O primeiro acto da ópera O Deus do Vulcão de Tiago Cabrita, com a última cena composta por Elizabeth Davis e orquestração do primeiro, conta a história de mineiros de enxofre do Kawah Ijen, um vulcão conhecido por “Vulcão Azul” situado na ilha de Java. O libreto é de António Pacheco, baseado na história de Fernando Barata, que se centra na exploração dos mineiros deste vulcão pelo seu próprio deus, o Deus do Vulcão, e pelo Holandês, um rico comerciante. Estes mineiros revoltam-se, mas o seu protesto é rapidamente interrompido pelo Chefe da Polícia a troco de uma soma de dinheiro da parte do Holandês. Um outro personagem, o Líder Espiritual, defende-os acusando a hipocrisia e ganância do Holandês, Chefe da Polícia e Deus do Vulcão.
Assim foi o primeiro acto, estreado no passado dia 10 de Julho no 7.º Festival ao Largo, com a Orquestra Sinfónica Portuguesa e o Coro do Teatro Nacional de São Carlos, dirigidos por Osvaldo Ferreira, juntamente com o grupo de gamelão Yogistragong de Elizabeth Davis, impulsionadora deste projecto. Apoiada pela Embaixada da Indonésia e pela Emirates Airlines, esta estreia contou com a participação de Luís Rodrigues como Deus do Vulcão, Marco Alves dos Santos como Holandês, João Merino como Chefe da Polícia e João Cipriano como Líder Espiritual.
A não esquecer será também o video mapping de Paulo Seabra, projectado sobre a fachada frontal do Teatro e que funcionou como cenografia do espectáculo, tal como explica Tiago Cabrita: “ele respeitou muito o espectáculo, na medida em que o vídeo não foi, de modo nenhum, invasivo”. No entanto, a cenografia não resultou da melhor forma na medida em que o público sentado mais próximo do palco não tinha a noção do resultado da totalidade da projecção na fachada frontal do Teatro. Desta forma, a cenografia terá funcionado melhor através da transmissão televisiva da RTP2 ou talvez num outro contexto de espectáculo.
Em relação aos figurinos, tanto o Holandês como o Chefe da Polícia e o Líder Espiritual estavam vestidos de uma forma sóbria e representativa de cada personagem, o que contrastava vivamente com o figurino escolhido para o Deus do Vulcão, vestido com uma capa e armadura em azul eléctrico e cabeleira loura; haveria certamente outras alternativas mais eficazes para caracterizar a imponência e o poder deste personagem.
A nível de instrumentação, o uso do gamelão juntamente com uma formação sinfónica aumentou a densidade e complexidade harmónica e, tal como diz o compositor, “enriquece [a obra] a nível de textura e densidade”. O facto de as escalas usadas no gamelão terem sonoridades distintas das escalas ocidentais condiciona desde logo uma correlação melódica directa, e o seu uso “não tem grande potencial melódico, [é] mais harmónico. Uso o Gamelão em função da música, para servir e enriquecer determinados momentos”.
Não obstante, no processo de composição, explica Cabrita, houve por vezes uma combinação dos sons das escalas do gamelão com notas ocidentais aproximadas, o que conferiu a certos momentos uma certa ressonância e indeterminação. Em vez de um embate de sonoridades contrastantes, estas duas formações de culturas musicais distintas resultaram muito bem em conjunto, com o gamelão emprestando por vezes uma certa qualidade exótica às dissonâncias utilizadas, assim como um certo impulso rítmico nas linhas da orquestra. Em termos de narrativa, foi o material da orquestra que teve mais relevância, ilustrando os diferentes momentos operáticos de uma forma mais linear. É de destacar a delicadeza no processo de composição da parte de Cabrita, e de Davis no solo de gamelão, em conjunto com um libreto forte de António Pacheco.
Nas linhas melódicas dos solistas, Tiago Cabrita não estabelece qualquer tipo de relação entre ária e recitativo; no entanto, explica o uso frequente da declamação para assinalar a importância de momentos mais teatrais: “Há um determinado tipo de discurso, […] mais corrente, que para mim dificilmente deverá ser cantado […], há um tipo de discurso que cabe ao teatro e outro que cabe à música”. A nível dramático foi uma solução que se mostrou eficaz, especialmente em momentos mais poéticos, mesmo se por vezes pareceu interromper o fluxo melódico. Nesta ópera, estabelece-se assim uma relação definida entre texto e música quando a declamação é usada para sublinhar determinados momentos, por entre as linhas dos solistas, como é o caso da deixa do Líder Espiritual, na cena quatro, que declama “Da boca dos hipócritas saem ratos”, três vezes, ao dirigir-se ao Holandês corrupto.
Ainda relativamente ao texto, o compositor refere a importância de conteúdo na criação das linhas dos solistas, negando no entanto uma relação directa que adviria, por exemplo, da utilização de recursos como o Leitmotiv: há uma “relação grande entre [a] voz e [a parte] instrumental, entre texto e conteúdo – não interessa ilustrar explicitamente o que o texto diz, mas o conteúdo acaba sempre por contaminar a parte instrumental. Por um lado, [a] parte melódica acaba por funcionar como gesto gerador dentro da música instrumental; por outro lado, toda a linha vocal também vai contaminar a linguagem instrumental […]; tentei criar ambientes diferentes para determinadas personagens”.
No entanto, ainda referindo as linhas melódicas dos solistas, faltam por vezes momentos mais líricos que pudessem contrabalançar o peso do libreto – especialmente tendo em conta o uso frequente da declamação. Este primeiro acto apresenta um carácter bastante narrativo, que apela a um segundo acto em que o carácter lírico da ópera possa ser mais explorado.
No que toca à sua expressividade, há momentos a destacar, como a cena da revolta dos mineiros, representados pelo coro que fala desorganizadamente por cima da orquestra, juntando-se apenas para gritar as palavras “Fome” e “Sede”, acentuando o carácter dramático desta ópera. De facto, referindo-se ao papel do coro, Tiago Cabrita compara-o ao de uma tragédia grega, alegando também um ponto de contacto com formas mais clássicas: “ [é um] papel de coro grego, de tragédias gregas. É um ponto de contacto com coisas mais clássicas”. O clímax deste primeiro acto dá-se logo após este momento, com um acorde nos metais seguido do coro que canta a palavra “Dor”, e depois um silêncio que sublinha todo o peso do libreto.
A última cena deste primeiro acto diferencia-se ligeiramente do resto da ópera, não só por ter sido usada uma linguagem mais próxima da música tonal, por Elizabeth Davis, com orquestração de Tiago Cabrita, mas porque é aqui que o Deus do Vulcão afirma todo o seu poder ao manipular uma bailarina que entra em cena, Ana Sofia Leite. Este momento lembra-nos talvez “A Dança do Sacrifício” de Le sacre du printemps, excepto que a sacrificada não morre, mas rende-se à manipulação do Deus do Vulcão dada a sua impotência e vulnerabilidade, tal como explica Cabrita: “não houve morte, […] é mais rendição do que sacrifício”.
Esta é uma ópera com uma inegável relevância social para os dias de hoje, representando uma corrente operática actual indispensável pelo retrato que faz da realidade dos nossos dias. Neste aspecto, destaco a importância do papel do Líder Espiritual, que em vão acusa a hipocrisia e ganância dos restantes personagens, mas que não desiste de lutar por estes mineiros do Vulcão Azul. Com uma narrativa fortemente simbólica, esta ópera não deixa de ser uma parábola da sociedade actual: “Escolhemos este primeiro acto para começar porque trabalhava aspectos mais interessantes, emoções […], podíamos trabalhar temas que estão completamente dentro da nossa actualidade sem fazer disto uma caricatura […], retratar o sofrimento desses mineiros, que representa no fundo o sofrimento de todas as pessoas com esse tipo de condições precárias”.
Aguardo a obra na sua totalidade, com expectativa.