Artigo escrito em co-autoria por
Helena Maria da Silva Santana
e Maria do Rosário da Silva Santana


 

RESUMO

Neste texto pretendemos mostrar de que forma as realidades históricas, sociais, étnicas e artísticas dos universos português (minhoto) e africano (guineense) concorrem para a construção de um universo imagético e sonoro único na obra musical do compositor português Cândido Lima.

Uma leitura atenta do seu catálogo mostra-nos uma marcada influência africana que se revela não só na forma como denomina muitas das suas obras, Nô, African Ryt(hm)os, Ritos de África, Missa Mandinga, Canções de Ur, Ncàãncôa, Nanghê, por ex., como, mais tarde, aquando da sua fruição, que esses mesmos títulos, imbuídos de conteúdos imagéticos reveladores de muitas das estruturas e técnicas que desenvolve ao longo do seu discurso artístico, são um reflexo das suas vivências não só de África como da realidade em que se insere, alterando-se a si e ao outro na forma de se ver e de ver o mundo.

A forma como desenvolve algumas das suas estruturas a nível rítmico e temporal, a forma como elabora e estratifica os seus conteúdos linguísticos e imagéticos, a forma como concebe, transforma e diversifica os seus coloridos sonoros, a violência de alguns dos seus gestos musicais e de alguma da gestualidade interpretativa de que necessita para veicular a sua arte revelam um compositor que expressa não só um ser português, mas, e sobretudo, um ser português no mundo.

Através do estudo da sua obra pretendemos mostrar que o compositor não é um ser que se determina rigorosamente diverso a cada obra, mas sim um ser dividido entre a tentativa de exprimir um Todo sabendo, a priori, que esse Todo não se pode nunca abarcar e que se exterioriza diferente a cada espaço-tempo.


Cândido Lima, multiculturalidade, composição musical, imagética sonora, ritmo, tempo, timbre


 

Introdução

 

A fuga inexorável do tempo, expressa na imensidão da paisagem africana, declarada na fumaça da savana onde homem e animal se esvaem, manifesta-se na obra de arte musical através, por vezes, de um tratamento fugaz de dois parâmetros fundamentais na concepção e criação de uma obra musical: o ritmo e o tempo. A percepção destes dois parâmetros, alterada pela vivência e pela presença de ritmos e tempos singulares e exclusivos à vida e ao homem, interfere com a comum e inimitável percepção dos espaços e dos tempos, dos lugares e dos ritmos, da vida e do cosmos, dos seres e da obra de arte. Ritmo e tempo, transformados continuamente por um outro sentir e viver, um sentir e viver que se encontram pautados por uma outra noção da arte e da vida, manifestam-se na obra de arte musical pela criação de sons e espaços, estratos e texturas, sentires e significados de densidades e cores diversas que se encontram num existir e num viver de outros tempos e lugares. Preso no tempo e no espaço de uma existência efémera e enferma, onde o sonho interfere com a realidade e a noção de tempo com a inevitável percepção do real, o compositor, alterando inexoravelmente a sua percepção do tempo, da vida e do cosmos, usa este parâmetro de forma particular. A permanência de Cândido Lima em África permitiu-lhe uma outra percepção, uma percepção que traduz inevitavelmente em obras de inegável valor e riqueza tanto técnica, como estilística e estética.

 

Esta permanência no continente africano permitiu-lhe a vivência de uma outra realidade musical – a realidade musical guineense –, tanto na sua vertente criativa como interpretativa. A proliferação de manifestações sonoras, tanto em simultâneo como de forma individual, a riqueza rítmica, harmónica e melódica que denotam, deslumbra o compositor, que, inundado por uma realidade nova, rica, diversa e salutar, se vê imbuído de um espírito novo face ao acto criativo, seja ele de natureza compositiva ou interpretativa. O transe nelas presente, o encantatório do som, da cor, da dança, do grupo, a riqueza timbrica, colorística, gestual e gutural de algumas vivências sonoras com que a realidade sonora e musical africana o premeia, nomeadamente a que vivencia em Bolama na Guiné-Bissau, tornar-se-ão realidades que nunca mais esquecerá e que se manifestarão, seja de forma clara, seja subliminarmente, em muitas das suas obras.  O próprio compositor assume esta e outras influências. Como ele próprio afirma:

 

“As minhas fontes em composição confundem-se no contacto da infância, na aldeia, com músicas populares, de romaria, religiosas e com sons da natureza: do silêncio, do mar, do campo e da montanha. A aprendizagem de adolescência no contacto vivo com prática religiosa de cunho afro-asiático (o tempo e o espírito) ou de cunho estóico (filosofia cristã e pré-cristã), com a cultura clássica greco-latina (ritmo e verbo), com o canto gregoriano (o modalismo e o contínuo), com a polifonia (contraponto), com a prática coral e organística (do Barroco ao séc. XX) e a absorção natural e inconsciente destas vivências com épocas e práticas musicais diversas, na convivência juvenil tardia com os meios académicos dos Conservatórios e seus programas românticos, tudo informou a minha música (se é minha…) desde a idade de 15 anos até hoje.”

(Lima 2002: 79)

 

A multiplicidade é uma constante da sua obra, encontrando-se na sua vida, no seu pensar e existir de diversas maneiras:

 

“Estudos posteriores clássicos, liceais e universitários de filosofia, de literaturas e outros domínios interdisciplinares fundiram-se com técnicas e músicas antigas, europeias e intercontinentais, confundindo-se nos meus projectos e opções estéticas com novas técnicas puras da linguagem, com novas experimentações instrumentais e com técnicas provenientes das novas tecnologias: da electroacústica ao computador e aos audiovisuais. Modos antigos europeus e asiáticos, modos modernos e outras estruturas escondem-se na fluidez do tempo musical das diversas obras.”

(Lima 2002: 79)

 

As realidades e vivências que assume ao longo da vida podem não ser unicamente musicais. A maneira como a sociedade se organiza, o viver se processa, as hierarquias se instalam, os costumes se demarcam está presente, e quando afirmamos que está presente é certamente de forma subliminar, pois a manifestação da arte revela e desvela o homem e o artista criador de forma nem sempre directa, mas sempre poiética.

 

Cândido Lima, um esteio de textos e contextos multiculturais

 

Assim, a energia de algumas das manifestações sonoras que desvela a nível orquestral, instrumental e vocal anunciam não só estas influências, como algumas premissas construtivas e formalistas de uma realidade cultural, artística e musical afro-guineense e, paralelamente, portuguesa. Como podemos verificar, nesse sentido:

 

“[…] o Outro e a ideia de Máscara na forma das exóticas, primordiais culturas extraeuropeias…[se expressa em obras como] Nô, Ritmos de África, Ritos de África, Missa Mandinga, 4 Canções de Timor, Canções de Ur, Ncàãncôa, Nanghê…[1] essa máscara que esconde o verdadeiro [artista. Será então que a obra serve para afrontar as forças criativas e impositivas de uma katharsis criativa mais ou menos velada e manifesta, ou será que serve para o compositor se esconder do outro, da vida e do existir que o imerge e transmuda de forma violenta e gutural? E Cândido Lima será, então, real?] Não será antes o homem vários homens, heteronomicamente, pessoanamente divididos entre a tentativa de exprimir o Todo e o saber de antemão que esse Todo não o poderemos nunca abarcar?”

(Azevedo 2002: 14)

 

Mas o Todo não se abarca, o homem é simples máscara de um saber fugaz, ausente, peculiar nas suas aparições e, desaparições, caminhos de uma singularidade exótica e exorcizante. Toda a obra pretende revelar o mundo mas não é mais que efémera e enferma manifestação de um existir cerrado e centrado nas limitações e condições da natureza humana. Não será a isso talvez alheia uma necessidade de transpor ideias, processos, materiais, ver e rever, transformar e deformar o que foi dito e se encontra redito um tempo e um espaço mais além. Um tempo e um espaço que denotam um novo olhar sobre si e a realidade. Neste sentido damos como exemplo as obras Ncàãncôa e Sang-ge-Sang.[2] Nos dois casos a manifestação do sonoro encontra-se transformada por uma nova realidade interpretativa que desfigura o objecto primeiro e o transmuta ao olhar/ouvir/fruir do próximo. A máscara que esconde mas também mostra denota uma vontade de se dar, mas simultaneamente de se esconder, talvez fruto de uma consciência de si que não se quer mostrar, nem dar, nem viver. Ritos de África, Missa Mandinga, as duas de 1966, as duas para coro, piano e percussão, denotam um saber e sabor africanos que se mostram nas harmonias, nos ritmos, nas texturas, nos coloridos, nas vozes e na forma muitas vezes mordazmente problemática e de carácter profundamente livre como encara o processo criativo caracterizado pelas ideias de unidade e identidade. Para ele, a obra tem de possuir uma conexão matizada, ou, por outras palavras, uma unidade sonora conseguida através da diversidade e, ao mesmo tempo, da identidade. A obra tem de ser coerente em termos de identidade e esta identidade tem de ser transparente. De acordo com o autor, é absolutamente imperativo que o ouvinte consiga formular uma noção de identidade ao apreciar uma peça sua.[3]

 

Mas não só a realidade afro-guineense se manifesta na sua obra. A influência da sua terra natal e de um existir minhoto, as vivências culturais de um existir camponês e simultaneamente marítimo, os estudos no seminário, as leituras e os estudos de filosofia espelham-se nesta multiplicidade que teima em sobressair. A sonoridade da terra e das suas gentes, o som da língua, da linguagem, do ritual e do rito predominam. Assim, o autor constrói um outro som, resultado, quiçá, da interacção entre vivência e experiência:

 

“Mas existem muitas outras vivências e fascínios: o seu lugar de infância, o Minho (evocado num belo texto intitulado Memórias quase Íntimas) e os anos passados na Guiné durante a Guerra Colonial. Em territórios mais longínquos da realidade portuguesa, temos o fascínio pelo universo místico de Scriabine e das suas visionárias obras finais; Vers la Flamme, Prometeu,[4] ou em direcção às chamas finais do Mistério Universal, hélas!, deixado incompleto como todos os universos humanos que almejaram falar de igual para igual com os deuses.”

(Azevedo 2002: 13)

 

Mas o homem não é um ser individual; a comunicação é necessária, sendo que a vida instiga a uma vivência em grupo. A sociabilidade, a razão de ser e existir da arte exigem uma presença constante e contínua do outro para que o seu fazer e vivenciar seja alcançado e adquira um sentido próprio, e devido, à obra e à arte. Sem o outro, sem a vontade de existir e de se manifestar no e pelo outro, o objecto de arte, o artista, o criador não atingem certamente alguns dos objectivos intrínsecos ao acto de criar. Mesmo que para alguns a criação seja um acto solitário, um acto de vida e de vómito próprios a quem a pratica, e para o qual esta se manifesta sempre necessária, a arte faz-se para o outro e para o grupo. As condicionantes e imperativos próprios do fazer artístico exigem o outro sem o qual nada é, sem o qual nada tem sentido ou sentir. A noção de grupo, na sua dissemelhança, leva à coexistência de elementos diversos; a diversidade revelando-se factor de enriquecimento. As quatro raízes do princípio da razão definidas por Schopenhauer são, por ordem, o princípio da razão suficiente do devir (relação de causalidade), do conhecer (capacidade de inferir conceito), do ser (associação dos objectos no tempo e no espaço) e da vontade (referente à vontade ou afecções individuais do observador), que são importantes na definição e construção do pensamento humano, conduzindo o ser que cria a inferir conceitos e a definir a obra de arte no espaço e no tempo.[5] O processo de criação, precedido ou não por momentos de inspiração, traduz-se em imagens e em sons, na cor e no calor dos corpos e das formas de um continente onde a dança e o encantamento, o frenético e o encantatório se misturam na busca do transcendente e da perfeição.

 

No continente africano, a presença constante de uma vivência em grupo e para o grupo, o contacto regular com instrumentos tradicionais particulares na sua forma e conteúdo, no seu timbre e duração prevista e peculiar aos acontecimentos e objectos sonoros, permitem, autorizam a criação de obras de carácter exclusivo e, ao mesmo tempo, universal. A noção de grupo, de roda, o posicionamento dos indivíduos face ao compositor que escuta, imbuindo-se de sons e sabores, de texturas e de formas, trazem ao homem a necessidade de se exprimir de maneira a que a vivência particular da essência da vida deste continente e a sua própria vida se traduzam em obras de inaudita expressividade. Os sons, as texturas, as denominações que escolhe contêm em si mesmos o gérmen de vários saberes e agitações; o gérmen de uma recordação ou a expressão de uma dor, de um sentir. As texturas, os padrões, as escutas; os medos, os tempos, as fontes; os timbres, os diques ou as pontes criam naturezas colorísticas e sonoras que fogem à norma de escuta e fruição do homem ocidental. Diferentes na essência e no carácter, são criadas segundo o sentir particular de um homem ausente numa paisagem adulterada pela passagem indelével do tempo, manietada pela presença tormentosa do espaço, tempo e espaço desfigurados na sua percepção pelo calor que invade a alma e tolda o espírito criador. Neste sentir,

 

“Integrar estilos, linguagens, semânticas, fonemas, culturas num todo que continue a fazer coerência sem “saltos” estilísticos que coloquem problemas de linguagem é o seu objectivo. Coloca-se neste particular o compositor minhoto numa descendência mais xenakiana ou bouleziana que stockhauseniana, e objectos como a Sinfonia ou o Recital for Cathy de Berio são-lhe aparentemente estranhos. Existem excepções, como sempre, que só confirmam a regra. Algumas dessas excepções são a música inspirada pelos quadros e técnicas do pintor espanhol Tapiès, na versão que possuo intitulada Tape Music Yes (no original Música dos Objectos e do Acaso – Resíduos, 1990), ou as abrangentes Músicas da Terra[6] para fita magnética, uma colagem de 14′ de músicas étnicas de variadíssimas proveniências, composta para as séries televisivas Fronteiras da Música e No Ventre da Música, séries que o compositor criou e apresentou entre 1982 e 1983. Obras como a 4ª Sinfonia de Ives, a Sinfonia de Berio ou os Hymnen de Stockhausen[7] são parentes próximos de Músicas da Terra, de Polifonias de Notre-Mer ou dos Polígonos em Som e Azul.[8]”

(Azevedo 2002: 29)

 

Os padrões, as cores, os lugares; os olhares, os sentires e os quereres relevam a tradução e tradição imensas da vivência africana que se manifesta nos recortes dos padrões dos tecidos, dos materiais agrestes, das texturas toscas e próximas da terra, do fio forte e condutor da ideia, da vespertina descoberta do ser forte e criador, do ser que descobre na natureza que o rodeia, os elementos que o compõem e que lhe permitem sobreviver num meio adverso e exclusivo, num meio que aniquila e regenera, onde a vida se torna benesse de um deus invisível e apaziguador. E o homem veste-se, reveste-se e mutila-se, aniquila-se e transcende-se, num louvor múltiplo onde perdura a sua impotência, o desejo de pertença, a calorosa mistificação face às forças da natureza que não percebe, mas que louva, tentando, assim, o apaziguamento dos deuses, a obtenção de benesses, a cura e a purificação.

 

E o Belo instala-se, procura-se na matéria, nas vestes, nas pinturas dos corpos e dos materiais, nos padrões de inigualável riqueza simbólica, linguística e formal. E histórias contam-se, revelam-se no olhar, nos tecidos e nos quadros que se afiguram na pertinência do presenciar. E o homem inspira-se, e a obra nasce, qual tapeçaria que se tece, fio a fio, traço a traço, junção de cores e de formas, de traços e de gestos, que conduzem ao aconchego da obra feita e à delicia do olhar. É o gérmen da obra que, engendrada na infindável complexidade da mente humana, se afigura ao ouvinte nas escutas e nas leituras, na observação atenta dos lugares, objecto de inspiração onde homem e artista se encontram, se fundem, originando um só. Todavia:

 

“Onde pára […] a Liberdade? A liberdade do intérprete, da partitura, da beleza do som posto a vibrar numa sala construída sabe-se lá como e por quem? Infelizmente as orelhas humanas são apenas duas e estão voltadas para fora, direita e esquerda. De Stockhausen e de Wagner aprende Cândido Lima a lição pioneira da inovação e não compromisso constantes de todos os aspectos ligados de alguma maneira ao fenómeno musical-artístico.”

(Azevedo 2002: 20)

 

Mas será a liberdade uma bênção ou uma maldição? Uma benesse ou expiação? Sabemos que a verdadeira liberdade é fruto da regra emergindo na aceitação. Assim:

 

“A integração de estilos, técnicas, linguagens, diferentes arquétipos semióticos que coexistem num todo, nessas obras particulares que mudam de paradigma, tudo isso exige para Cândido Lima algum processo de união, um ‘cimento’ que agregue de forma a que não sobressaiam os aspectos exteriores dos objectos usados e somente os aspectos mais profundos, insondáveis (arquetípicos) da matéria em jogo.

Vozes à Luz[9] pode fornecer um óptimo exemplo daquilo que Cândido Lima se propõe atingir. […] Como o agitar da água num lago produz uma imagem difusa, assim os trémulos nos acordes produziam essa mesma imagem sonora difusa, onírica, que é característica de toda a música de Cândido Lima. Déjà-vu…? O animar da matéria inerte através do trémulo, que na versão definitiva (a que está gravada) percorre praticamente toda a obra, é, pois, o que caracteriza o ‘envelope’ tímbrico e textural de Vozes à Luz

(Azevedo 2002: 31-32)

 

Idênticas características são observáveis ainda em muitas outras obras do autor. E no viver, a noção de tempo altera-se pela interferência do psicológico e do social. Tempo real, tempo metronómico, tempo psicológico, tempo onírico são noções amplamente trabalhadas e presentes na música do século XX e alteradas, sentidas de forma particular, por paisagens africanas. O corte e a continuidade, a sobreposição e a sequenciação, a colagem e a interpolação denotam os cortes de uma paisagem envolta num nevoeiro que advém do calor imenso que tolda o espírito e a mente. Texturas de patchwork onde a diversidade impera, onde o equilíbrio se mostra na diferença constante de cores e padrões, aparecem em música, numa construção e formalização particular dos universos de som, no uso dos instrumentos de forma diversa da tradicional e através de posicionamentos diferentes da utilização normal da orquestra face a um público.

 

Os sons e os ritmos que advêm da utilização da percussão em roda e de instrumentos como os djambés e os mburis sobressaem ainda neste universo de som. E o frenesim do ritmo instala-se, o frenético da dança manifesta-se, o rito nasce. O corpo, elemento de audácia, de movimento e de ritmo, pleno de actividade, revela-se numa cadência constante e convulsa, em danças plenas de vitalidade, de energia e de transe, onde a mente se apaga e o homem se anuncia instrumento de forças ocultas, plenas de alma e efectivação. Os timbres, conduzindo ao transe, facultam o acesso a patamares inacessíveis ao homem comum, que, liberto das amarras da consciência, se torna veículo de transmissão de entidades superiores, não consciente da realidade que o envolve. Esta exaltação, apresentada ao homem ocidental através da sobreposição de linhas rítmicas de reconhecida dificuldade de execução, e de difícil tradução em notação tradicional, leva o compositor a questionar-se sobre a pertinência da sua tradução e notação.

 

Consequentemente, o compositor acaba por desistir face à dificuldade de tradução, adaptação e notação do gesto liberto de um povo que sente o que toca, não se limitando face a notações e a convenções. O seu processo criativo manifesta uma realidade sonora e uma gestualidade que encontram no gesto um elemento

 

“negado como atributo mais ou menos gratuito tal como aparece em muitas obras de Cage ou Kagel. [Encontra] o gesto, sim, mas integrado, necessariamente, no contínuo do discurso musical, tal como [outros elementos que concorrem para a criação de obras ímpares, nomeadamente] as luzes ou a cenografia. Em vez portanto dessa aspiração a uma rede gigantesca que no oceano imenso do conhecimento arraste tudo sem discriminação à sua passagem, é a personalidade de Cândido Lima a de uma aranha – o Músico – que tece uma teia grande, é certo, mas uma teia e não uma rede. Esta ideia do conhecimento como vibração (tal a aranha na sua teia) é a pedra de toque da concepção de uma rede neuronal sensível aos estímulos mais ínfimos do exterior e do interior. Neste caso, é uma teia onde a aranha se vira também para o seu interior e se questiona sobre o seu lugar no centro do emaranhado de fios.”

(Azevedo 2002: 19-20)

 

Não é essa a realidade de quem cria, não é essa também a realidade de qualquer ser humano que se questione sobre o existir, sobre o mundo, sobre o cosmos? Não é essa a realidade de qualquer ser pensante que se encontra no mundo para uma permanente e consequente marcha evolutiva para a perfeição? Mas a perfeição custa, e a criação também, surgindo altamente penosa, sofrida. Nessa evolução contínua, o homem renasce sem cessar, transmitindo-se intencionalmente ao outro, seja no saber, no ser ou no criar.

 

Simultaneamente, ritmo e tempo, timbre e espaço coabitam sem interferências, contribuindo para resultados únicos onde a presença ocidental não tem outro papel senão o de questionar e o de aniquilar a liberdade de escutas e de sentimentos. Mas o gesto e a gestualidade do rito, da dança, do som, da criação imperam – o gesto que mais tarde se revela integrado num contínuo sonoro que se pretende desnude o elemento água, a mesma água que vislumbra no oceano da infância, o mesmo de África, o mesmo do sonho da infindável fuga aos horrores da guerra, aos horrores da vida. E a água surge, “esse continuum dos grandes oceanos criadores de vida, que mais seduz o compositor português [e que se manifesta em obras como]: Oceanos, Polifonias de Notre Mer, A-Mèr-Es, Pauis, Mare-A-Mare, Il Tempo dell’Acqua, Poisson-Miroir, Lendas de Neptuno, Galets, Amarissima, Autómatos da Areia, Aquiris… a água… a memória… Momentos – Memórias I, II e III, Vozes à Luz (à memória), Cori Memori, Memorabilis[10]” (Azevedo 2002: 14), a água que se mostra fonte de vida, que se torna o meio de onde emerge, e emerge enquanto criador, a água que dilui e se transfigura, tornando-se origem de obra.

 

O tempo, esse elemento único na sua definição e na sua percepção, elemento que nos conduz por universos desconhecidos, universos para nós indecifráveis num estádio de incomensurável ignorância face à imensidão de conhecimento para nós acessível, ou inacessível, face ao estado evolutivo em que nos encontramos, revela em nós espaços físicos, lugares, define em nós estados percepcionais da consciência que conduzem a estados hipnóticos e hipnotizantes face a lugares únicos como o continente africano. Lugares de contrastes excepcionais, de percepções singulares, de misturas e coabitações impensáveis para o homem ocidental trazem à memória a inocência da infância, da adolescência expectante e criadora, da maioridade plena de significado, onde a expectativa é o encontro de diversidades e desassossegos, a reunião de contrários…

 

Nesta fase de incomensurável expectativa face ao outro e ao desconhecido, face ao novo mundo que se desenrola diante do criador, submisso ao destino cruel de um tempo que não retoma, que não esquece, que não se apaga das memórias, é o compositor obrigado, de forma consciente ou inconsciente, a dar forma ao indizível, a dar forma ao pensamento latente e latejante, ao vómito agonizante, à katharsis expectante, resultando, por vezes, aterrador. Exaurido pelo material, pelas estruturas, pela condução do pensamento, mas feliz pelos resultados que obtém, o compositor apresenta texturas onde o corte e a continuidade, o equilíbrio e a forma são comparáveis à riqueza das texturas africanas, os timbres uma resposta aos sons e às experiências em terras de Bolama.

 

Pese embora a feliz coincidência dos temas que nos propomos debater, toda esta panóplia de materiais tem também raízes na infância do compositor, em terras de um Minho próximo e distante, do folclore minhoto, das experiências de infância em tarefas da lavoura, na passagem pelo Seminário Bracarense e dos estudos de filosofia, cujos conteúdos, mas principalmente o rigor de pensamento e o espírito altruísta de entrega ao outro, produziram nele estados de inegável satisfação. Mas não será o conjunto da obra de arte de um autor recriações de uma mesma matéria, um outro dizer da obra primeira, uma outra determinação de um mesmo estado, enfado voluptuoso do homem, da carne? Para Cândido Lima, a terra, nunca esquecida, surge dilecta na obra que nasce, na obra que sai dolorosa e saudosa do corpo e da alma, a obra que transpira dos poros e contornos de corpos e almas sofridos, em esperas e levas constantes. Neste contexto, o compositor assevera que

 

“De algumas recordações sonoras de infância [lembra] pequenos tubos de ervas, de arbustos, de cana, harmónicas de boca rudimentares que foram as primeiras experiências para obter sons. Os timbres do saxofone, do acordeão, do banjo, do violino ‘à Heifetz’, das vozes e corais de vozes masculinas (cantos de marinheiros), da França ou da América dos anos 1930, o piano, das Jazz-band dos anos 1930/40, em discos de 78 rotações, numa grafonola à manivela, de família de emigrante francês dos anos 1940, colocada um dia de surpresa em cima da mesa de cozinha de aldeia, são das mais emocionantes memórias de adolescência. Até aí eram apenas vozes. Vozes dos campos e dos montes, de romarias, outras tantas vivências de juventude do mundo rural. Também o velho órgão de tubos da aldeia, há anos em ruínas, músicas da liturgia clássica e minhota. Ecos de canto gregoriano, de repertório litúrgico e renascentista da juventude académica, os ‘ecos’ de Orlando di Lasso, reminiscências das clausuras colegiais urbanas vieram alargar estas vivências inesquecíveis, fundamentos últimos das músicas deste livro, irrelevantes perante o que a imaginação, a técnica e o génio dos maiores de todas as culturas nos legaram! Não sei se me maravilharam mais aquelas vivências de infância, adolescências e de juventude, se as vivências futuras das grandes salas de concertos ou dos sofisticados e hipnóticos estúdios de tecnologias nas mãos do compositor!”.

(Lima 2003: s.p.)

 

Memórias que se transportam na vida, memórias que nos mantêm vivos lá onde o olhar se perde em áridas paisagens, significados atrozes de vidas que não queremos. Cortes, recortes, socalcos, paisagens, um Minho prenhe de cores, odores, sabores, ardores, significados e significantes contidos na mente e no imaginário do autor, um Minho onde o árduo trabalho da terra se traduz no suor de rostos frios lavrados pela terra e pelo chão que mãos hábeis, mãos ávidas e sedentas de luz transformam em campos vibrantes de cor, sabor e vida e, na obra do autor, em elementos de som e cor flamejantes.

 

Valem os sons e os poemas. Os sons da música e os sons das palavras, os sons que nos embalam o pensamento e nos conduzem a obras onde o calor das palavras se sobrepõe ao calor e sabor dos sons. Onde sabor e saber se confrontam, onde a lógica não encontra expressão a não ser na emoção de um olhar, no sentir inexprimível do coração, na saudade que de portuguesa não se explica quando longe se está. A gramática musical surge bendita na tradução das ideias e dos ideais presentes em qualquer poema e na obra de arte. Surge assim como

 

“[…] uma gramática adequada na sua morfologia, fonética, sintaxe, semântica [na tradução que o compositor faz do texto, do poema, do dilema]. As sílabas, as palavras, os versos encadeiam-se num continuum rítmico, a poesia fluida confronta-se com a descontinuidade dos sentidos das palavras que se encadeiam como objectos musicais. Foi deste flutuar constante do poema ao longo de um tempo interior, provavelmente alimentado por atmosferas exteriores propícias a exprimi-lo, que um dia, saiu, ao longo do mês de Agosto, toda a música [de Pauis]. O próprio canto das aves e pássaros nocturnos (célula rítmica e um motivo melódico claramente a descoberto!) são evocados sem que a ‘Série’ (uma série!) seja posta em causa. Não é música impressionista, nem programática, nem descritiva, muito menos expressionista. Talvez simbolista…”.

(Lima 2003: 36)

 

Longe de um olhar atento e presciente de compositor, jorram rios de som, palavras imensas de inauditos e múltiplos significados. E do nada se inspiram, criando seres unos e originais. É o misticismo do homem, o misticismo do lugar, os ambientes vibrantes dos lugares que se percorrem e que induzem em nós sentimentos que de outros lugares não brotariam.

 

“Somos todos feitos de inocência, de espontaneidade, de ignorância, de ingenuidade, de curiosidade e de ânsia na procura de espaços, inquietos e curiosos na busca da surpresa e do desconhecido. O músico, o compositor, o poeta, o escultor também o são.”

(Lima 2003: 33)

 

São pois os sons, o ambiente, os sabores que inspiram. São eles que conduzem no limite à libertação do espirito e à criação da obra de arte. É o ritmo dos lugares, da vida, das palavras que condiciona por vezes o surgimento da obra. O autor revela-se nela e em Pauis,[11] obra em que o poema se anuncia longo tempo impeditivo do surgir do texto musical.

 

Pauis exigiu meses a fio de interiorização do poema na ilha (Bolama), no cais, nas tabancas, no barco (canal do rio Geba), no continente (Bissau). A música esteve latente no espírito meses a fio. A poesia dificultava a libertação por ser, ela própria, música. Mas havia outra música que pairava paralela na alma do poema, sem, contudo, se adivinharem os seus suportes físicos de escrita.”

(Lima 2003: 36)

 

A coexistência dos dois dá lugar a uma obra de inegável beleza e coerência. Mas o som da palavra, o sentir do verbo, a expressão de uma sensibilidade mascaram-se na definição e denominação da obra.

 

“Acrósticos e anagramas surgem dos próprios títulos, ou como antes do Verbo do Som, temos o Som do Verbo ensaiando já uma Gesamt-Welt gramática: A-Mèr-Es esconde Mãe, Mar, Amargo, Ser, Não-Mar e Não-Mãe, Sol-Oeils[12], para vozes solistas ou coro, usa no texto mais de 30 das cerca de 80 traduções da palavra Sol que Cândido Lima conseguiu encontrar, mas os olhos que olham o Sol (Nanghê…)[13] estão também lá, no título Mare-A-Mare, que na sua simetria afirma e nega simultaneamente Mar, Não-Mar, Amar e Não-Amar, porque o homem não é uma verdade, mas muitas verdades, enquanto Sang-ge-Sang[14] aglutina Sangue e Canto. Não importa se as línguas usadas em justaposição/sobreposição são diferentes, ou se as lemos de trás para diante”

(Azevedo 2002: 14),

 

pois o que importa é a obra, o sentir, o definir uma realidade que se quer transmitida, aplacada, vivida.

 


 

Conclusão

 

Denotamos, assim, a reflexão pausada e longa sobre os lugares, a reflexão sobre o meio onde se desenrolam acontecimentos que se traduzem na obra de arte através da mão do autor, que revela linguagens únicas, criações raras, um esteiro de textos e contextos vários. E a liberdade, presente na criação de um autor tão prolífico como Cândido Lima, permite que as diversas realidades históricas, sociais, étnicas e artísticas dos universos português e africano concorram para a realização de um universo imagético e sonoro de características únicas, e revelador de um ser que sofre as suas mais directas influências. A forma como desenvolve algumas das suas estruturas a nível rítmico e temporal, a forma como elabora e estratifica os seus conteúdos linguísticos e imagéticos, a forma como concebe, transforma e diversifica os seus coloridos sonoros e a violência de alguns dos gestos musicais e de alguma da gestualidade interpretativa de que necessita para realizar os seus intentos, ou seja, o sucesso na veiculação das realidades que constrói e leva a percepcionar pelo público, revelam um ser único, um ser imbuído do saber e fazer de um mundo em contínua transformação, onde as cores, os sabores, os sentires e os contrastes presentes no viver de somente alguns anos passados, se encontram agora diluídos por uma automatização e globalização aniquilantes da diversidade e da multiplicidade que teima em transmitir, e permitir fruir, através das suas obras. Esta diversidade apresenta-se não só ao nível da forma, como dos conteúdos. De incansável criatividade, Cândido Lima transmuda-se constantemente na obra de arte, sendo que, e através do acto de criar, surge sempre igual, contudo sempre diverso. Se olharmos ao conjunto da sua obra, a diversidade e multiplicidade de formas e cores apresenta-se também nas diversas formas que utiliza para disseminar o seu pensar. Não só de construção musical vive o homem. O seu lado de compositor coabita com o seu lado de comunicante e de pedagogo, servindo-se igualmente destas actividades para veicular as suas formas de pensar e sentir, viver e conviver, fruir e desvelar.

 

É neste e em muitos outros contextos, onde o ver e o olhar se cruzam, que as obras, por vezes, nascem envoltas em mistérios e enigmas que não são mais do que sentires diversos, pulsares de um corpo que se movimenta em olhares sobre crepúsculos imensos onde terra e mar se cruzam, onde terra e mar se fundem em linhas de horizontes que não existem. E a interrogação surge, a inquietação aparece e a obra nasce, pois que mais não pode esperar. Ficam para depois as explicações, as justificações técnicas e gramaticais, as opções estéticas que musicólogos exigem, que de inspiração se servem para justificar a transpiração exausta que a obra lhes subtrai ao corpo e mente. Assim,

 

“As palavras ditas à volta destas obras, mesmo neste contexto, são o menos importante, porque nenhuma chave pode revelar o último sopro de uma obra de arte, por mais modesta que seja. Estas palavras podem orientar, mas nunca substituirão a própria essência da criação musical, a natureza da sensibilidade, da emotividade, da ‘situação’ e da ‘circunstância’ do emissor e do receptor, do compositor e do ouvinte. Nenhuma ferramenta de análise o conseguirá!”

(Lima 2003: 23).

 

Hélas!

 


 

[1] (1986-88), Ritmos de África (1967), Ritos de África (1966), Missa Mandinga (1966), 4 Canções de Timor (1995), Canções de Ur (1987), Ncàãncôa (1ª versão 1995; 2ª versão 2002), Nanghê (1990)

[2] No caso de Ncàãncôa, verificamos a existência de uma primeira versão de 1995 para clarinete e espacialização electroacústica, cuja primeira audição teve lugar em Lisboa no ano seguinte, e uma segunda versão de 2002 para clarinetes (de 2 a 3) em delay de tempo variável e cuja primeira audição se deu no Porto no mesmo ano. De Sang-ge-Sang existem igualmente duas versões. A primeira, para fagote, data de 1976; a segunda, para fagote a 3 partes, data de 1979.

[3] apudAzevedo 1999.

[4] Vers la Flamme (1914), Prometeu (1910).

[5] cfr. Schopenhauer 1981.

[6] Músicas da Terra (1982).

[7] 4ª Sinfonia (1910-16) de Charles Ives ou os Hymnen (1966-67) de Karlheinz Stockhausen.

[8] Polifonias de Notre-Mer (Minho I, 1997), Polígonos em Som e Azul (1988-89).

[9] Vozes à Luz (- à memória 1996).

[10] Oceanos (1978-80), A-Mèr-Es (1978-79), Pauis (1967; 1971), Mare-A-Mare (1978-80), Il Tempo dell’Acqua (1991), Poisson-Miroir (1994), Lendas de Neptuno (1987), Galets (1982-83), Autómatos da Areia (1978-83-85), Aquiris (1993), Momentos – Memórias I, II e III (1964-75-85; 1994), Cori Memori (1985), Memorabilis (1998).

[11] Começa a haver meia-noite para voz e piano e Pauis/impressões do crepúsculo para voz, violino e piano, tiveram a sua primeira audição em 26 de Agosto de 1968, no Auditório da Escola Superior de Belas Artes do Porto, com Fernando Serafim (canto), Jack Glatzer (violino) e Cândido Lima (piano), num concerto organizado pela Juventude Musical do Porto. O autor tinha regressado de África (Guiné), do serviço militar, em Fevereiro desse ano.

[12] Sol-Oeils (1978-79).

[13] Nanghê (1990).

[14] Sang-ge-Sang (1976).


 

Bibliografia

Azevedo, Sérgio (1999), A Invenção dos Sons, Lisboa, Caminho.
Azevedo, Sérgio (2002), “Cândido Lima: vers une Gesamtkunstwerk? Ensaio quasi una fantasia”, Cândido Lima, Porto, Atelier de Composição, pp. 13-45.
Lima, Cândido (2002), “Livre. Sem Limites (Quase…)”, Cândido Lima, Porto, Atelier de Composição, pp. 79-80.
Lima, Cândido (2003), Origens e Segredos da Música Portuguesa Contemporânea. Música em Som e Imagem. Porto, Instituto Politécnico do Porto.
Schopenhauer, Arthur (1981), De La Cuadruple Raiz del Princípio de Razon Suficiente, Madrid, Editorial Gredos.

Sobre o autor

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Estudou Composição Musical na Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo do Porto. Em 1998 obteve o grau de Docteur na Universidade de Paris-Sorbonne (Paris IV) defendendo a dissertação 'L'Orchestration chez Iannis Xenakis : L'espace et le rythme fonction du timbre'. Desde 2000, desempenha as funções de Professor Auxiliar no Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro leccionando diversas disciplinas nos cursos de Licenciatura em Ensino de Música e de Mestrado em Música.