CELSO LOUREIRO CHAVES. Balada para o avião que deixa um rastro de fumaça no céu / Estética do Frio II. Orquestra de Câmara Theatro São Pedro, Antônio-Carlos Borges Cunha et al. (direcção), ed. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2013

Cor: à semelhança da obra de Eduardo Vieira da Cunha (outro artista porto-alegrense) que ilustra o disco, a música de Celso Loureiro Chaves não prescinde da exuberância da cor – mesmo quando as peças reunidas neste primeiro CD monográfico empregam forças tendencialmente homogéneas no que ao timbre diz respeito. Quer Balada para o avião que deixa um rastro de fumaça no céu, de 1980 (uma peça ainda de juventude dedicada ao seu mestre), quer Estética do Frio II, de 2005 (uma “sequência de três histórias interligadas”), interagem, mesmo com 25 anos de distância a separá-las, com um ecléctico percurso de citações e “fiapos de memória”. O resultado é uma música em constante tensão com o seu próprio devir e percorrida por um pathos assumido, que raramente se permite desfocar os seus propósitos ou habitar demoradamente lugares de conforto; música de arestas bem definidas, sem medo de oitavas, uníssonos, ecos, repetições, insistências ou transições abruptas.

A retórica de Loureiro Chaves não intui: antes afirma ou dispara, e fá-lo com sofreguidão que previne contra qualquer sensação de stasis que dure mais do que um momento breve. Abundam materiais estranhos, sejam alusões manifestas (como a falsa afinação com que principia a Balada para o avião que deixa um rastro de fumaça no céu), citações (de Berg, Bartok, Machaut na Balada, Berlioz, o Gloria Patri gregoriano, Vinícius de Moraes ou Luiz Melodia em Estética) e rememorações de música anterior do próprio autor, e o espaço aurático entre sucessivos lances é percorrido num só salto estremunhante. Mesmo em música feita de blocos sólidos, os materiais são sujeitos a tal força centrífuga que inevitavelmente se desagregam, com os estilhaços a sugerirem a um tempo uma míriade de novas direcções. Sobre esta condição da música, o compositor remete-nos para o penúltimo romance de Italo Calvino, Se numa Noite de Inverno um viajante: “Evoco de uma vez uma quantidade de histórias, pois quero que em torno da narrativa se sinta a presença de outras histórias, até à saturação (…), um espaço repleto de histórias que não é outra coisa do que o tempo da minha vida, no qual, como no espaço, é possível deslocar-se em todas as direcções…”

Através das notas no livrete que acompanha o CD, o compositor lega-nos ainda outra pista de interpretação (muito embora certamente não o faça de forma intencional): os textos são bilingues, mas Celso não se permite reproduzir em inglês mais do que um terço do texto original. Isto remete-me para duas reflexões pertinentes quanto ao modo de fazer e ouvir esta música. Diz-nos Jacques Derrida, como Calvino, um luzeiro do pensamento pós-modernista, que o acto de traduzir “não reproduz, não restitui, não representa” e certamente não devolve o sentido do original a não ser em “pontos de contacto” (Des Tours de Babel). Ao invés, uma tradução coloca ambas as línguas em expansão simbólica. De facto, a tentativa de restituir o sentido do texto original redunda na inevitável transformação da matéria, da mesma forma que as citações de que o compositor se apropria – muitas vezes enquadradas por materiais de características pouco salientes, com as suas possibilidades em aberto, como um meio aquoso que aguarda um soluto ou um cenário vazio onde ainda não entraram personagens – não consideram sequer ter o mesmo seguimento que as suas encarnações originais: ao invés disso, como que escolhem mostrar novas subtilezas, outros impulsos, diferentes cargas semânticas. À superfície, as justaposições activam de maneira eficaz uma complexa polifonia subterrânea que opera ao nível da memória de trabalho com que gerimos o presente e filtramos a experiência da audição de uma peça. Assim, um significado nunca está presente, mas é antes intuído na relação de uma figura com as restantes e, por isso, é imbuído de tensão, por muito familiar que aquela nos pareça.

Por outro lado, o facto de Celso Loureiro Chaves não atribuir senão meia página a cada uma das versões em inglês das suas notas obrigou a uma focagem particularmente aguda sobre o que o compositor terá entendido como essencial. Noto, interessado, essas escolhas, bem como a sua relevância para este género de construção: o que sobrevive, afinal, numa citação ou tradução? A um primeiro golpe de vista, estaria tentado a afirmar de que o texto inglês falava de uma peça distinta. O que se torna extemporâneo sem as raízes no contexto original? O que resta: a estrutura, por ser exacta, ou a poesia, por ser maleável?


Recensão publicada originalmente na Glosas 14.

Sobre o autor

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Luís Salgueiro é licenciado em Composição pela Escola Superior de Música de Lisboa. Para além da sua actividade criativa, dedica também a sua energia à preparação de partituras e musicografia, primeiro como 'freelancer' e actualmente como coordenador das actividades editoriais do MPMP, Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa.