações na cor da sua emissão, sendo particularmente feliz em “Le spectre de la rose”. Isto, aliado à beleza da sua voz, redonda e brilhante, não conseguiu contudo compensar as opções técnicas que infelizmente condicionaram uma fruição incompleta da relação entre a música de Berlioz e os poemas de Théophile Gautier, como seria expectável atendendo às especificidades do repertório de canção francesa.
A segunda parte deste concerto foi preenchida com a Sinfonia n.º 5 de Dvořák. A interpretação da Orquestra Gulbenkian sob a direção de Paul McCreesh foi capaz de perpassar a energia contida na escrita do compositor checo. O sinal com que os clarinetes iniciam a obra foi um aviso para o que se seguiria: transitando pelas flautas até chegar às cordas, todos os naipes se envolveram na construção da atmosfera festiva do primeiro andamento. Com os violoncelos em modo galvanizante, os violinos só claudicaram em momentos de maior intensidade, com evidentes discrepâncias entre os músicos das últimas estantes e aqueles sentados mais à frente, visível e audivelmente mais em linha com o entusiasmo do maestro McCreesh. A interpretação do Andante com moto foi modelar quanto à noção do fraseado dos violoncelos e sopros, mas também pela clareza na exploração de secções mais contrapontísticas, enriquecendo a textura orquestral pela exposição de diferentes planos sonoros. Esta equipa foi capaz de alimentar a tensão e expectativa do público até ao efusivo final da obra, para o qual metais e percussão foram também essenciais.
Voltando um pouco atrás, é percetível pelas minhas palavras que o desempenho de Annette Dasch não foi, para mim, particularmente empolgante. Claro está que esta noção é idiossincrática e, por outro lado, a sua participação não tinha forçosamente de ser central neste concerto. Porém, no que concerne à publicidade ao mesmo, foi-o. Na página dedicada oficialmente a este evento, consta uma foto maximizável de Dasch, junto a uma súmula do seu curriculum. A par de expressões como “uma das vozes maiores do canto lírico”, aparece uma seleção do elenco de artistas com quem tem colaborado. Nada disto é particularmente diferente das práticas nas redes institucionais nacionais e internacionais. Se avançarmos para as notas ao programa, encontraremos, para além destes (e doutros), a seleção de compositores e obras que tem interpretado, bem como a das instituições onde se tem apresentado. Mais uma vez, nada de novo. E este nem é sequer um costume exclusivo de artistas musicais. Eu próprio, enquanto membro da equipa de redação da glosas, apresento-me com a minha fotografia e nota biográfica, onde incluo as fases do meu percurso profissional que entendo mais relevantes. Todavia, nem sempre aquilo que consideramos ser mais relevante é absolutamente preditivo da nossa ação futura. Por outras palavras, no mínimo, o nosso curriculum tem tanto de propaganda quanto de demonstração do nosso trabalho. Trata-se de um discurso e, portanto, do resultado de uma seleção de palavras, de adjetivos, de pessoas, de locais, de instituições. Não foi por acaso que utilizei a palavra “seleção”: trata-se de uma tentativa de legitimação da artista por via da sua associação a um cânone performativo da música dita erudita ocidental.
É evidentemente legítimo que queiramos construir uma imagem positiva acerca de nós mesmos. Não obstante, acredito que isso seja uma variável que o leitor, neste caso, ao espectador deva ter em consideração durante a sua experiência de um concerto. As instituições e os profissionais pretendem, legitimamente, captar determinados tipos de público e, para tal, produzem imagens, frases, gerem as expectativas, tanto do público como dos próprios artistas. Condicionam, portanto, a nossa capacidade de criticar. Sendo esta uma abordagem tão antiga quanto a capacidade do ser humano comunicar, nos dias de hoje a sofisticação dos meios de promoção deste star system – o marketing e a publicidade – está de tal forma desenvolvida que me parece evidente o interesse e a necessidade de os desconstruir criticamente.
Não tenho a pretensão de o fazer no espaço deste artigo que é inerente e assumidamente superficial. Contudo, a experiência deste concerto veio confrontar-me com o facto de o curriculum de Annette Dasch ser mais impressionante do que a sua interpretação de Les nuits d’été, no final de tarde do dia 17 de Abril último. Sim, o concerto foi globalmente bom, mas nada invalida que a abordagem à mesma obra por uma outra cantora, desta feita não tão mediática, não pudesse ser substancialmente mais empolgante. Sob outro ponto de vista, poderá ser também questionado o valor da produção das instituições e pessoas apresentadas como parte dos percursos descritos nos curricula incluídos nas folhas de sala ou outras vias de transmissão de informação: terá mais qualidade o trabalho realizado no âmbito de uma instituição com mais poder simbólico do que aquele de uma menos influente?
Em suma, hoje procurei que a minha crítica expusesse o meu esforço, mais ou menos conseguido, de relativizar a importância dos discursos em torno do fenómeno musical, especificamente aqueles engajados nos processos de construção do estatuto de estrela. Eventualmente, quem se der ao trabalho de ler estas palavras questionará se também elas constituirão mais um discurso. Responderei: sim! A crítica tem um imenso poder mediático que é exercido com mais ou menos consciência. Daí que seja também perigoso acreditar em tudo o que é dito. A crítica não está imune ao poder mediático das instituições, sendo que também os seus agentes fazem parte do sistema de construção, reprodução e reificação desse mesmo poder.