Como nasce uma obra musical? Que percurso percorre desde que nasce como ideia abstracta até ao dia em que notas e palavras se transformem em sons e vibrem pelo ar, pela primeira vez, até aos ouvidos do primeiro público?

Ao assinalar 50 anos de existência, o Coro Regina Coeli de Lisboa quis que o momento fosse pretexto para um legado que não dissesse respeito apenas ao coro, mas também à música coral e à cultura portuguesa em geral. Do longínquo ano de 1966 até hoje, o Coro Regina Coeli evoluiu de um pequeno coro que acompanhava a liturgia na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Olivais-Sul, até um agrupamento maduro, ecléctico, que tanto se dedica ao grande repertório coral-sinfónico como à música a cappella de vários períodos e a ciclos temáticos com instrumentistas, com um curriculum já vasto e bastante rico. Nos últimos anos tem dado uma atenção mais particular à música coral dos séculos XX e XXI, incluindo os compositores portugueses contemporâneos.

Este foi o mote para a ideia de uma encomenda que viesse enriquecer o repertório coral em português, mantendo uma ligação umbilical à história do Coro — a óbvia escolha da antífona sacra Regina Coeli —, mas projectando-se para outros mundos e outras leituras, abrindo-se à diversidade de interpretações.

Assim nasceu o projecto Regina Coeli: 5 Décadas de História, 5 Obras para o Futuro. Em vez de escolher um compositor, o Coro convidou cinco a escreverem música para o projecto: um por cada década. Pedro Miguel, director artístico do Coro, esteve envolvido desde o primeiro minuto, tanto no que diz respeito à estruturação da obra como à escolha dos compositores. Nas suas palavras, “a escolha destes cinco nomes foi motivada, em primeiro lugar, pela obra de todos eles, que é reconhecida, sendo uma aposta na diversidade, pelo tipo de linguagem muito diferente que cada um utiliza nas suas obras; é também um desafio do ponto de vista criativo e do ponto de vista interpretativo.”

Alfredo Teixeira, Daniel Davis, José Luís Ferreira, Nuno da Rocha e Sara Ross foram, assim, os cinco nomes escolhidos para participar no projecto, propositadamente representando percursos individuais muito diferentes, quer na geração a que pertencem, quer no universo de criação em que trabalham.

A antífona Regina Cœli lætare, texto de autor desconhecido do século XII e popularizada pelos frades menores franciscanos ao longo dos séculos seguintes, é uma oração mariana tradicionalmente rezada durante o tempo pascal, ligando o mistério da Encarnação de Jesus à Sua Ressurreição. Este texto constitui o cerne para a obra, ou obras, que se construirão à sua volta; melhor dito, servirá como um fio condutor, um arco que de forma subtil ligará os restantes textos entre si. O Coro quis partir assim da tradição sacra, onde nasceu, mas procurar também outras identidades e linguagens.

De uma primeira recolha de textos de poesia portuguesa de várias épocas, a escolha acabou por recair no poeta José Tolentino de Mendonça, que prontamente aceitou colaborar no projecto. Assim, foram seleccionados poemas que procurassem relacionar-se com o texto sacro, mas que permitissem outras leituras, dentro de um universo de espiritualidade não necessariamente sagrada mas interpeladora e contemporânea.

“O que é especial neste projecto é que a temática é abordada com uma proximidade humana muito grande, seja pela espiritualidade muito palpável presente na poesia de Tolentino, seja pela natural diversidade e contraste dos cinco compositores que foram convidados a escrever música para este propósito”, diz Sara Ross, uma das compositoras que integram o projecto.

Procurou-se que no processo de criação, quer da obra musical escrita quer do trabalho de ensaio, se mantivesse o diálogo estreito entre compositores, coralistas e direcção, permitindo ultrapassar dificuldades e enriquecer o processo de aprendizagem. A fase seguinte foi a apresentação pública das obras, numa espécie de ensaio aberto em que os compositores, maestro e público puderam dialogar sobre o processo de criação, ao mesmo tempo que o Coro desvendava algumas passagens da música, numa sessão na Academia das Ciências de Lisboa no passado 6 de Maio de 2017.

A estrutura da obra tem a particularidade de poder ser considerada um todo, composta por vários poemas ligados por Interlúdios, constituindo uma individualidade própria que será revelada no concerto de estreia, a 8 de Julho de 2017, na Igreja de Nossa Senhora de Fátima, em Lisboa. No entanto, foi intenção da encomenda que cada peça possa também ser interpretada individualmente. O mpmp associou-se ao projecto desde a primeira hora e edita a partitura, que assim fica disponível para qualquer agrupamento nacional ou estrangeiro.

O Coro Regina Coeli de Lisboa quis também aproveitar o pretexto da celebração dos seus cinquenta anos para apoiar a produção de compositores portugueses. Como refere Pedro Boléo-Tomé, presidente da Direcção do Coro, “esta é a nossa contribuição, à nossa escala, para contrariar os tempos de dificuldade que se vivem no apoio à cultura, dificuldades ainda maiores no que diz respeito aos grupos amadores”. Parte do financiamento da encomenda foi conseguida através de uma campanha de crowdfunding lançada na plataforma online PPL. A adesão superou as expectativas iniciais e a obra será em grande parte financiada com o apoio de 112 generosos doadores particulares, o que representa uma iniciativa pouco frequente no nosso país, sem grande tradição de participação cívica na cultura.

Enquanto se trabalham as obras e se constroem linhas melódicas na sala de ensaio do Coro, as notas escritas deixam de ser símbolos abstractos numa partitura e materializam-se no ar, vibrando pela primeira vez, ganhando cor, imagem, sensação. Em breve deixarão este espaço intimista, privado, e serão dadas ao público e ao mundo, como que saídas duma gestação. Nesse momento, deixarão de ser de quem as cria e passarão a ser de todos os que as escutarem e levarem consigo.

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