Poderão um coro amador, um quarteto de cordas profissional e uma banda filarmónica entender-se?
Esta foi a aposta de Francisco Brazão, maestro do Coro dos Amigos, para o concerto de Quaresma realizado na igreja matriz de São Brás de Alportel (Algarve) em pleno Domingo de Ramos. A igreja estava apinhada de gente cujos olhares se concentravam na direcção do altar-mor, onde os coralistas se dispuseram na tradicional meia-lua. Eis senão quando, rostos surpreendidos, se viraram ao ribombar do tambor que sou à entrada da nave direita da igreja. Ao passo marcado pela percussão seguiram em marcha os dois trompetes e os dois trombones da banda filarmónica de São Brás interpretando a obra Funeral of Queen Mary de Henry Purcell (1659-1695), composta, precisamente, para coro e metais, que contou ainda com Mary Legg ao órgão. Os elementos da filarmónica voltaram a desfilar pelo público enquanto se encaminhavam para a saída da igreja, na sua marcha evocadora de andores e procissões. Impressionaram no forte e perturbaram os corações na surdina de timbre aveludado.
Seguiu-se-lhe Singet dem Herrn (Cantai ao Senhor) de Johann Pachelbel (1653-1706), obra mais dinâmica e alegre. O Coro dos Amigosque conta com quase 40 elementos de nacionalidades inglesa, alemã, holandesa, canadiana e portuguesa (apenas 4 elementos) reduziu-se então para 16 dando lugar ao Canticorum que interpretou Hear my prayer de Purcell, All in the April Evening de Hugh S. Roberton (1874-1952), In jejunio et fletu do português Diogo Dias Melgaz (1638-1700), In monte oliveti do também português Manuel Cardoso (1566-1650), da idade de ouro da polifonia lusa, e Ave verum corpus de William Byrd. A direcção do Coro dos Amigos afirma que esta estratégia de existência de um coro mais pequeno – Canticorum – com elementos mais antigos e experientes acrescenta versatilidade e lhes permite preparar repertório mais rapidamente.
O coro completo voltou a reunir-se para a interpretação de Alles was ihr tut (Tudo o que vós fazeis) de Dietrich Buxtehude, cantata com a qual homenagearam o maestro fundador Walter Sulzer que criou o coro em 2006 e o dirigiu até 2013. A partir deste momento o concerto foi enriquecido com a participação de três elementos do Quarteto de Cordas Sul’Arte, constituído em 2013 por músicos profissionais a trabalhar no Algarve: José Gomes no primeiro violino, Helena Duarte no segundo violino, Ângela Silva na violeta e Mikhail Shumov no violoncelo, que abrilhantaram ainda as obras Jesus bleibet meine Freude de Johann Sebastian Bach (1685 -1750) e, para finalizar, Insanae et vanae curae de Joseph Haydn (1732-1809). A paixão do trio contagiou o coro e as vozes soltaram-se num crescendo interpretativo que não podemos deixar de reconhecer.
A fechar o evento, fez questão de falar o senhor pároco, relembrando ser ele o detentor das chaves daquela igreja, congratulando-se por nela ter a oportunidade de acolher neste dia música sacra e erudita mas na semana seguinte fanfarra e muita música popular, para celebrar a alegria da ressurreição, convidando todos os presentes para ali se reunirem de novo no próximo domingo de Páscoa. São atitudes de abertura e flexibilidade como esta que proporcionam os momentos de encontro que testemunhámos neste concerto.
Tratou-se de um concerto coerente, de repertório bem doseado entre sofrimento evocador da presente quaresma e antecipação das alegrias da ressurreição. Apesar das diferenças de desempenho que, sem dúvida, se registaram neste grupo tão heterogéneo, o que marcou foi a conjugação de esforços, a coragem desta ousada proposta de Francisco Brazão e, sobretudo, o prazer de fazer e ouvir música.