texto de Duarte Pereira Martins e José Carlos Araújo
As obras de Seixas incluídas neste terceiro CD da gravação integral provêm, com excepção das sonatas K. 14 e K. 20, de um manuscrito copiado em meados do séc. XVIII e conservado actualmente na Biblioteca Nacional de Portugal. Incluído num vasto espólio recolhido desde as primeiras décadas do séc. XX pelo Dr. Ivo Cruz, este códice, conhecido comummente, desde que em 1971 passou a integrar as colecções públicas, pelo nome do seu último possuidor, é a maior colecção de música de Seixas até hoje identificada, contendo 47 tocatas copiadas de forma consecutiva e sem a interpolação de obras de outros compositores comum nas restantes fontes setecentistas. Este hábito, característico da cópia privada, tendente para a secundarização dos aspectos autorais e para a concessão à prática da adaptação, levanta frequentemente questões de atribuição em obras sem autoria expressa; esta compilação assume, assim, uma importância fulcral para o estabelecimento do corpus seixasiano, pela segurança da atribuição de todas as sonatas nele contidas, a que acrescem a acuidade invulgar da transmissão manuscrita e a extraordinária qualidade da maioria das obras exaradas. Destas, 25 são cópias únicas, editadas pela primeira vez em 1985 como volume XXXIV da série Portugaliæ Musica da Fundação Calouste Gulbenkian, na sequência da publicação inicial de 80 sonatas, da responsabilidade de Macário Santiago Kastner, em 1965. O eminente musicólogo britânico dá conta, no prefácio a esta edição (Portugaliæ Musica, vol. X), de que já tinha conhecimento da existência do códice, mas que então não lhe fora permitido consultá-lo senão superficialmente, o que impedira a transcrição e colação das lições textuais das sonatas nele contidas.
O conhecimento do ms. Ivo Cruz revela-se ainda fundamental pelo testemunho da assimilação dos princípios do chamado estilo galante na música para tecla em Portugal na primeira metade do séc. XVIII. Seixas apresenta sempre a plena consciência da sua actualidade artística, perfeitamente a par dos principais representantes do desenvolvimento do estilo galante no seu tempo, como Lodovico Giustini e Azzolino Bernardino della Ciaja, cujas obras publicadas certamente conheceria. Uma das formas características da nova sensibilidade, o minuete galante, foi cultivada por Seixas de forma contínua ao longo de toda a sua obra, notado em 3/8 e com texturas transparentes, o que é observável em todos os exemplos aqui apresentados; a sonata K. 14, transmitida pelo Ms. 48-I-2 da Biblioteca da Ajuda, apresenta mesmo a associação invulgar de dois minuetes, que interpretamos, segundo uma prática comum no séc. XVIII mas mal documentada em Portugal, como pressupondo a repetição do primeiro minuete após o segundo. A sonata K. XXIII, em Lá menor, testemunha, como raramente na obra de Seixas, a alternância entre affetti de grande expressividade vocal e outros de carácter intempestivo e agitado; a sonata em Fá sustenido menor, K. XIV, única nesta tonalidade e também seguida por um minuete acentuadamente galante, leva ao extremo o carácter experimental da invenção motívica, com uma clara tendência para o desenvolvimento de dois temas diferentes, antevendo a disposição temática da sonata pré-clássica.
A colecção melographia portugueza regressa ao cravo Antunes de 1758 (Tesouro Nacional) para a continuação da integral das obras para tecla de Carlos Seixas.
Devedoras de outro género – a Pastorale de inspiração organística – são as sonatas K. 20 (aqui apresentada pela segunda vez, depois de uma primeira gravação em orgão) e K. 51, ambas notadas em 3/8 e com uma estrutura homofónica: esta última, em Sol menor, tem aqui a estreia moderna do minuete preservado apenas pelo Ms. Ivo Cruz, extremamente invulgar, pela variedade das texturas da sua composição. De forma diversa, e não somente pela inspiração que encontra num género orquestral, o concerto grosso, também a sonata K. III é única na produção de Seixas, assemelhando-se às transcrições de concertos de Vivaldi correntes no séc. XVIII e preservadas em colectâneas como o Livro de Anne Dawson. Em contraste acentuado, esta sonata é seguida por um dos minuetes mais expressivos do autor, em que a singularidade da invenção melódica assume um carácter melancólico pouco comum mesmo na obra do mestre conimbricense.
Cumpre agradecer ao Museu da Música a renovada autorização para a gravação no cravo de Joaquim José Antunes (1758). Para a presente gravação, fruto de um protocolo da iniciativa do MPMP, que encontrou o acolhimento do Museu, procedeu-se a uma nova harmonização deste instrumento recorrendo a materiais originais, procurando regular o mecanismo e optimizar as condições da sua utilização. Os constrangimentos de natureza logística do recurso a um instrumento classificado como Tesouro Nacional não nos pareceram, levantando embora problemas técnicos e reflectindo-se em aspectos artísticos deste registo, impossibilitar a gravação, face à extraordinária importância organológica do cravo Antunes.
CD disponível aqui.
Texto originalmente publicado na Glosas 9 (2013).