Cantar brasileiro. O que seria isso? Existe um modo de cantar “brasileiro”? Se na área da música popular isso já é praticamente ponto pacificado, no campo da música de concerto ainda é uma questão que gera calorosos debates entre cantores, regentes e músicos em geral.
O Coral Paulistano responde a essa questão sem tergiversações, com suas belas e potentes vozes, na série Cantar brasileiro.
Cantar brasileiro é uma expressão de Mário de Andrade, fundador do Coral Paulistano em 1936, que celebra, portanto, seus 85 anos em 2021, em meio a uma situação sanitária que impede a comemoração em concertos presenciais. Em função disso, o Coral Paulistano apresenta uma série de quatro vídeos em que os cantores e músicos participantes realizaram as gravações em suas próprias casas, sendo feito, posteriormente, um cuidadoso trabalho de mixagem sonora e construção audiovisual criativa.
O primeiro vídeo da série apresenta a peça Motet em ré menor — mais conhecida como Beba Coca-Cola, de Gilberto Mendes, composta em 1967 sobre poema concreto de Décio Pignatari. É muito curioso o fato de se abrir uma série sobre o “cantar brasileiro” com essa obra, pois ela desconstrói todos os paradigmas do bel canto ao trabalhar com produções vocais incomuns: oscilações microtonais, sons expirados, gritos, sussurros e até um arroto! Não consigo deixar de imaginar o que Mário de Andrade pensaria sobre isso… E, no entanto, esta é, talvez, uma das obras mais brasileiras sem sê-la. Explico: não há nada em Beba Coca-Cola que remeta à noção idealizada de “brasilidade”, seja em sua estrutura melódico-harmônica, em seu texto ou em seu modo de cantar; e, no entanto, é uma das obras brasileiras mais realizadas por coros fora do Brasil, gerando uma controversa identificação sobre o ser brasileiro.
O segundo vídeo apresenta a obra Carrega-me contigo no amanhã de Juliana Ripke sobre texto de Hilda Hilst. A obra, para coro feminino, foi encomendada pelo Coral Paulistano à compositora, que buscou expressar sua vivência e compreensão sobre o universo feminino a partir da leitura de uma escritora tão paradigmática.
Juliana Ripke é uma jovem e promissora compositora e arranjadora de São Paulo, atuando também como pesquisadora e desenvolvendo trabalhos sobre Heitor Villa-Lobos e Tom Jobim. A própria compositora explica no vídeo como o pensamento composicional por simetrias de Villa-Lobos inspirou sua escrita, embora, naturalmente, processada conjuntamente com suas outras referências e linguagem pessoal. Carrega-me contigo no amanhã é uma obra de extrema delicadeza, com belas soluções harmônicas, que demonstra o domínio de Ripke na escrita para vozes. O vídeo conta ainda com a participação da pianista Rosana Civile e da bailarina Camila Ribeiro, do Balé da Cidade de São Paulo. O contraponto entre a música e as cenas dançadas por Camila Ribeiro formam uma feliz conjunção audiovisual.
O terceiro vídeo também representa uma estreia mundial: trata-se da obra Libera me da série Motetos do pretérito de Antônio Ribeiro. A obra é dedicada à grande maestrina Naomi Munakata, que era a responsável pelo Coral Paulistano e que infelizmente nos deixou prematuramente, vítima da Covid-19. A série de obras foi escrita para coro de vozes iguais, podendo ser realizada tanto por homens como por mulheres; nesta montagem, foi realizada pelos tenores e baixos do Coral Paulistano. Libera me demonstra uma utilização de formas da música do passado, especialmente do Renascimento, embora com certos toques da música atual. Pela utilização do texto sacro em latim, pela escrita musical vinculada à música do passado e pelo modo de cantar, essa peça poderia ser facilmente identificada como de qualquer outra nacionalidade. O que há de brasileiro neste canto? Voltaremos à questão mais adiante.
Por fim, o último vídeo da série apresenta a Suíte dos pescadores de Dorival Caymmi com arranjo de Damiano Cozzella. Mais do que a composição em si, o arranjo de Cozzella tornou esta partitura uma das obras mais paradigmáticas do repertório coral brasileiro. É curioso o fato de se ter escolhido um arranjo para finalizar a série, uma vez que o Coral Paulistano tem um vasto repertório de composições brasileiras. Porém, entendo esta como uma escolha muito acertada. Desde o trabalho de arranjadores fundamentais como Marcos Leite, Samuel Kerr e o próprio Cozzella, cantar arranjos de músicas populares se tornou um dos aspectos mais marcantes do canto coral brasileiro. Há quem veja isso com maus olhos, como se o fato de se cantar arranjos tenha resultado num abandono da música escrita originalmente para coro. Prefiro pensar que o fenômeno dos arranjos de música popular atende aos interesses e necessidades dos coros brasileiros e, mais do que isso, contribuem para a formação da nossa linguagem de canto coral — para o nosso cantar brasileiro que, como diz Mário de Andrade, é mais do que apenas cantar em português.
Esta apresentação ainda encerra a série com chave de ouro por abrir ao público geral a possibilidade de cantar junto com os membros do Coral Paulistano. Isso reforça o sentido comunitário do arranjo na prática coral brasileira. Vemos nesse vídeo a participação de cantores (profissionais e amadores) de todo o Brasil e até do exterior que somaram suas vozes à construção desse emocionante trabalho.
O que estas quatro peças nos dizem sobre um “cantar brasileiro”? Para mim, fica evidente que cantar brasileiro, mais do que um conjunto específico de técnicas vocais propriamente nacionais, é assumir a diversidade da nossa gente. É entender que um país formado por tantas identidades não pode querer encontrar uma uniformidade de expressão. A série Cantar brasileiro do Coral Paulistano mostra a beleza da diferença, a diversidade de linguagens que formam nossa música. Creio que a escolha deste repertório foi muito acertada, da vanguarda mais rasgada (Beba Coca-Cola) ao sentimento mais profundo do cantar coletivo (Suíte dos pescadores) e apresentando criadores do presente, que pensam a música para além dos rótulos, seja no diálogo com a música do passado (Libera me) seja no diálogo com a contemporaneidade e suas questões (Carrega-me contigo no amanhã).
Destaco o trabalho da maestrina Maíra Ferreira que vem encontrando soluções inteligentes e criativas para conduzir o trabalho do Coral Paulistano durante o período de necessário isolamento social, sem perder de vista a qualidade sonora que sempre foi marca do grupo. Também destaco o excelente trabalho audiovisual realizado pela Interface Filmes com concepções de vídeo instigantes e que demonstram as potencialidades que existem na interlocução entre música coral e linguagem audiovisual, quando bem realizada. Por fim, parabenizo os cantores e cantoras do Coral Paulistano que seguem realizando trabalho de excelência em torno da música coral brasileira.