Como prometido no meu artigo de 8 de Março, fui, dia 18, satisfazer a curiosidade em relação ao Espaço Garagem. O programa do concerto incluía o Trio para flauta, violoncelo e piano em sol menor, op. 63, de Carl Maria von Weber (1786-1826), a Peça para flauta de Joly Braga Santos (1924-1988) e Berceuse, op. 16, de Gabriel Fauré (1845-1924). Ainda na rua, perto da porta de entrada na garagem, já se escutavam as intérpretes em últimos ensaios. Foram elas a flautista Sílvia Rocha, a violoncelista Ana Conceição e a pianista Mariana Soares, estudantes na Academia Nacional Superior de Orquestra e fundadoras do Inciptrio, que hoje apresentaram ao público do Espaço Garagem.

Todos os lugares da sala foram ocupados, das cadeiras que compunham a plateia aos puffs e cadeirões laterais que tornam a sala ainda mais acolhedora. Um contraste interessante face às tradicionais salas de concerto foi ter sentido a vibração provocada pela passagem do metropolitano. Longe de me incomodar, recordou-me ser também possível – e desejável! – fazer música em espaços des-sacralizados… Maria do Rosário Olaio, proprietária do espaço, fez notar que o concerto da tarde de hoje terá sido o mais concorrido desde que iniciou a temporada. Coerente com o seu objetivo de mobilizar a participação dos e das habitantes do bairro de Alvalade, foi visível a sua familiaridade com grande parte do público presente, não lhe faltando simpatia para receber quem, como eu, vinha de mais longe e pela primeira vez. Na sua apresentação, referiu ainda que aquele espaço se destinava a proporcionar um palco para que artistas em formação pudessem “rodar o repertório” que a seguir iriam apresentar em competições nacionais ou internacionais. Caberia a cada ouvinte decidir contribuir com um donativo a ser aplicado na manutenção da sala e, também, na retribuição simbólica às instrumentistas participantes.

 

 

A primeira parte foi então preenchida pelo Trio op. 63 de Weber. Começo por dizer que foi com muito agrado que percebi que este trio resolveu apresentar uma versão em vez de se sujeitar cegamente ao cânone interpretativo. Sendo mais claro, escutei a proposta deste agrupamento e não mais uma cópia de outros já consagrados. Agradando ou não a todas as pessoas, achei extremamente interessante a forma como Sílvia Rocha tratou as longas frases que Weber criou para flauta. O termo «frase» importa aqui ser realçado porque foi esse o entendimento que a flautista fez perpassar para o auditório, não só pela manutenção da continuidade da linha melódica, mas também pela riqueza expressiva que aparentou dominar, quer pela criação de contrastes dinâmicos, quer pelo recurso a diferentes tipos de ataque. Um pequeno reparo apenas para um ou outro final de frase que pareceu «largado» – o que ainda assim aconteceu só muito pontualmente, sem pôr em causa a globalidade da prestação.

Ana Conceição e Mariana Soares foram, contudo, prejudicadas pelos desafios acústicos que, apesar de tudo, o Espaço Garagem apresenta, mais especificamente um eco significativo. Este problema prejudicou a inteligibilidade das linhas do violoncelo e do piano, numa obra em que os seus âmbitos se situam predominantemente nos registos médio e baixo. Acresce a isto que o piano – vertical – nem com a abertura da porta da caixa, ou com a escolha de um tempo mais lento em certas passagens mais virtuosísticas, conseguiu tornar mais clara as suas intervenções. Padecendo de condicionalismos semelhantes, foi por vezes difícil ouvir o violoncelo, o que é de lamentar também porque, no terceiro andamento – Andante espressivo –, a intérprete teria espaço para explorar algumas das secções mais líricas da obra. Acredito, ainda assim, que esta situação (normal, atendendo ao tipo de sala de que estamos a falar) possa ser resolvida com facilidade. Destaco o segundo andamento como aquele em que o Inciptrio mais se distinguiu. Se ocasionalmente o diálogo entre os três instrumentos soou áspero, os contrastes de intensidade sonora, a exploração do lirismo pela flautista em diálogo com a pianista, mais staccato, pontuado pelos comentários assertivos da violoncelista, conferiram a este Scherzo a energia e impetuosidade que esperamos de intérpretes jovens como as três que se apresentaram esta tarde.

Ficou a faltar o quarto andamento que, estando anunciado em programa, não foi apresentado.

Após um intervalo de cerca de vinte minutos, o concerto foi retomado com duas peças de curta duração. Primeiro, Peça para flauta de Joly Braga Santos, para flauta e piano, com que Sílvia Rocha brilhou, mais uma vez, através da matização do legato com que dominou toda a linha, sem negligenciar os arabescos que também a compunham. Seguiu-se a Berceuse de Fauré, cujo exotismo (e sensualidade) foi desvelado pela apropriação de Mariana Soares e Sílvia Rocha, que valorizou a acentuação do ritmo num sentido mais afim da dança do que do sono. A Berceuse embala-nos, não tanto por via de um carácter cíclico e lento, mas pela evocação de uma atmosfera solar, tranquila, dos quentes trópicos, dileta afinal de parte significativa dos compositores da geração e contexto de Fauré. Julgo que as intérpretes compreenderam isso e conseguiram transmiti-lo ao público… pelo menos comigo tiveram sucesso. Em suma, tive hoje a oportunidade de assistir a um concerto muito interessante, de elevada qualidade que, portanto, augura um ótimo futuro para estas três instrumentistas.

E é precisamente isto que torna ambivalente a minha experiência de hoje. Foi-me apresentado um concerto informal, integrado na série de recitais ou, se preferirem, audições que artistas em formação têm por costume levar a cabo para – usando as palavras de Maria do Rosário Olaio – “rodar o repertório” em preparação para concursos e avaliações. Não está aqui em causa o seu profissionalismo, nem tão pouco a seriedade. A realidade prática é que eu e o restante público do Espaço Garagem pudemos assistir a um concerto gratuito – não obstante a maioria dos presentes ter contribuído com um donativo, aliás à semelhança do que já vem sendo hábito na temporada Le Foyer da Escola de Música do Conservatório Nacional.

A ideia de Maria do Rosário Olaio é simples e – não tenho dúvidas – bem-intencionada. No entanto, a ideia de artistas se apresentarem em concerto sem remuneração fixada é questionável. Entre outras coisas, está aqui em causa o estatuto de profissionais da música em Portugal. Dir-se-á que, sendo estudantes, a questão não será tão premente. Isto é, todavia, fácil de desmontar: aquilo a que assisti esta tarde foi uma interpretação indiscutivelmente digna, resultado do trabalho e empenho de três pessoas que se estão a especializar profissionalmente numa área extremamente complexa e que, por isso, acarreta uma enorme dedicação e espírito de sacrifício; o mercado musical é – e sempre foi – composto por músicas e músicos com diferentes graus de formação; existem inclusive autodidatas que não só não veem questionada a sua capacidade de mediatização, como não é posto em causa o direito à remuneração pelo seu trabalho.

Não pretendo aqui diabolizar o Espaço Garagem que – repito – me proporcionou um final de dia muito agradável. Esta experiência recordou-me, porém, outros espaços, fortemente institucionalizados, alguns adstritos à administração estatal, que constroem temporadas segundo o mesmo modelo adotado pelo exemplo de partida deste artigo. Basta observar o exemplo do Palácio Foz, em Lisboa, cuja programação cultural é, em parte, construída por via deste tipo de expediente. O problema torna-se ainda mais complexo quando se verifica ser real a necessidade destas pessoas se apresentarem com frequência em público, tanto por motivos formativos, curriculares ou mediáticos. Contudo, na maior parte dos casos esbarram contra as portas fechadas das instituições com maior poder simbólico, tanto por parte das respetivas administrações e direções artísticas, como pelos discursos altamente influentes imanentes da comunicação social – incluindo a crítica musical. Este ciclo vicioso acaba por não permitir a constituição de uma cena musical verdadeiramente diversificada, verdadeiramente democrática, privilegiando, sim, um grupo restrito de artistas que muitas vezes não dá provas de ser capaz de corresponder à remuneração que – a estes sim – é regular e inquestionavelmente atribuída.

 

Sobre o autor

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Mestre em Ciências Musicais pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é actualmente bolseiro do Programa Doutoral "Música como Cultura e Cognição" da mesma instituição. Os seus interesses de investigação centram-se no espectáculo músico-teatral, nos géneros de comédia musical, e nas respe​c​tivas redes nas sociedades portuguesa e brasileira da segunda metade do séc. XIX às primeiras décadas do séc. XX. É colaborador da Linha de Investigação "Música no período moderno" do CESEM - Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical, integrando o projecto "'Teatro para Rir': a comédia musical em teatros de língua portuguesa (1849-1900)", o SociMus - Advanced Studies in the Sociology of Music e o NEMI - Núcleo de Estudos em Música na Imprensa. Foi Secretário da Direcção da SPIM, Sociedade Portuguesa de Investigação em Música, entre 2013 e 2015. É também coordenador do Coro Académico Romanos Melodos.