Sob o signo da sétima arte, os Dias da Música, em Belém, Lisboa, chegaram e passaram. Em 64 concertos, dos quais 35 esgotados, mais 11 concertos informais, no Coreto e no Palco Música Exterior, 19 sessões de cinema, 6 debates no espaço “Aqui há conversa” e mais uma mão cheia de actividades paralelas de projectos educativos e espectáculos por alunos de escolas e academias de música. Cerca de 1700 músicos, 26646 bilhetes vendidos (até às 17h de Domingo) e taxa de ocupação de 89%. São os números divulgados pelo CCB como síntese do último fim de semana, números que impressionam q. b. mas que não fazem mais do que uma contagem daquilo que foram três dias plenos de música.
À frente da sala Fernando Pessoa, poucos minutos antes das 16h, uma fila de ouvintes desenhava-se longa e expectante para o concerto dedicado à música do cinema português dos anos 30 e 40. O programa apresentava compositores que poucas vezes se escutam em sala de concerto. O concerto reunia canções, fados e marchas escolhidos de nomes tão diversificados como Frederico de Freitas, Luiz de Freitas Branco, Ruy Coelho, Afonso Correia Leite e Armando Rodrigues, Afonso Correia Leite, Wenceslau Pinto, Cruz e Sousa, Raul Ferrão, Raul Portela e António Melo, para filmes tão populares como Aldeia da roupa branca, O Costa do castelo ou Maria Papoila e Camões. Servindo-se de excertos dos filmes, cortados e colados sem sequência e sem coincidirem com as peças tocadas, o concerto perdeu parte da sua força porque as imagens atraíam a atenção dos ouvintes e sobrepunham-se à música. Vera Morais (flauta), Mário Franco (contrabaixo) e Francisco Sassetti (piano) usaram de todo o seu engenho para recriar aquelas peças, mas perderam-se entre as imagens e no final os aplausos aos músicos pareciam confundir-se com os aplausos a António Silva e companhia. Porém, o aspecto mais desconfortável do concerto foi a selecção de imagens de Salazar discursando frente a uma parada militar para acompanhar a interpretação de Minha casinha, canção nostálgica bem reconhecida do público. Foi um momento que me pareceu infeliz e de certa forma saudosista.
O intervalo antes do concerto seguinte permitiu desanuviar e embrenhar-me no ambiente do CCB. Um pouco espalhados pelo recinto, cabines electrónicas convidavam quem passava a responder a um inquérito rápido sobre a divulgação, frequência e preço dos bilhetes dos Dias da Música. Não creio que se possa dar muito crédito às respostas recolhidas porque todas as cabines que vi tinham o inquérito a meio, o que significa que foram iniciados por uma pessoa e terminados pela seguinte, ou deixados a meio. A iniciativa não é, no entanto, despropositada. Julgo ser pertinente realizar-se um estudo aprofundado sobre os público de música em Portugal, que analise os seus hábitos de escuta, frequência de concertos e preferências, cujos resultados poderiam, entre outros aspectos, contribuir para um debate fundamentado sobre a velha questão da necessidade de atrair novos públicos para a música clássica.
Entretanto, no Coreto, a orquestra de cordas da Academia de Música de Santa Cecília tocava o marcial tema de Star Wars. John Williams é capaz de ter sido dos compositores que mais se escutaram por estes dias, dado o seu extenso repertório em bandas sonoras de filmes, mas o meu itinerário concertístico tomou um outro rumo e outros ambientes.
No concerto que se sucedeu, o Huelgas Ensemble demonstrou com mestria domínio sobre a dinâmica na interpretação de música polifónica de Palestrina, William Byrd, Gregorio Allegri, Mozart, Bruckner e Fauré. Uma aura de solenidade envolveu o concerto, potenciada pelos crescendos tocantes na interpretação de Agnus Dei, de Palestrina, pelos efeitos sonoros e espaciais obtidos pela disposição dos cantores no Miserere, de Allegri, e pelo acompanhamento subtil (ainda que um pouco incerto) do Ensemble Darcos em Ave Verum de Mozart. No CCB o dia ainda se prolongou pelo serão fora, mas para mim terminou assim, sob o céu carregado a ameaçar chuva mas iluminado pelas vozes e interpretação do Huelgas Ensemble.
Aos poucos, as pessoas foram chegando para os primeiros concertos de Domingo e foi com rapidez que se formaram filas à entrada das salas. Na fila para a sala Luiz de Freitas Branco, onde em breve soaria música barroca francesa, havia quem tentasse vender um bilhete que tinha a mais para o concerto de António Victorino d’Almeida, às 15h. Sem sucesso, no entanto – as pessoas que interpelou já tinham a hora ocupada com outro concerto.
É sempre um prazer escutar a voz de timbre claro e cheio de Orlanda Velez Isidro e foi o seu nome que primeiro atraiu a minha atenção para o concerto com o Ludovice Ensemble, a celebrar dez anos de actividade. O filme Tous les matins du monde, de Alain Corneau (1992), que narra a história da relação entre Marin Marais e o seu mestre Jean de Sainte-Colombe, com banda sonora seleccionada por Jordi Savall, guiou o programa deste concerto, naturalmente preenchido por obras dos dois compositores, Marais e Sainte-Colombe, nas quais a viola da gamba sobressai. As melodias de La revêuse, Les pleurs ou La badinage foram tocadas nas violas da gamba por Sofia Diniz e Laura Frey, no geral bem coordenadas e com sonoridade suave. Fernando Miguel Jalôto, no cravo, cedeu por vezes à tentação de se sobrepôr e foi na última peça, Tombeau de M. de Sainte-Colombe, de Marais, que se sentiu maior unidade entre os intérpretes. Foi de assinalar as prestações dos sopranos Orlanda Isidro e Mónica Monteiro que ao interpretarem a canção Une jeune fillette, bastante graciosa, deram às suas vozes uma entoação mais brilhante e pura que contrastou com a sonoridade mais escura e madura com que interpretaram Troisième leçon du Mercredi Saint, de Couperin.
No intervalo antes do concerto da tarde, depois de aproveitar um pouco o sol no terraço do Jardim das Oliveiras, com vista para o Museu de Arte Popular e o Tejo, fui espreitar o objecto estranho no qual já tinha reparado ao passar no átrio em frente à sala Sophia de Mello Breyner. O móvel atraía a atenção de outros curiosos e compunha-se de um violoncelo, um violino, uma guitarra e uma fracção de teclado de piano incrustados no tampo, à mão de quem os quisesse experimentar e assim ver e perceber como é produzido o som desses instrumentos. A peça didáctica foi fabricada pela Ofício Artes, associação para o ensino, formação e desenvolvimento de actividades artísticas, com sede em Montemor-o-Novo, e é, sem dúvida, engenhosa.
Mesmo em frente, a sala Sophia de Mello Breyner esgotou para ouvir Joana Gama. O nome não me era estranho mas nunca antes a ouvira tocar. Rapidamente formei boa opinião: Joana Gama não só tocou com sentimento, vigor e fluidez, num perfeito jogo de mãos e acertada noção de tempo, como soube escolher bem o repertório tocado, que, embora diversificado, fazia sentido no mesmo programa. Aqui não importava tanto que a música pertencesse a um filme mas que pudesse evocar imagens. Seguindo esta ideia, Joana Gama conjugou as sonoridades frenéticas do mundo moderno da música de Satie para o filme surrealista Entre’acte de René Clair (1924), os temas minimalistas e exaustivos de Mad Rush de Philip Glass; as paisagens vastas e ambiente agreste que In a landscape, de John Cage, e que O movimento parado das árvores e Casa de granito no Minho, de António Pinho Vargas pareciam sugerir; e a música apaixonada de Michael Nyman para o filme O piano, de Jane Campion (2004). A pianista esteve sempre muito concentrada, tocando sem interrupção e sem que a música fosse ferida pelo ruído dos aplausos. Estes irromperam no final, sem dúvida bem merecidos. A fechar, Joana Gama ainda tocou com igual graciosidade e leveza o tema de Merry Christmas Mr. Lawrence de Ryuichi Sakamoto.
O último concerto mantinha-se no mesmo tipo de registo, contudo, em vez de paisagens sonoras, o pianista Stéphan Oliva abordou a música do film noir, ou filme policial e de suspense, repertório que tem vindo a trabalhar e a gravar. Sonoridades escuras, ocasionalmente pesadas e soturnas, dissonâncias e, de súbito, os inconfundíveis acordes estridentes e certeiros das facadas que Norman Bates desfere em Marion Crane no filme de Hitchcock encheram a sala, contrastando com alguns momentos mais jazzísticos e mais contemplativos (como na música de George Delerue). A improvisação tem um forte papel no trabalho de Stéphan Oliva, uma vez que a música que toca, embora anotada em partitura, é fruto da sua leitura dos filmes e das suas memórias auditivas e visuais dos mesmos. O resultado foi um recital original e uma boa forma de encerrar esta homenagem à música e ao cinema.
Saindo do CCB, caía a noite, ainda se ouvia ao longe o grupo Violinos do Moderno tocar Vivaldi no Coreto. Aos poucos o CCB foi-se silenciando e preparando-se para o concerto de encerramento.
Os Dias da Música regressam para o ano, para a sua 10.º edição e para uma “Volta ao mundo em 80 concertos”.