Nas últimas semanas, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro (TMRJ) vem atravessando momentos turbulentos em virtude das sucessivas e repentinas trocas de direção da casa. São tempos confusos para a música de concerto no Estado do Rio de Janeiro. No intuito de tentar compreender tais processos a partir de uma mirada interna, procurei ouvir alguns músicos da Orquestra Sinfônica do TMRJ (OSTMRJ) para uma conversa sobre como esses desdobramentos estão sendo vivenciados pelos artistas-trabalhadores da casa em meio ao cenário distópico de profunda crise política e econômica no qual o Estado do Rio de Janeiro encontra-se inserido.
Desde junho de 2015 até ao início do mês de fevereiro deste ano, o TMRJ esteve sob a direção de João Guilherme Ripper. Compositor, regente e professor, Ripper se notabilizou igualmente como gestor em virtude do longo período (11 anos) durante o qual esteve à frente da direção da Sala Cecília Meirelles.
Na concepção dos músicos, a gestão de Ripper deve ser avaliada em duas dimensões: um primeiro momento seria o reconhecimento da inegável capacidade de realização que a batuta de Ripper injetou na casa, garantindo uma temporada de Ópera, Balé e concertos finalmente à altura de um teatro como o Municipal do Rio de Janeiro, o que era, inclusive, um anseio dos corpos artísticos da casa. Concomitantemente a este reconhecimento, o fato peculiar de os espetáculos serem produzidos em parte com dinheiro público (folha de pagamento dos corpos artísticos e funcionários técnico-administrativos), em parte com dinheiro de arrecadação de bilheteria, aluguel do teatro e via investimento privado, criou uma situação contraditória que gerou alguns impasses entre o conjunto dos trabalhadores do teatro e a direção no decorrer da temporada de 2016.
“O período Ripper, do ponto de vista artístico foi ótimo […] que foi encher a programação de Ópera, de Balé, de concertos, buscar alto nível artístico… foi realmente um projeto pensado a médio e longo prazo. […] Agora, do ponto de vista da administração existem duas óticas: a ótica da viabilidade econômica desse projeto artístico; e o Ripper fez muito bem isso. […] mesmo em um momento de crise do Estado, sem dinheiro, ele conseguiu uma captação que viabilizou muita coisa. Isso é um ponto de vista. Outro ponto da questão administrativa, que também deveria ter sido levado em conta e que, aí sim, não foi muito saudável dentro do teatro, foi o fato de que eles pegaram esse desejo dos corpos artísticos, de ter uma programação de verdade, de qualidade artística, mas não levaram tanto em consideração as dificuldades em função da crise, as dificuldades dos trabalhadores. Eles propuseram uma agenda de trabalho muito pesada para quem não estava recebendo salário, ou estava recebendo atrasado. Em dezembro de 2015 houve o primeiro atraso de salário, de dez dias. E a partir de janeiro de 2016, os corpos artísticos, através dos sindicatos e associações, foram tentando abrir um diálogo com a direção […] e, durante o ano de 2016, isso não foi muito ouvido. Em junho e julho teve uma paralisação: eles tiveram que ouvir um pouco o nosso lado. Mas tivemos de chegar ao ponto de fazer uma paralisação. Em novembro, teve uma paralisação seriíssima, dois dias antes da estréia. Em dezembro, a gente quase paralisou de novo, em meio ao Quebra-Nozes, em função de muita gente não ter realmente dinheiro para ir trabalhar, para comer e tudo. Do ponto de vista artístico e administrativo, eu acho que o saldo que eles deixaram foi positivo. Apesar do jogo de cintura com os trabalhadores da casa ter sido difícil. […] Infelizmente, agora que a gente teve um diálogo super saudável em janeiro e fevereiro, eles são afastados. Quando a gente encontrou um meio termo bom para ambas as partes, o secretário os afastou.”
Os músicos da OSTMRJ tomaram conhecimento da exoneração de Ripper e da nomeação do ator Milton Gonçalves pelo mesmo veículo que a população em geral: através da imprensa, por uma nota na coluna de Anselmo Gois no jornal O Globo. Embora o novo Secretário de Cultura, André Lazaroni, houvesse afirmado em um primeiro momento às associações de trabalhadores do teatro que nada mudaria, alguns músicos já intuíam que trocas na direção artística e/ou presidência do teatro poderiam ocorrer, dado o cunho político do cargo:
“Junto com um nome para a direção vem uma série de projetos. Tanto projetos artísticos quanto políticos. Então a primeira coisa que a gente faz é tentar entender o que essa mudança significa do ponto de vista de um projeto. E nesse caso a gente foi muito pego [sic] de surpresa, não pela mudança, pois o secretário mudando, era natural que algo pudesse vir a mudar. Apesar de que, num primeiro momento, o secretário foi lá no teatro e realmente falou que não mexeria em nada. Aí ficou todo mundo, de certa forma, tranqüilo. Aí, cerca de duas semanas depois, ele mudou completamente. Pediu a vaga do Ripper por questões políticas […] A indicação do Milton é uma indicação que a gente ainda não sabe a que vem.”
A inexistência de instâncias internas que viabilizem a participação efetiva das associações de trabalhadores do TMRJ nos debates e processos decisórios para um cargo de tamanha importância evidencia um modelo de organização do trabalho onde a comunidade de artistas e técnicos-administrativos fica de mãos atadas frente às vicissitudes do jogo político. Existe um ressentimento latente entre os músicos diante da flagrante carência de democracia interna no decurso de tais processos:
“Eu acho que o maior erro é esse: não consultar. Não querer nem saber o que é que está acontecendo. De repente, é o melhor gestor que já poderia ter tido ali, fazendo maravilhas, e o cara vai tirar assim, sem saber o que é. Muito arbitrário…”
Outro problema invocado pelos músicos foi a importância da continuidade no trabalho de uma direção. Neste sentido, é crucial que qualquer projeto de gestão para o TMRJ seja realmente pensado a médio e longo prazo – para que os corpos artísticos possam acumular uma trajetória de repertório que os leve ao aprimoramento artístico contínuo enquanto grupos estáveis, para que as políticas de ampliação do acesso da população ao teatro possam ser devidamente formuladas e os seus impactos seriamente avaliados e para que o relacionamento entre as associações de artistas e técnicos da casa e a direção possa amadurecer mediante um histórico de acúmulo nas negociações de suas demandas específicas. A interrupção abrupta de uma gestão, sem que haja nenhuma justificativa plausível (seja de fundo artístico, ético ou administrativo) desestabiliza os grupos deixando uma sensação de estar sempre retornando ao marco zero. Trabalho de Sísifo.
O primeiro nome apresentado pelo secretário Lazaroni para substituir Ripper na presidência do TMRJ foi o ator Milton Gonçalves. As maiores críticas que surgiram em torno desta nomeação se deram pela falta de identidade e experiência profissional de Gonçalves com os gêneros artísticos aos quais o TMRJ tradicionalmente se dedica. Embora Milton Gonçalves seja uma figura pública que goze de grande apreço popular, sendo também muito respeitado pela sua carreira como ator, tanto o comentário geral na imprensa especializada (e nas redes sociais!) quanto em minhas conversas com os músicos da OSTM corroboraram a noção de que a recepção a esta nomeação foi extremamente negativa, tida como um gesto leviano por parte do secretário Lazaroni. Neste sentido, permanece ainda viva na memória dos músicos a lembrança infeliz do período no qual tiveram a atriz Carla Camurati como presidente do TMRJ em um passado recente:
“Na época da Carla Camurati a gente tocava muito filme, poucas óperas, poucos balés, poucos concertos no palco – a orquestra também gosta de tocar concerto no palco! – Depois veio o Izaac (Karabchevsky) e isso melhorou um pouco mais. Aí, agora, com o Ripper, a orquestra voltou a ser uma orquestra de ópera e balé, entendeu? A abertura da temporada (2016) foi um concerto da orquestra com o coro. Isso eu achei que foi incrível para a orquestra: valorizando a orquestra, o porquê que ela existe.”
Vale lembrar que foi também durante a gestão de Camurati que se deu a tentativa de transformar o TMRJ em uma OS, batalha esta que fora vencida pelos artistas e técnicos do TMRJ. Ainda que tal assunto não tenha sido diretamente colocado em pauta, em períodos de crise paira sempre a ameaça iminente (declarada ou não) de privatização. Assim sendo, mudanças drásticas, repentinas e assumidamente de cunho político geram imensa desconfiança por parte dos músicos.
Talvez a situação mais curiosa envolvendo a nomeação de Milton Gonçalves tenha sido o fato de Lazaroni ter anunciado o novo presidente da Fundação TMRJ como “o primeiro presidente negro do Municipal”. Importante ressaltar que Lazaroni é deputado pelo PMDB, partido do governador Luiz Fernando Pezão e do presidente golpista Michel Temer, partido este conhecido por seu caráter político abertamente “fisiológico” e que nunca teve a menor identidade com quaisquer lutas de minorias. Tal fato nos confronta com o problema dos limites inerentes às políticas de representação, questão que aparece perifericamente ao debate em pauta, mas que se coloca como acontecimento paradigmático de uma reflexão que precisa ser enfrentada por todos aqueles que verdadeiramente se importam com o drama quotidiano que é a questão racial no Brasil.
O último ponto envolvendo a primeira troca de direção foi a polêmica em torno da declaração de Milton Gonçalves de que a sua missão a frente da casa seria a de popularizar o teatro. Em suas redes, Ripper alfinetou:
“Faço votos de que nosso querido Theatro Municipal resista a esses ventos populistas e possa continuar no trilho de sua verdadeira vocação.”
O que seria de fato uma política de popularização para um espaço como o Theatro Municipal em uma realidade marcada por profundas desigualdades sociais? Seria levar seus corpos artísticos para outros locais, tocar nas periferias, subúrbios e favelas da cidade para cumprir a triste e degradante tarefa de promover o marketing cultural de um governo espúrio? Adequar os repertórios e linguagens artísticas a outros universos musicais “mais populares”? Ou investir em ingressos a preços ainda mais acessíveis? Concertos didáticos…? Perguntas que se repetem incessantemente.
Como pontapé inicial a uma reflexão, faz-se necessário dar um passo atrás e visualizar o momento bastante peculiar que atravessamos no campo da música sinfônica hodiernamente: a todo o momento surgem pressões – vindas de todos os lados – para que se abandonem as especificidades que caracterizam a nossa tradição musical em prol da assimilação das práticas, repertórios, espaços e tipos de performance característicos de outras práticas musicais, especialmente aqueles veiculados permanentemente pelos media de massa. Nenhuma outra tradição musical enfrenta, no momento presente, um ataque tão frontal às suas práticas. Curiosamente, tal clamor democrático assenta perfeitamente bem ao tipo de regulação estatal característico ao neoliberalismo, onde o Estado se retira da responsabilidade de prover diretamente garantias fundamentais em áreas como saúde, educação, transporte e cultura, passando a atuar como um intermediário entre a riqueza pública e o interesse privado, sendo a arena da Cultura um dos momentos decisivos para a compreensão da intensidade e extensão de tais processos. Isto posto, parece que o discurso difuso de “popularização do teatro” se soma ao coro deste imperativo contemporâneo.
A última reviravolta imprevisível no caso ocorreu na semana passada, quando Lazaroni anunciou o afastamento de Milton Gonçalves, alegando impossibilidade de o ator assumir o cargo, em virtude de uma possível acusação de conflito de interesses, pelo fato de Gonçalves ser integrante do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República. Desta feita, junto ao anúncio da nova exoneração, o secretário Lazaroni comunicou que será – ele mesmo – o próximo presidente da Fundação TMRJ, acumulando as funções de Secretário de Cultura e Presidente do Teatro. A decisão do secretário Lazaroni está imbuída por um sentimento estóico de cooperar para a contenção de gastos do teatro neste momento de crise, já que fez questão de frisar a sua resolução de abrir mão de receber o pagamento referente ao salário do presidente.
Gato escaldado, Lazaroni se apressou em comunicar a indicação de André Heller-Lopes para assumir a direção artística do TMRJ. Heller-Lopes é professor da Escola de Música da UFRJ desde 1996, possui um vasto currículo de encenações e já foi coordenador de Ópera da Prefeitura do Rio. Inegavelmente, um especialista no gênero com currículo e experiência comprovados, logo, acima de qualquer tipo de questionamento quanto às competências técnicas e artísticas necessárias para levar a frente a tarefa.
Ao contrário do ocorrido com Milton Gonçalves, o anúncio de Heller-Lopes para a direção artística do teatro parece ter sido recebido de forma bastante positiva pela opinião pública que acompanha o desenrolar desta novela. Interessante notar que, se Gonçalves fora recebido de maneira hostil por ser ator, vale lembrar que o cargo antes ocupado por Ripper não será assumido por Heller-Lopes, mas sim pelo deputado André Lazaroni. Quais são as credenciais de Lazaroni para ocupar um cargo de tal importância? Seria possível desempenhar a contento as atribuições de Secretário da Cultura do Estado do Rio de Janeiro e Presidente da Fundação TMRJ?
Por fim, voltando ao princípio, e seguindo a linha de raciocínio dos músicos da OSTM, ainda me pergunto: qual seria o projeto artístico e político da gestão Lazaroni para o palco mais importante do Estado do Rio de Janeiro?