Duarte Pereira Martins e José Carlos Araújo | entrevista

Ana Salazar | fotografia

Duarte Pereira Martins e Nuno M. Cardoso | transcrição

 


Muito obrigado, Carlos Otero, por ter aceitado o convite da Glosas para esta entrevista. Gostaríamos de começar por lhe pedir que nos falasse de alguns aspectos que considere importantes dos seus estudos musicais e da sua carreira como cantor.

Eu fui para Paris por razões óbvias, visto que tinha 20 anos em 1963, portanto, já está tudo bem decidido. Fui “obrigado” – e felizmente! Tenho uma dívida para com Salazar [risos], porque estou há cinquenta anos em Paris, fiz 3200 representações teatrais, de ópera, opereta e comédia musical, cantei com todos os grandes, representei com os grandes actores, trabalhei com os grandes músicos… portanto, uma coisa riquíssima, riquíssima! Encenações, já fiz umas cinquenta, algumas em Portugal. Já não venho cá há alguns anos trabalhar, porque, enfim, as pessoas que têm responsabilidades artísticas têm outros nomes, mais ou menos conhecidos, mas que estão já dentro de uma certa linha. Eu estou encantado da vida, que eles trabalhem bem e aprendam bem, tanto como eu aprendi – e já não é mau…!

[…]

Na École Normale de Paris, onde estudei Canto, tive grandes professores e, sobretudo, aprendi muito nos grandes palcos. Tive essa sorte e essa honra, por exemplo, em Aix-en-Provence, com Berganza, Luigi Alva, Panerai, Stich-Randall, Regine Créspin… aqueles nomes que nos dizem muito e nos ensinam muito quando nós estamos atentos. Mas lá fora nunca fiz música portuguesa. Desde há uns anos, eu tenho dedicado o meu trabalho – não direi em conferências, porque não tenho competência para isso – em conversas, que faço há muitos anos, com o grande Mozart. Chama-se Conversando com Mozart. Não sobre Mozart, mas conversando com ele, porque eu falo e ele responde-me em música. 

Sobre música portuguesa fez alguma também? Em Sesimbra, por exemplo?

Em Sesimbra. Eu estou muito preso a Sesimbra, por várias razões. Vou para lá há muitos anos e agora, mais recentemente, graças ao trabalho com o Pedro Martins, do círculo António Telmo. Outro dia fiz lá uma destas conversas e estavam mais de 60 pessoas – foi preciso ir buscar cadeiras ao café ao lado porque não havia lugares para todos! Não é nada mau para uma aldeia de pescadores! Como eu costumo dizer ao Presidente, uma aldeia de pescadores que tem uma biblioteca de três pisos, um teatro de trezentos lugares, o Círculo António Telmo, uma revista filosófica, Filosofia Extravagante, também fundada pelo António Telmo… para uma aldeia de pescadores, não é nada mau! Aliás, foi assim que conheci a Glosas! Ali fiz uma conversa sobre música portuguesa, com compositores que eu não conheci, Vianna da Motta, Luiz de Freitas Branco. Não o conheci, mas conheci o Pedro e o João de Freitas Branco…

«Eu sei que tem havido muitos directores do Teatro de São Carlos, alguns até pessoas da profissão. Alguns, nem todos! Era o que faltava!… Se não, o que é os mandões iam fazer? Buscar pessoas que saibam? Isso não é bom… Quando um mandão vai buscar uma pessoa que sabe mais do que ele, é sempre um grande perigo para ele próprio.»

Tive também a sorte de estar ligado às tertúlias da Brasileira, que as novas gerações já não conheceram, infelizmente. Se eu lhe dissesse os nomes das pessoas com quem convivi (não digo vivi, mas convivi…), ficávamos apalermados! Conversava quase todos os dias com Fernando Cabral, maestro, Silva Pereira, Tavares Bello. Isso eram as pessoas com quem eu falava todos os dias. Vasco Barbosa, violinista, era um grande amigo meu, como a irmã, Grazi. Ruy Coelho, Frederico de Freitas, Joly Braga Santos, Giacometti… a Francine Benoît!…

Numa das últimas revistas, há uma rubrica, Compositores a Descobrir, onde lhe dedicamos algumas páginas.

Ela era; e de que maneira!… Éramos muito amigos: tive essa sorte. Como sabe, ela tinha uma escrita muito especial, muito rígida, muito severa. Eu estava quase sempre de acordo com ela. Nas óperas que encenei, ela disse quase sempre bem, não sei se porque achava bem, ou se julgava que tinha de ser simpática comigo (o que não acredito muito). Era muito exigente, uma grande profissional. Aliás, d’A Viúva Alegre fez-me uma crítica extraordinária, bem como da ópera de Salieri que eu fiz, também no São Carlos.

Está a par da crítica que se faz hoje em Portugal?

Não conheço nenhuma. 

E em França? Há alguma comparação com alguns anos atrás?

As coisas são completamente diferentes. Não quero estar a fazer um pouco a atitude dos antigos combatentes, eu que sou desertor; portanto é um paradoxo. Ou seja, não quero dizer que no meu tempo era melhor. Mas era diferente, com certeza, porque havia mais competência da parte dos críticos, tenho a certeza absoluta, da parte dos cantores e dos artistas em geral. Aliás, as críticas nunca foram a minha preocupação, pessoalmente, no que diz respeito ao que eu fazia. Isto porque, quando dizem bem, não dizem nada que eu não saiba já, e quando dizem mal, é a mesmíssima coisa!

A crítica pode dizer mal e ajudar o intérprete?…

Mas eu sei onde estão os defeitos. Se eu não sei onde estão os defeitos de um espectáculo meu, é porque eu não estou a par do que devo fazer ou do que posso fazer. Muitas vezes, nem sempre depende só da encenação: depende de como os actores evoluem, se conseguem representar… Sabe, com esta sorte que eu tive de ter um contacto, como amigo primeiro, e depois como intérprete, com os grandes, eles ensinaram-me tudo. E eu tinha tudo para aprender. Como toda a gente. Mas eu sabia que não sabia, o que, se calhar, não é o caso de toda a gente, penso eu. Não me empurre para uma análise da sociedade musical: se não, não saímos daqui!…

«Não conheço os nomes das pessoas que reconheceram o génio do Joly Braga Santos. Estou a falar enquanto ele era vivo, depois já não interessa. Ou do Frederico de Freitas.»

Sabe, quando eu falava com Ruy Coelho não discutíamos apenas de Música. Um músico como Ruy Coelho sabia muito, não há dúvida, e tinha percorrido o mundo como intérprete, como aluno, como professor, como compositor… mas, sobretudo, falávamos de outras coisas. Literatura – como sabe, ele colaborou com Fernando Pessoa! Eu era uma criança, tinha a sorte de falar com pessoas que conheceram o Fernando Pessoa… Tinha de aproveitar todas essas coisas. Aliás, como também o meu pai: o meu pai conheceu Fernando Pessoa. Não digo que era amigo dele, porque Fernando Pessoa não tinha amigos. Mas conversavam. Quero dizer, o meu pai ouvia. Que, aliás, era o que me acontecia também muito com o Ruy Coelho ou com o Frederico. Vou fazer-lhe uma confidência: o Frederico foi a primeira pessoa da música que me ouviu cantar. Um dia disse-me: “Seu Pai disse que você começou a cantar, gostaria de o ouvir.” Foi assim, eu comecei a cantar muito jovem, bastante de repente. Veja bem, a sorte que tem um jovem de 20 anos, de ter o Frederico de Freitas a ir lá a casa, nas Avenidas Novas, a acompanhar-me ao piano na Calúnia do Barbeiro de Sevilha. E depois deu-me a opinião dele. Sabe, quando se é jovem dá-se valor às coisas, mas não se conhece o que são as pessoas, quão importantes são. Eu observei isso várias vezes, mas uma criança de 12 anos não dá apreço nenhum a isso: a pessoa é simpática ou não é.

Carlos Otero (fotografia: Ana Salazar)

Depois não volta a conseguir esse contacto…

Depois as pessoas vão para outros sítios. Mas o Joly Braga Santos encontrei depois, e também o Lopes-Graça, é claro, e o Ruy Coelho. Eu estive dez anos sem poder vir a Portugal, por razões óbvias, mas quando regressei ainda cá estavam, felizmente! O Ruy Coelho, antes de me ir embora, disse-me: “Quero que você cante numa ópera minha!” Eu disse-lhe que com certeza, com todo o prazer, mas nunca aconteceu, porque quando regressei já vim como encenador; o Teatro de São Carlos nunca quis nada comigo.

E como foi, mais tarde, encenar no São Carlos?

Correu bem, acho eu!… Tive a sorte de insistir muito junto do director daquela época para que um jovem cantor, barítono (porque eu tinha um duplo elenco na ópera, salvo o Belcore), fosse convidado para trabalhar. Era o Jorge Vaz de Carvalho! Em relação aos outros compositores, eu tive sobretudo a percepção (não sei se estou errado, mas creio que não) naquela altura e ainda mais hoje, que eram pessoas infelizes. […] São todos infelizes porque é muito complicado ser compositor, assim como Joly, e ser tão pouco reconhecido, tanto pelas autoridades, aquelas que podem facilitar um pouco a vida deles, como pelo público também. O Fernando Cabral, grande maestro, também infeliz. Infeliz artisticamente, digo! Não estou a falar na vida privada de cada um. Mas artisticamente sim, tenho a certeza absoluta disso. Aliás, não se pode dizer que Beethoven fosse muito feliz. Schubert também não, nem Chopin. Pouco a pouco, vamos dizer que ninguém é feliz.

«…com Ruy Coelho não discutíamos apenas de Música. Um músico como Ruy Coelho sabia muito, não há dúvida, e tinha percorrido o mundo como intérprete, como aluno, como professor, como compositor…»

Outro dia uma senhora, numa conversa, fez-me uma pergunta muito pertinente, no bom sentido da palavra. Eu até disse que só lhe daria metade da resposta e que para o ano, quando voltar a Sesimbra, tentarei dar a outra metade. A pergunta era a seguinte: sendo a música uma coisa tão extraordinária, que dá felicidade a tanta gente, como ouvintes, como intérpretes, muitas vezes, uma plenitude total, por que razão os compositores são infelizes?

Os intérpretes também, muitas vezes…

Eu penso que é porque eles não são reconhecidos, muitas vezes. Meu Pai era amigo do Fernando Pessoa. Eu perguntei ao meu Pai, muitos anos depois desses encontros, se ele se tinha apercebido do génio de Fernando Pessoa. Ele disse-me que não, que não se tinha apercebido. Dê-me os nomes das pessoas que se aperceberam do génio de Joly Braga Santos. Na época dele, quem é que se apercebeu? Está difícil!…

É um problema relacionado também com a percepção que o público tem com a música contemporânea, nas épocas próprias?

Sim, mas o Joly Braga Santos não era tão-só música contemporânea. Era Música…! Mais tarde, mesmo assim, ele foi e depois regressou. Foi para aquele tipo de música menos explícito… Mozart dizia que para ele a composição musical era juntar as notas que se amam. Se isto não é uma definição máxima da Música, não sei o que possa ser. O Joly Braga Santos escrevia música assim, das notas que se amam. Não sei, não conheço os nomes das pessoas que reconheceram o génio do Joly Braga Santos. Estou a falar enquanto ele era vivo, depois já não interessa. Ou do Frederico de Freitas.

Frederico de Freitas

Chegou a conhecer bem Frederico de Freitas?

Falávamos muito de música! O Ruy Coelho também. Fomos bastante a casa de um amigo meu, porque ele não queria ir à Academia de Amadores de Música, por razões que eu desconhecia…. Mas ele não queria lá entrar… Enfim! Sobretudo, o que eu achava destas pessoas, a todos os níveis, porque eu conheci pessoas de todos os níveis (e de grandes níveis!), era aquela faculdade que eles tinham de ser pessoas simples. Eu não sei como são os chamados intelectuais de hoje em dia. Não os conheço, portanto não posso dizer se são simples ou não são. Nem posso dizer se eles existem. Se calhar não!… Não conheço. Mas naquela altura, como lhe disse, num espaço entre 9 e 20, conheci Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Abel Manta, Tomás de Figueiredo, Artur Duarte, António Silva, Pinto Quartin, Emílio Costa…

«Eles lá sabem a defesa que fazem para que a música portuguesa seja conhecida no estrangeiro. Eu não sei o que fizeram, porque nunca os vi e também nunca os ouvi. As únicas coisas que são conhecidas no estrangeiro, como sempre (não digo que não seja bom, pena é que só haja isso), é o fado, o futebol, Fátima: as festas (como diria Salazar). Uma vez, tentei influenciar nesse sentido o único Embaixador de Portugal em Paris que eu conheci em cinquenta anos (não é em cinco dias…) e que teve a amabilidade de me ouvir. Falámos muito. Eu disse tudo o que pensava. Ele disse que não podia fazer nada…»

A Cultura Portuguesa chega de alguma maneira a França, em termos gerais e em termos musicais?

Não faço ideia. Creio que não. Isso terá de um dia de perguntar aos responsáveis da Música, se existem (eu não sei se existem), num Ministério da Cultura (ou da Agricultura, não sei bem…). Eu tentei responder muitas vezes, mas ninguém me quis ouvir. Portanto, eles lá sabem. Eles lá sabem o que andam a fazer. Eles lá sabem a defesa que fazem para que a música portuguesa seja conhecida no estrangeiro. Eu não sei o que fizeram, porque nunca os vi e também nunca os ouvi. As únicas coisas que são conhecidas no estrangeiro, como sempre (não digo que não seja bom, pena é que só haja isso), é o fado, o futebol, Fátima: as festas (como diria Salazar). Uma vez, tentei influenciar nesse sentido o único Embaixador de Portugal em Paris que eu conheci em cinquenta anos (não é em cinco dias…) e que teve a amabilidade de me ouvir. Falámos muito. Eu disse tudo o que pensava. Ele disse que não podia fazer nada, e eu ainda menos. Conheci-o graças ao maestro Ivo Cruz, que era um grande amigo meu. E nunca se fez nada.

Eu pretendia que intelectuais franceses viessem a Portugal e escrevessem artigos para falar de música, de pintura, de escultura, mas isso não interessa a ninguém. A única pessoa que se tornou conhecida, e com todo o mérito, foi o Fernando Pessoa. Porque alguém disse “este que deixou para aqui escritas trinta mil folhas, pode ser que valha alguma coisa”. Então começaram a traduzir, etc. Mas é único. Ninguém conhece Camões, Herculano, Fialho de Almeida, Eça de Queiroz, Camillo… Conhecem um pouco, claro, Saramago, mas isso por outras razões – por razões naturais, porque é o prémio Nobel, mas antes de o ser por outras razões também: por aqueles apoios que certas pessoas podem ter, junto de certas coisas… Mas não conhecem mais ninguém; e em Portugal estão todos muito contentes! Aliás, Portugal está-se nas tintas para tudo o que seja no estrangeiro, excepto quando é para ir buscar dinheiro. É só isso que interessa a todos os portugueses que mandam; os outros, coitados, é só pagar. Ninguém se interessa por coisa nenhuma. Ninguém se interessa por coisa nenhuma, a não ser por eles próprios – e aliás já é bastante! Quando se abrem os jornais vê-se logo por onde eles andam. Não vamos entrar mais por aí, que estamos a falar de música! Esta é a minha opinião. Como eu sou um parisiense de cinquenta anos posso dizer isso, não é? [risos] 

Estava a dizer-me que foi na direcção de Saramago do Diário de Notícias, que Ruy Coelho foi despedido como crítico de Música.

Sim, sim. Procure! Se interessa! Se não interessa, não procure. Isto faz parte daquelas coisas que eu sei, porque me interesso sempre por tudo o que diz respeito à vida. O resto também é importante: a Filosofia é a arte de aprender a morrer, não só a viver. Também há filosofia na música. Nietzsche também escreveu Música. Wagner também escreveu livros sobre Filosofia, e era um grande compositor. Como vê, as coisas estão absolutamente ligadas. 

«Por que razão a música portuguesa não é tocada em Portugal? Falo nos concertos importantes, na Gulbenkian… No resto, na Sé da Guarda, com certeza que há música portuguesa, mas não tem projecção! Eu penso que isso se deve ao facto de nunca terem maestros portugueses. Eu não sei se existem, se são bons… Não sei, nunca os vi, porque eles nunca dirigem. Estou a falar de uma maneira geral, de uma pessoa que não vive cá. Quando cá venho, vejo no jornal, Gulbenkian, Michel Corboz… que já tinha obrigação de conhecer a música portuguesa…!»

Há alguma mensagem em particular que queira transmitir, baseando-se até nas suas Conversas com os compositores?

Como se dizia de Florbela Espanca, ela tinha coisas a mais para um só corpo, por isso é que se matou. Mário de Sá-Carneiro também… Mas o que eu gostaria de passar como mensagem é que eu aprecio a vossa revista. Percorri-a bastante, porque não conhecia, e o que acho importante é o defenderem a música portuguesa. Têm toda a razão. É necessário isso. Por que razão a música portuguesa não é tocada em Portugal? No estrangeiro ainda menos, é evidente. Falo nos concertos importantes, na Gulbenkian… No resto, na Sé da Guarda, com certeza que há música portuguesa, mas não tem projecção. Eu penso que isso se deve ao facto de nunca terem maestros portugueses. Eu não sei se existem, se são bons… Não sei, nunca os vi, porque eles nunca dirigem. Estou a falar de uma maneira geral, de uma pessoa que não vive cá. Quando cá venho, vejo no jornal, Gulbenkian, Michel Corboz… que já tinha obrigação de conhecer a música portuguesa…! Aqueles que vêm cá pouco tempo, nessas condições só têm o repertório deles. E não há ninguém com competência ou autoridade para lhes mostrar música portuguesa. Digo competência em relação à música portuguesa, porque do resto eles sabem tudo. Já falei com alguns e sei que eles sabem muito de Mozart, de Beethoven… Eu sei que já deram lá um lugarzito a um português, para fazer as honras da casa, mas não é nos grandes concertos.

«Não sei se era o facto de não existir liberdade de expressão e outras liberdades… As pessoas tinham de se fechar. Eu conheci isso. As pessoas fechavam-se e eu tenho impressão que o facto de a pessoa não ter liberdade para se exprimir faz com que ela adquira outra forma de talento, digamos. Guardar e só sair o que é essencial. Não ter liberdade para escrever, estar sozinho, não poder conversar com ninguém sobre política, dava de facto às pessoas a faculdade de ter uma outra maneira de apreender a vida e o contacto com os outros.»

Mas um maestro como Gianfranco Rivoli dirigiu a estreia de La Spinalba.

Sim, eu sei, um maestro italiano. A Spinalba foi a Paris em representação de Portugal e da Gulbenkian, já lá vão cerca de quarenta anos. Cantada em italiano: no elenco havia quantos portugueses?

Fernando Serafim…

E pronto! Não havia mais ninguém…! Outro dia, um amigo seu é que me disse que isso já tinha sido descoberto, que eu sabia que havia na Biblioteca de Paris, na musical, uma partitura de Marcos Portugal, Le nozze di Figaro, quase contemporânea da de Mozart. Parece que ela já foi tocada e descoberta; que fui eu que a descobri. Não tenho é autoridade nenhuma para fazer seja o que for. Fui eu com o Ivo Cruz. Fomos os dois à Biblioteca Nacional, em Paris, depois de ele ter estado em minha casa para tratarmos desse assunto. A minha ideia era fazer um microfilme (há 30 anos era a única hipótese), para analisar, para saber se era boa ou não, que ninguém sabia, nem a conhecia.

«Como vê, eu tenho uma certa dificuldade em aceitar aquilo que é feito pelos mandões. Foram os mesmos que mandaram no Mozart, no Beethoven, no Schubert. E ainda cá estão, porque estão bem agarrados, coitados; porque no dia que não mandarem nada, vai ser um problema…»

Foi agora feita, recentemente, só a abertura…

Pois, mas há uma ópera!… Se não foi feita, ainda lá está, ao pé de minha casa! Sabe, como vê, eu tenho uma certa dificuldade em aceitar aquilo que é feito pelos mandões. Foram os mesmos que mandaram no Mozart, no Beethoven, no Schubert. E ainda cá estão, porque estão bem agarrados, coitados; porque no dia que não mandarem nada, vai ser um problema… Aliás, graças à Antoinette de Freitas Branco, um director do São Carlos teve a amabilidade de me receber. Quando eu entrei no gabinete dele, o bom-dia que recebi foi “Não tenho dinheiro para os encenadores portugueses”. E eu disse: “Então boa tarde. Eu vou-me embora. Não vale a pena estarmos a conversar.”

«Depois, eu soube que ele tinha encontrado dinheiro para os encenadores portugueses, porque ele próprio, como director do Teatro, se contratou como encenador e fez uma encenação de Macbeth, de Verdi. E ele teve toda a razão em contratar-se como encenador, porque era o único director no mundo que o poderia fazer: claro que nenhum outro teatro o contrataria…»

Mas só para os Portugueses?

Foi o que ele disse. Dois anos depois, eu soube que ele tinha encontrado dinheiro para os encenadores portugueses, porque ele próprio, como director do teatro, se contratou como encenador e fez uma encenação de Macbeth, de Verdi. E ele teve toda a razão em contratar-se como encenador, porque era o único director no mundo que o poderia fazer: claro que nenhum outro teatro o contrataria… Esse homem, Ribeiro da Fonte, andava a meter água por todo o lado! 

Tem seguido a situação do teatro, hoje?

Não conheço. Eu sei que tem havido muitos directores do Teatro de São Carlos, alguns até pessoas da profissão. Alguns, nem todos! Era o que faltava!… Se não, o que é os mandões iam fazer? Buscar pessoas que saibam? Isso não é bom… Quando um mandão vai buscar uma pessoa que sabe mais do que ele é sempre um grande perigo para ele próprio. Penso que isso é um problema para certas pessoas. Mas não pense que eu quero um lugar em qualquer sítio! Já dei para essa paróquia! Já tive uma companhia de ópera, já tive tudo. O que eu quero agora é paz e sossego. […]

«O único que se tornou conhecido, e com todo o mérito, foi o Fernando Pessoa. Alguém disse “este que deixou para aqui escritas trinta mil folhas pode ser que valha alguma coisa”. Então começaram a traduzir, etc. Mas é único. Ninguém conhece Camões, Herculano, Fialho de Almeida, Eça de Queiroz, Camillo… Conhecem um pouco, claro, Saramago, mas isso por outras razões – por razões naturais, o prémio Nobel, mas antes de o ser, por outras razões também: por aqueles apoios que certas pessoas podem ter junto de certas coisas… Mas não conhecem mais ninguém; e em Portugal estão todos muito contentes!»

No mundo musical como eu o vejo (em Portugal não conheço, só conheço cantores, mas não têm peso para decidir ou para que os mandões comecem a ouvir as pessoas que sabem o que estão a dizer), os artistas não estão com a medida exacta do que se deve fazer, no sentido artístico, no sentido de trabalho. Cantar ópera não é só abrir a boca. E os encenadores não sabem explicar como trabalhar, como encenar. A música não é só cantar. A música tem música! Antes de cantar, é preciso que seja música. Antes ser música, tem de haver um estilo, tem de haver inteligência, se puder ser. Como uma Callas, que era não apenas uma voz fantástica, mas uma artista fantástica, não era só a voz. Naquela altura, havia a Tebaldi, que tinha talvez ainda uma voz mais bonita que a da Callas, mas faltava qualquer coisa. Faltava outra inteligência musical, inteligência dramática. Eu ouvi-a muitas vezes em Paris, e aprende-se muito, quando se está atento. Tal como se aprende muito com os músicos, com os pintores, com os filósofos… Até com as crianças! Eu tive um projecto de ópera, que era trazer crianças para a ópera. E trouxe oito mil, durante 10 anos.

Ópera infantil, que está muito na moda?

Não, não: Ópera! É evidente que está na moda… Acham que as crianças não podem compreender outra coisa… Foi O Barbeiro de Sevilha, Don Pasquale, O Elixir do Amor, Carmen, Fausto, Don Giovanni, A Flauta Mágica (em alemão, para franceses, com três horas de espectáculo…)! 

Como correu essa experiência?

O que é preciso é saber fazer e como lá chegar. E vim cá a Portugal, fazer com crianças que nunca tinham ouvido ópera nas suas vidas, tal como os pais, os avós ainda menos. Dessa feita foi com a Cenerentola, de Rossini, em italiano, com os textos escritos em português. E eles assistiram e adoraram! Então as crianças também gostam de ópera de adultos!… Não é preciso andar com brincadeiras… Ou então fazemos brincadeiras como a Gulbenkian fez com uma Flauta Mágica adaptada para crianças, onde mudaram a história toda… Foi um mandão que disse que o Mozart e o Schikaneder, que fez o libreto, não percebiam nada do assunto e eram uns imbecis… Tenho lá cinco mil desenhos em casa, quatrocentos de portugueses, a propósito desse espectáculo, e depois fiz uma exposição. Cá, foi no CCB. A seguir fiz uma comparação de desenhos entre os portugueses e os franceses e as cores dos desenhos dos portugueses são muito mais alegres. Por causa do Sol! Mas isso os mandões se calhar não sabem… Não conhecem as crianças, só as óperas para crianças… Repare, eu não estou contra. Tudo o que seja música eu estou a favor. O que não gosto muito é que as pessoas digam: “eles não gostam”. Eu digo-lhe que tive mais dificuldade no primeiro ano, com a minha experiência, para tentar ir para a frente com este espectáculo de ópera, que era o Barbeiro de Sevilha, uma coisa de compreensão simples, por causa dos professores! Os professores é que não queriam!… Ainda mais quando comecei a dizer que o espectáculo tinha de ser feito à noite…! Mas o que é preciso é pedir as coisas como deve ser, assim como eu pedi às crianças que se vestissem: “assim como os cantores se vestiram para vos receber, vocês têm de se vestir também”. Eles estavam encantados e aplaudiram de pé! Mas andei nas escolas a falar de Rossini, com uma cantora a cantar a cappella, para mostrar o que era ópera, porque eles não sabem. Preparei um dossier com informação, para eles estudarem e mostrarem aos alunos… Tudo isto. E os cantores estrangeiros que vêm cantar ao São Carlos também vão cantar às escolas? Então deviam ir! E os músicos não tocam nas escolas? Então deviam ir tocar! Estou a falar nas orquestras todas, não só em Portugal! Se isso fosse uma hipótese de trabalho!…

«Eu não sei como são os chamados intelectuais de hoje em dia. Não os conheço, portanto não posso dizer se são simples ou não são. Nem posso dizer se eles existem.»

Um grande amigo meu, que é um grande maestro, Jean-Claude Casadesus, director da Orquestra de Lille há quase trinta anos, faz isso em França. Então é porque se pode fazer! E as crianças adoram a música! Se não se faz, é por causa da crise, mas da crise mental!… O que eu acho uma diferença enorme é que as pessoas, naquele tempo, tinham mais tempo, conversavam, diziam coisas interessantes. As pessoas que ouviam aprendiam coisas interessantes. E não tinham a pretensão de serem grandes génios. Quando se falava com Joly Braga Santos, e que andava sempre na Lua. Coitado…! Uma vez encontrei-o na Avenida da Liberdade, ele sentado na beira do passeio, com os pés na rua, com um papel, e os automóveis a passar.

Conta-se que foi atropelado várias vezes…

Sim, porque ele atravessava assim de qualquer maneira. Agora, o que é melhor é ter pessoas assim, que têm génio, que o sabem (o que é uma infelicidade, saber que se tem génio e ninguém reconhecer), ou ter pessoas que têm uma certa autoridade e que, em vez de escreverem à beira do passeio, estão a fazer as contas ao dinheiro que têm no banco? Há aí uma senhora que parece que está a fazer um furor fantástico com umas exposições extraordinárias. Não posso dizer se ela tem génio, porque não a conheço. Também não tenho intenção nenhuma de travar conhecimento…

[…]

Adolfo Casais Monteiro, quando eu tinha doze anos, era muito amigo do meu pai. Correspondia-se com Fernando Pessoa, e eu aproveitava para lhe perguntar umas coisinhas. Ele telefonava lá para casa, para eu ir ter com ele à Rua de Santa Justa. Depois íamos para o Café Nicola, que era mesmo ali ao pé, e o Adolfo Casais Monteiro lia-me os poemas antes de serem publicados, para ter a opinião de uma criança, apenas! Já não sei o que lhe respondia, mas já viu a honra que isso é? O Pinto Quartin, que foi um grande filósofo, grande escritor, pai da Glicínia Quartin, actriz, tinha-me dado a alcunha de “o Pagão”, porque eu pedia dinheiro ao meu pai, no café, para pagar os cafés, e tinha a humildade de me contar muitas histórias. Eu julguei que eram histórias, e guardei-as. Anos mais tarde, quando cheguei a França, reparei nos contos de Maupassant e relembrei-me de Pinto Quartin. Ele contava-me contos de Maupassant, como se fossem histórias. Não sei se era o facto de não existir liberdade de expressão e outras liberdades… As pessoas tinham de se fechar. Eu conheci isso. As pessoas fechavam-se e eu tenho impressão que o facto de a pessoa não ter liberdade para se exprimir faz com que ela adquira outra forma de talento, digamos. Guardar e só sair o que é essencial. Não ter liberdade para escrever, estar sozinho, não poder conversar com ninguém sobre política, dava de facto às pessoas a faculdade de ter uma outra maneira de apreender a vida e o contacto com os outros. A Rússia teve isso… As coisas que saíram na clandestinidade são incríveis! As pessoas eram; não precisavam de o demonstrar; eram. Hoje as pessoas têm. Já não é a mesma coisa!

[…]

Lembro-me de repente de Natália de Andrade, e tem de haver uma maneira um bocado terna de falar dela, embora ninguém gostasse dela. Eu, pela minha parte, gostava muito dela, porque era uma pessoa sincera. A paixão dela era a Ópera: ela vivia para a Ópera. Tinha muitas dificuldades de dinheiros… Aquilo que outro dia um amigo meu me mostrou, e eu ouvi, é uma coisa horrorosa. Mas já naquela altura era assim, não era da idade… Ela, porém, gostava tanto…! Também me acompanhou, conheci até a mãe dela. Eram duas senhoras muito ternas, nesse sentido, com a aquela sinceridade que eu encontrei raramente num cantor, nos verdadeiros. É aquela pessoa que não é nada, que o sabe, mas não o quer admitir. Temos visto pessoas assim. Eu tenho uma certa pena. Ela até me oferecia os discos que saíam; era uma coisa horrorosa…

Carlos Otero (fotografia: Ana Salazar)

É um caso de aproveitamento dos editores?

Eu tenho os discos, com dedicatória e tudo! Mas sei que as pessoas ouvem para fazerem pouco dela, e eu não sei se isso é uma coisa bonita… Não sei, visto que eu também lá estive dentro – na música, no canto. Outro dia, numa conferência que fiz sobre Verdi, falei num filme que foi rodado na casa que ele fundou em Milão: uma casa de repouso. Foi filmado com as pessoas que estão lá a viver, a Tosca. Eu não quis ver um filme assim, cantado com pessoas nessas circunstâncias, porque isso é horroroso para mim. Há um lado humano. Não é porque você já não consegue cantar que não deixa de ser um ser humano… não gosto muito disso: fiquei com pena.

Pena também é que não haja muita coisa gravada de música portuguesa. Eu tinha pouco quando fiz uma conferência sobre música portuguesa, agora já há um bocadinho mais. Outro dia fiz uma experiência com uma grande amiga que adora Wagner e vai todos os anos a Bayreuth. Eu disse-lhe que tinha uma coisa para ela ouvir e passei. Ela ouviu e disse: “Isto é capaz de ser Liszt”… E eu disse-lhe que era mais ou menos. Era Vianna da Motta! É música em qualquer parte do mundo, excepto em Portugal, claro!

«[…] isso é uma coisa que devemos pedir aos professores: que façam perguntas às crianças, e que as deixem ouvir música!»

Uma criança que ouve a Rainha da Noite e diz “Isto enche o coração…!”, ou uma rapariga que me diz “Não consigo dizer nada!…” Se eu vos mostrasse as cartas que tenho lá em casa!… Tenho um desenho de um miúdo que se chama Tomás, que é Mozart a tocar cravo. Tem o desenho e umas frases: “Mozart: para o Carlos, o maior dos compositores”. Para o provocar, perguntei-lhe quem era o maior compositor, se eu ou Mozart. Ele respondeu-me: “Claro que o Mozart!” E eu perguntei: “Então, o que sou eu?” “–Tu? Tu és o intermediário.” E eu disse cá para comigo: este já me ensinou muito! Já me ensinou o que eu ando aqui a fazer. E nas escolas portuguesas também me fazem muitas perguntas! Outro dia, uma criança perguntou-me porque tinha ido à escola falar de Rossini e eu respondi como podia: que gostava de música, que queria partilhar… Outro dia, numa conversa sobre Beethoven, uma criança que estava com os pais perguntou-me o que diria eu a Beethoven se o encontrasse. E não soube responder: fiquei parvo! Diria “Obrigado. Obrigado por teres existido. Eu sei que foste infeliz, mas eu fui muito feliz com a tua música.”

Eu, que gosto de provocar, pergunto aos professores, quando vou às escolas, se eles sabiam que as crianças tinham aquilo tudo lá dentro. Eles muitas vezes não sabem, porque o que eles fazem é meter a matéria dentro das cabeças das crianças, sem fazer muitas perguntas. O que elas pensam “já não vem no programa”. Eu penso que isso é uma coisa que devemos pedir aos professores: que façam perguntas às crianças, e que as deixem ouvir música!


Excertos da entrevista publicada na Glosas 16.

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