Demoremos o olhar num pormenor desta fotografia.

 

Maria Callas no Claridge Hotel de Londres, Junho de 1958 | Fotografia de Zoe Dominic

 

Poisada numa cómoda, ao lado da qual Maria Callas, prestes a sair de um quarto de hotel em Londres, ajeita ao espelho um chapéu, vemos o que parece ser uma representação da “sagrada família”. Trata-se, com efeito, de uma pintura em miniatura, cuja história remonta ao século XVIII. Foi executada pelo pintor veronense Giambettino Cignaroli (1706-1770), que, adoptando como modelo uma tela de Antonio Balestra (1666-1740), retoma um motivo comum na época, num formato que convinha ao culto privado.

Ora, o valor de culto desta pintura sofreu uma reviravolta, uma aceleração súbita, em meados do século XX. A obra foi oferecida por Giovanni Battista Meneghini a Maria Callas, numa fase em que o industrial italiano ainda cortejava a jovem cantora, na véspera da sua estreia no Teatro Arena di Verona, onde interpretaria La Gioconda de Amilcare Ponchielli. Foi a 1 de Agosto de 1947 (há exactamente setenta e cinco anos) que isto aconteceu. Aproveitando a efeméride, o Arena organizou um “evento expositivo” no ano passado, precisamente a 1 de Agosto de 2021: por uma noite, em que permaneceu exposta, a Sagrada Família de Cignaroli – e, com ela, a memória de Callas – retornava ao Arena1.

 

A Sagrada Família de Cignaroli no estojo em veludo vermelho
em que viajou com Maria Callas ao logo da sua carreira.

 

Maria Callas afeiçoou-se à imagem. Incorporada, em 1951, num pequeno estojo forrado a veludo vermelho, que substituiu a moldura em que Meneghini a oferecera em 1947, a pintura viajou com a cantora por todo o mundo, sendo visível em muitas fotografias da artista nos camarins. O objecto tornou-se para ela uma espécie de talismã. Segundo declarou em entrevista ao Toronto Daily Star em 1958, somente em duas ocasiões se esqueceu de levá-lo consigo e em ambas o estado de saúde da sua voz piorou, impedindo-a de cantar.

 

Maria Callas e a Sagrada Família de Cignaroli, ainda na moldura original oferecida por Meneghini, num camarim do Teatro La Fenice de Veneza em Janeiro de 1950

 

Desta obra se pode então dizer, não apenas que é fruto do labor do artista italiano, que a pintou no século XVIII, mas também que é testemunho da carreira da cantora no século XX. Foi nela que poisaram os olhos – expectantes, angustiados, triunfantes – de Callas, antes e depois de inúmeras actuações. É o vestígio desses olhares, dessas angústias, desses entusiasmos que este objecto também acolhe. E é da imaginação desse acolhimento que vive a aura da Sagrada Família de Cignaroli. E o seu preço.

 

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Quando Maria Callas morreu em 1977, os seus herdeiros improváveis foram o ex-marido, Meneghini, e a mãe, Evangelia – improváveis, desde logo, porque Maria havia cortado relações com ambos. Dividido em duas colecções em 1977, o espólio de Maria Callas continuou a dispersar-se após a morte dos seus herdeiros, respectivamente em 1981 e 1982. O ano de 2000 constitui um marco definitivo nesta dispersão. As colecções de Evangelia e Meneghini, separadas desde 1977, são de novo reunidas. Mas são-no, paradoxalmente, com o propósito de serem leiloadas. O leilão, que teria lugar na Drouot-Montaigne em Paris, organizado pelo estúdio Calmels Chambre Cohen, a 2 e 3 de Dezembro de 2000, foi precedido de exposições no Mónaco, em Tóquio e em Nova Iorque. Falou-se de uma tournée póstuma da diva.

Num texto redigido para o catálogo deste leilão, Nicolas Petsalis-Diomidis, que coleccionara inúmeros objectos de Maria Callas (comprara muitos deles a Jackie, irmã de Callas, após a morte da mãe de ambas) e que escrevera uma biografia da cantora em 1998 (publicada em inglês, com título The Unknown Callas, em 2001), dá conta dos seus esforços, entre 1998 e 2000, no sentido da criação de um museu Callas em Atenas. E explica também a sua decisão, perante o desinteresse do poder camarário, e confirmada a aprovação moral de Jackie, de vender parte da sua colecção. Na verdade, arrisca, talvez seja melhor assim… Pois “quem compraria estes objectos senão pessoas que realmente amam e admiram Callas, que respeitam a sua memória e cultivam a sua lenda?”2

Mas talvez a dispersão convenha ao mito de Callas por outro motivo. Falamos de pertences, cinzas e memórias. Falamos, portanto, de vestígios. Mas Callas é uma intérprete: a sua obra é o conjunto das suas actuações ao vivo e em estúdio. Logo, os vestígios da sua arte são fundamentalmente as suas gravações. Um museu de Callas, por mais que fizesse sentido em Nova Iorque, Atenas ou Paris (as cidades que viram a artista nascer, crescer e morrer), por mais que ganhasse com a reunião dos seus pertences (a miniatura de Cignaroli, os auto-retratos de Pasolini, peças de mobiliário ou vestuário), por mais que enriquecesse com traços da sua carreira (programas, pósteres, notícias), teria sempre de acolher, reservando-lhes um lugar central, as suas gravações. São elas o vestígio cimeiro da sua arte.

No caso de Callas – no caso, a bem dizer, de qualquer artista-intérprete – não é possível um “museu de originais”. O verdadeiro original é a actuação. E desta não sobrevivem senão cópias – cópias reprodutíveis. Daí que a dispersão convenha ao mito de Callas. Ou seja, ao contrário das réplicas que encontramos na Casa Museu Albrecht Dürer em Nuremberga (que, enquanto cópias manuais, são únicas), as gravação que encontraríamos numa “Casa Museu Maria Callas” seriam, enquanto cópias reprodutíveis, múltiplas. A gravação da Traviata no Teatro de São Carlos, disponibilizada ao visitante desse museu, seria a mesma que eu, reproduzindo o CD da mesma gravação, poderia igualmente ouvir. E o mesmo se aplica a qualquer outra pessoa em qualquer parte do mundo. A dispersão é inevitável.

Dito isto, se o projecto de uma “casa museu de originais” está, no caso de estar em jogo um artista-intérprete, condenado ao fracasso, resta saber se esse fracasso não seria, ao fim e ao cabo, um triunfo. Um museu liberto da tutela do original, do fetiche do original, do espartilho do original – eis o que faria tanto mais sentido no caso de Callas.

 

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E, falando de originais, que é feito da Sagrada Família de Cignaroli?

A obra, que voltara às mãos de Meneghini após a morte de Callas, foi herdada por Emma Roverselli-Brutti, sua governanta. Foi a ela que o coleccionador Ilario Tamassia a comprou, o qual, apesar de a pintura ter sido exposta no leilão de 2000, a conserva até hoje. Os empréstimos são, todavia, comuns. E foi graças a um destes empréstimos que a pintura esteve exposta, a 1 de Agosto de 2021, no Arena de Verona.

Temos pois um objecto único – único na sua consistência, único na sua história, único por ter acompanhado, ao longo da sua carreira ímpar, a artista excepcional que foi Maria Callas.

Mas temos também um acontecimento único: a estreia no Arena de Verona, na véspera da qual, a 1 de Agosto de 1947, Maria Callas recebeu das mãos de Meneghini a pintura de Cignaroli.

É do cruzamento imaginário daquele objecto único com aquele acontecimento único que nasce a ideia, que o Arena di Verona decidiu pôr em prática, de exibir a miniatura, antes de uma récita de Turandot, com Anna Netrebko. Eis como o “evento único” é apresentada no site da Fondazione Paolo e Carolina Zani:

Uma colaboração entre a Fondazione Paolo e Carolina Zani e a Fondazione Arena di Verona para um evento único: 1 de Agosto de 2021. A Sagrada Família de Maria Callas retorna ao Arena.

A pintura de Giambettino Cignaroli, oferecida por Giovanni Battista Meneghini a Maria Callas a 1 de Agosto de 1947 retorna ao Arena exactamente 74 anos depois, por ocasião de um evento noturno, que inclui também a apresentação cénica de Turandot, de Giacomo Puccini, com um elenco internacional, incluindo, no papel principal, a soprano mais requisitada e admirada de todo o mundo nos últimos vinte anos, Anna Netrebko.

A pintura, talismã de Maria Callas, será exibida ao público no interior do portão 1, excepcionalmente das 17h00 às 19h00 para todos os visitantes com entrada livre, e depois, para todos os espectadores de Turandot, até ao final do espectáculo. Para Cecilia Gasdia, superintendente da Fundação Arena de Verona, graças a esta exposição, “é como se entrássemos no camarim e dele saíssemos sem perturbar a cantora, pois ela ainda está aqui, sempre viva”. Massimiliano Capella, director da Casa Museu da Fondazione Zani, sublinha que esta “não é uma operação nostálgica, devendo ser encarada como uma autêntica restituição artística. De facto, a pequena tela retorna ao lugar em que Maria Callas a recebeu das mãos de Giovanni Battista Meneghini.3

 

A ênfase no carácter único do evento – à boleia do carácter único do lugar, da data, do objecto, da artista, do espectáculo – não poderia ser mais óbvia. Foi ali, na Arena de Verona, que Callas recebeu de Meneghini este quadro de Cignaroli há setenta e quatro anos. É ali, nos bastidores do teatro, que a presença da cantora ainda se faz sentir. Será ali, no palco do anfiteatro, que uma apresentação de Turandot acontecerá ao vivo.

E porém – o que nos conduz a uma perplexidade fértil – falamos sempre de cópias. Não será Callas, mas Netrebko, que actuará ao vivo. Não são os camarins do Arena, como os encontrou Callas em 1947, mas do La Fenice em Veneza ou da Lyric de Chicago, que nos mostram as fotografias de Callas com a Sagrada Família. A própria miniatura de Cignaroli é uma réplica!

Eis, pois, uma pintura, cuja aura se torna inseparável do culto de uma artista, de uma intérprete, de uma cantora. Tal culto, aparentemente, não pode prescindir de cópias, mas nem por isso se deixa de falar na aura da artista, da sua presença, da sua voz. Tal paradoxo torna uma pergunta inevitável: quase cinquenta anos após a morte de Callas, de que é a persistência do seu mito, em pleno século XXI, um sintoma?

 

 

 

1 Ver https://www.arena.it/madonnina-callas (consultado a 15 de Julho de 2022).

2 Citado em Alan Riding “Once Again Callas’s Fans Can Bid Her Farewell”, New York Times, 11 de Julho de 2000.

Sobre o autor

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Musicólogo e filósofo. Lecciona na Universidade NOVA, onde integra o CESEM. É o autor de 'A Torção dos Sentidos: Pandemia e Remediação Digital' (Documenta, 2020; Elefante, 2021; Bloomsbury, 2022 [The Digital Pandemic: Imagination in Times of Isolation]) e de 'Verdade e Enigma: Ensaio sobre o pensamento estético de Adorno' (Vendaval, 2013), que recebeu o prémio do PEN clube português na categoria de primeira obra em 2014. Co-editou 'Rancière and Music' (Edinburgh University Press, 2020), 'Estética e Política entre as Artes' (Edições 70, 2017) e 'Pensamento Crítico Contemporâneo' (Edições 70, 2014). O seu trabalho foi publicado em revistas como 'The Opera Quarterly', 'New German Critique' e 'Sound Stage Screen', e em volumes colectivos como 'The Routledge Companion to Music and Modern Literature'. Entre 2017 e 2019, foi Marie Skłodowska-Curie Fellow na University of Chicago. Leccionou como professor visitante na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2016), na Universidade Estadual de Campinas (2016) e na Universidade de Brasília (2022). Traduziu para português Georges Didi-Huberman, Jacques Rancière e Theodor W. Adorno.