texto de Duarte Pereira Martins e José Carlos Araújo


Decidimos dedicar o quarto CD desta gravação integral ao mais recentemente descoberto conjunto de sonatas de Carlos Seixas. Copiado em meados do séc. XVIII e proveniente da livraria do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, o manuscrito 5015 conserva-se desde 1994 na Biblioteca Nacional, em Lisboa. O primeiro possuidor deste códice, por quem o conjunto das doze sonatas ali preservadas poderá ter sido coligido, foi o organista crúzio D. Jerónimo da Encarnação, contemporâneo da sua composição, tendo o manuscrito passado para a guarda do mosteiro após a sua morte, em 1780.

A biblioteca de Santa Cruz foi responsável pela cópia e preservação de grande parte da obra do mestre conimbricense, que deverá ter tido desde a juventude uma ligação ao mosteiro que se perpetuou até depois da morte, em 1742. Através do catálogo de D. Pedro da Encarnação (Bibliothecae Regalis Monasterii S. Crucis Collimbriensis Catalogus II, p. 631, art.º 42) conhecemos o título original desta colecção, em que se conservam oito sonatas (II, III, IV, VII, VIII, IX, XI, XII) como exemplares únicos: Tocattas per Cembalo del sig.r Giuseppe Antonio Carlo e Sexas.

Objecto de uma edição crítica da responsabilidade do musicólogo João Pedro d’Alvarenga, em 1995, quando estas obras foram também gravadas pela primeira vez, na interpretação de Rui Paiva no cravo histórico de Joaquim José Antunes, de 1758 (colecção instrumental do Museu da Música), o ms. 5015 é considerado uma das mais antigas fontes – senão mesmo a primeira – do corpus seixasiano. O códice, ricamente encadernado, parece ter sido organizado de forma metódica, atendendo à disposição das primeiras oito sonatas por uma ordem ascendente de tonalidades, a partir de Sol. A caligrafia, visivelmente cuidada nos primeiros fólios, torna-se mais confusa e irregular à medida que avançamos na colecção, contrastando, por exemplo, com a consistência do copista a quem devemos o manuscrito coevo proveniente da colecção Ivo Cruz (ms. CIC 110, Biblioteca Nacional), de muito maiores dimensões.

CARLOS SEIXAS | Sonatas (IV)

O quarto volume da inédita integral para tecla de Seixas dedica-se ao conjunto de 12 sonatas do manuscrito 5015 da BNP.

Para reflectir a diversidade estilística deste conjunto recorremos a dois instrumentos de tradições muito diferentes, cujas características estruturais e sonoras realçam aspectos distintos da composição para instrumentos de tecla em Portugal na primeira metade do século XVIII. Pela primeira vez nesta integral são usados instrumentos modernos, reproduções fiéis de originais dos sécs. XVII e XVIII devidas a dois dos mais célebres luthiers dos nossos dias e pertencentes a colecções privadas de Lisboa.

Sessões de gravação (cravo Klinkhamer-Amir 2006, cópia de Vater). fotografia: Ana Salazar/MPMP

O primeiro cravo, construído por Ton Amir e Johannes Klinkhamer em Amesterdão em 2006, é uma reprodução de um original de Christian Vater (Hannover, 1738), hoje no Germanisches Nationalmuseum (Nuremberga). Assinado de forma discreta, apenas sob o tampo harmónico, este instrumento simples de características invulgares é o único cravo construído por Vater que nos chegou, dentre uma produção extensa. Reunindo diferentes aspectos de tradições europeias, como a antiga francesa e a alemã, evidentes na concepção da caixa, o encordoamento integral em latão, numa escala curta, confere-lhe características italianizantes e uma grande clareza tímbrica.

Cravo von Nagel 1992, cópia de Giusti (teclado: pormenor). fotografia: Ana Salazar/MPMP

Reinhard von Nagel construiu em Paris, em 1992, a cópia que utilizámos de um instrumento italiano anónimo de grandes dimensões datado de 1693, com dois registos independentes de 8’ e inserido numa caixa exterior decorada. Preservado actualmente na Smithsonian Institution (Washington), este instrumento, cuja assinatura se perdeu, mas que podemos atribuir a Giovanni Battista Giusti, representa plenamente as características da construção de cravos no centro de Itália no final do séc. XVII, que influenciou decisivamente a tradição ibérica do século seguinte. A cópia estendeu a oitava superior até ré3, indispensável para a música de Seixas, que em Lisboa terá decerto conhecido instrumentos muito semelhantes.

Estes instrumentos poderão ser ambos ouvidos ainda ao longo de outros volumes da integral, em que procurarão, como aqui, salientar aspectos particulares da obra seixasiana.


CD disponível aqui.

Texto originalmente publicado na Glosas 10 (2013).

Sobre o autor

Imagem do avatar

Licenciado em piano pela Escola Superior de Música de Lisboa, na classe de Jorge Moyano, concluiu o Conservatório Nacional com a classificação máxima, tendo aí estudado com Hélder Entrudo e Carla Seixas. Premiado em diversos concursos, apresenta-se em concerto em variadas formações. Estreia regularmente obras de compositores contemporâneos. Gravou para a RTP/Antena 2, TV Brasil e MPMP: editou, em 2020, o CD “La fièvre du temps” em duo com Philippe Marques. É membro fundador do MPMP Património Musical Vivo, dirigindo temporadas e coordenando inúmeras gravações. Termina, actualmente, o mestrado em Empreendedorismo e Estudos da Cultura do ISCTE. Foi director executivo da GLOSAS entre 2017 e 2020.