Neste brevíssimo ensaio, parto do sumário que descreve oficialmente a revista cujo décimo aniversário celebramos: «A Glosas é uma revista dedicada à dinamização e divulgação dos patrimónios musicais de todas as épocas dos países de língua portuguesa, com especial ênfase na música de tradição erudita ocidental».

Quando percorremos longitudinalmente os rastos deste projecto, descobrimos vários motivos para discutir o que é isso que denominamos de «património». Essa observação responde, com alguma clareza, a uma dúvida esperada. Estamos perante um projecto que se transcreve em estratégias de musealização, contexto em que lógicas como «conservação», «guarda», «restauro» ou «reconstituição» são decisivas? Não parece que este perfil possa resumir esta aventura editorial. Às aproximações a compositores e obras do passado, sucedem-se entrevistas com compositores vivos; evocações de compositores recentemente desaparecidos cruzam-se com testemunhos vivos dos que com eles deram corpo ao acontecimento musical; intérpretes de hoje para música de ontem; músicas e músicos nos trânsitos da lusofonia, em todos os seus estádios históricos; compositores de hoje que escrevem sobre compositores de outrora. Este jogo de escalas conduz-nos à evidência de que este tipo de publicação periódica pode ter um lugar decisivo nos processos de construção cultural, em particular no quadro de uma dinâmica determinante: a transmissão.

Como observou Jan Assmann (2004), a necessidade de tradição é documentável desde muito cedo, nos processos de sociogénese. Os grupos humanos desenvolveram toda a espécie de recursos mnemotécnicos e sistemas de registo para facilitar o acesso posterior a algo de descoberto, produzido e adquirido. A perspectiva é, aqui, antropológica, desalinhada das formas ideológicas que reduzem a tradição a modalidades de conservação da autoridade e de limitação da inovação. Talvez seja interessante prestar atenção aos étimos latinos do termo «tradição» (Valliere 2005).  Tradere refere-se a algo que se dá, se vende ou se deixa para alguém, um artefacto ou um bem espiritual, numa operação de mudança de proprietário – daí a necessidade de um contrato, de um acordo matrimonial, de um testamento, ou de uma ação de venda ou oferta. Transmittere põe em destaque o lugar do herdeiro – individual ou coletivo –, no quadro de uma acção de transmissão concreta.

Descobrem-se, assim, três elementos fulcrais na experiência da tradição ou transmissão cultural. É necessário um suporte ou veículo – conhecimento, costume, ritual, convenção social, norma jurídica, fórmula, receita, etc. –, que atravesse o tempo e os espaços numa trajectória entre o passado e o presente. Mas essa dimensão «material», «exterior», depende de dois actos humanos. O acto de transmitir e o acto de receber. Transmissão, recepção, veículo ou suporte tecem esta modalidade de acção, pela qual os grupos humanos incorporam fragmentos da dotação cultural dos que os precederam, mobilizando-os para a construção da realidade.

A tradição organiza diacronicamente linhas de significação que são mobilizadas para a superação do abismo que seria a necessidade permanente de tudo recomeçar. As noções de tabula rasa e de cultura são, assim, incomensuráveis. Mas também é certo que a ideia de que a tradição possa subsistir como a transmissão de um corpo imóvel não se comprova na vida das culturas. A tradição vive da necessidade de um processo de recolocação e reeleição, para que um dado testemunho recebido faça, hic et nunc, a sua «prova de vida». Os «fundamentalismos» ou os «tradicionalismos» consistem, precisamente, na pretensão de afirmar o carácter a-histórico do que é legado e recebido.

Essa recolocação e essa reeleição implicam as competências interpretativas humanas. O «conflito das interpretações» e o «conflito das transmissões» são fenómenos contíguos. A tradição não exclui o conflito, porque o seu interior é polifónico. Em cada momento, nesse tecer da cultura por meio da transmissão e da recepção privilegiam-se determinadas vozes e modulações. A construção da continuidade das tradições é, como observou Gadamer (2011), uma operação marcada pela parcialidade.

Os mais recentes estudos sobre a vida das culturas voltaram a olhar para as tradições, privilegiando o seu médio e longo curso. Esta seria a escala própria de uma cultura. A cultura adquiriu, assim, um sentido distributivo: distribuição no espaço e no tempo. Alguns dos modelos de compreensão da cultura não incorporam este sentido distributivo. Para alguns, a cultura é um estado de espírito comum a todos os indivíduos e agrupamentos que a constituem. Apresentando-se estável no tempo, a sua distribuição no espaço é confinada aos limites da geografia dos grupos sociais. Algumas correntes recentes da antropologia procuraram mostrar a impertinência da ideia de tradição, sublinhando que as culturas são tecidos frágeis, constantemente em recomposição, dependentes de negociações entre poderes e actores diversos. Esta crítica ajudou a desconstrução das concepções de cultura como totalidade coerente. Desta concepção de cultura, enquanto totalidade homogénea, decorria uma concepção linear de transmissão, como um processo de impregnação quase passivo.

No seu inventário das críticas à noção de cultura, Christoph Brumann (1999) recolheu numerosos documentos acerca da heterogeneidade interior às culturas: determinado mito tido por fundamental, apenas conhecido por uma pequena parte das populações; comportamentos divergentes em relação a normas tão estruturantes com as que regulam as aproximações sexuais; interpretações contrastantes de determinado imperativo religioso; ritos identificadores para uns e desconhecidos para outros. Alguns investigadores usaram ferramentas estatísticas para mostrar como as crenças ou os saberes, que descrevem certas culturas, se encontram precariamente distribuídos, inviabilizando o pressuposto do consenso cultural. No quadro da sua antropologia da globalização, Arjun Appadurai (1996) observa que as noções de cultura mais usadas não dão suficiente atenção às mundividências dos grupos marginalizados ou dominados.

Ao percorrer estes dez anos de edição da revista Glosas – mesmo situando-se no âmbito do que, na falta de melhor vocabulário, se designa por «música erudita» ocidental –, torna-se evidente duas tendências, neste trabalho de transmissão cultural: por um lado, a afirmação de uma memória plural, na sua geografia e nas suas linguagens; por outro, uma particular criatividade nas iniciativas de rememoração, contexto em que o que se descobre como o passado é permanentemente recriado pela necessidade de releitura.

Aprendemos essa lição de Maurice Halbwachs (1994). De forma inédita, nas primeiras décadas do século XX, o autor sublinhava que o acto individual de rememoração interage com os «quadros colectivos da memória». Nenhuma lembrança pode existir sem a sociedade. Assim, às dimensões mecânicas da memória, Halbwachs juntava a história e a interacção social. Os quadros sociais da memória são, nesta concepção, estruturas dinâmicas que se ajustam às experiências do presente. Um determinado grupo social «esquece» o que deixa de ter pertinência na sua actualidade. Esses quadros correspondem a um universo de significações pertinentes para a vida presente do grupo e são integrados num trabalho de recriação, em função desse mesmo presente. Neste sentido, o presente não é apenas o receptáculo do passado, é também um lugar para a sua construção.

Hoje, o uso antropológico da categoria «memória» evita as «retóricas holistas» – ou seja, totalizações que visam designar conjuntos supostamente estáveis, duráveis e homogéneos. Nas múltiplas modernidades que conhecemos, marcadas por uma enorme erosão da memória enquanto autoridade, a tradição tornou-se um «lugar» de experimentação e invenção. Esse habitat cultural favorece a experiência da cultura como glosa, na medida em que o que nos precede é sempre recolocado, ressignificado, comentado, recriado.

Neste sentido, esperemos, pois, que a revista Glosas possa dar continuidade à sua própria natureza – glosar.

 


Referências

Appadurai, Arjun. 1996. Modernity at Large: Cultural Dimensions of Globalization. University of Minnesota Press.
Assmann, Jan. 2004. Religion und kulturelles Gedächtnis: Zehn Studien. München: Verlag C. H. Beck.
Brumann, Christoph. 1999. «Writing for culture. Why a Successful Concept Should Not Be Discarded.» Current Anthopology 40: S5-S6 [S1-S27].
Gadamer, Hans-Georg Gadamer. 2011. Wahrheit und Methode. Berlin: De Gruyter Akademie Forschung [1960].
Halbwachs, Maurice. 1994. Les cadres sociaux de la mémoire. Paris : PUF, 1994.
Valliere, Paul. 2005. «Tradition.»  In: The Encyclopedia of Religion, vol. 13, ed. by Mircea Eliade, revised and updated version by Lindsay Jones. New York: Macmillan Reference USA, 2005, 9267-9281.

 


Texto escritos no âmbito
do 10.º aniversário do MPMP

Sobre o autor

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Alfredo Teixeira, Doutor em Antropologia, é Professor Associado da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa. Desenvolve a sua actividade de investigação nos seguintes domínios: identidades e instituições religiosas em Portugal; estéticas e performatividades do religioso; novas teorias da religião. Após o seu percurso curricular na Escola de Música do Conservatório Nacional, estudou composição com Jorge Peixinho até à data da morte do compositor, em 1995. Venceu a edição de 2013 do Prémio Internacional de Composição Fernando Lopes Graça e, em 2014, foi-lhe atribuído o Prémio Especial (2.º lugar) do «New Music for Easter Time International Competition for Choral Composition» (Associazione Musicale Musica Ficta).