No fim-de-semana de 29 e 30 de Abril, o Centro Cultural de Belém abriu portas a nova edição dos Dias da Música. A escolha do tema deste ano recaía sobre obras inspiradas na palavra escrita e o programa sugeria a escuta de ópera, zarzuela, missa, canções de muitos estilos diferentes, música e compositores que, de alguma maneira, estivessem ligados à ideia da palavra, mesmo em obras das quais estivesse ausente e onde fosse apenas evocada. Pelas Letras da Música (ou “na música”, como julgo mais preciso), foi, assim, o público guiado ao longo dos concertos e actividades paralelas.

No Sábado, instantes antes dos primeiros concertos, o CCB parecia ainda vazio, mas já se fazia fila à porta das salas. Na Sala Almada Negreiros, aguardava-se o Quarteto Arabesco, que executaria a recomposição do Requiem de Mozart para quarteto de cordas. Este arranjo de Peter Liechtenthal permite uma escuta alternativa e de redescoberta da obra de Mozart, verdadeiramente mais intimista. Ainda que alguns efeitos de dramaturgia musical se percam pela redução da massa sonora e da variedade de timbres, mantém-se o fulgor emotivo da obra original, bem transmitido pelo Quarteto Arabesco sem sentimentalismo.

Entretanto, no Grande Auditório preparava-se a interpretação de Egmont, de Beethoven, a partir da peça homónima de Goethe. A peça relata a luta do Conde Egmont pela independência da Holanda contra o reino de Espanha, no século XVI, o seu encarceramento e condenação à morte. É uma obra na qual transparecem os ideais de liberdade e resistência face à opressão que são comuns a outras obras do compositor, tendo sido encomendada pelo director do Teatro da Corte para comemorar a libertação da cidade de Viena do exército de Napoleão, em 1809. A música é figurativa, transpondo nas várias passagens os ambientes de agitação, guerra e contemplação da peça. A Orquestra de Câmara Portuguesa foi dirigida por Pedro Carneiro com a segurança e clareza que lhe são características, soando homogénea e perfeita. Carneiro é, sem dúvida, um dos melhores maestros da actualidade em Portugal e é sempre um prazer escutá-lo. O soprano Eduarda Melo, no papel de Clara, evidenciou uma vez mais a voz bem colocada e projectada. Ao narrador, Pedro Gil, faltou um melhor estudo do texto, cuja leitura soou pouco natural, por vezes forçada.

Ainda com a música de Beethoven a soar, acorri ao recital de piano de Vasco Dantas. O programa era preenchido por obras igualmente caracterizadas pela intensidade emotiva, tendo sido interpretadas as Cenas Infantis de Schumann e as transcrições para piano de Cavalgada das Valquírias e cena final de Tristão e Isolda, de Wagner, e da suite O pássaro de fogo, de Stravinski. Repertório exuberante e exigente que se adequa bem às capacidades técnicas de Dantas. O pianista mostrou um bom domínio do teclado na velocidade e dinâmica. O ataque certeiro e seco em fortíssimo da entrada da suite de Stravinski deixou, por instantes, a audiência em suspenso. Porém, o virtuosismo de Dantas não se registou apenas nas peças mais espectaculares –  a calma sonhadora do ciclo de Schumann foi bem evidenciada pela dedilhação suave e justo equilíbrio entre mãos.

No Domingo, a escolha dos concertos acabou por cair, sem planeamento prévio, em programas nos quais figuravam obras de dois compositores portugueses. O primeiro juntou duas leituras da peça Peer Gynt, de Ibsen. O Perspective Trio, formação de piano, clarinete e fagote, vencedor do Prémio jovens Músicos 2015, tocou secções da suite de Grieg e O imaginário em Peer Gynt e O eterno feminino em Peer Gynt, de Carrapatoso. Linguagens musicais distintas, mas que não destoaram, a fantasia de Ibsen é traduzida pelos dois compositores em peças onde se sente a despreocupação, jovialidade e movimentação da personagem. Carla Caramujo interpretou com o trio A canção de Solveig e Canção de Embalar de Solveig, de Grieg, mostrando voz bem timbrada, escura e expressiva. Houve instantes nos quais o trio pareceu menos concentrado, mas ao longo do concerto demonstrou boa fusão entre si. O Imaginário em Peer Gynt teve estreia mundial neste concerto e Carrapatoso, estando presente na sala, foi chamado a palco para partilhar os merecidos aplausos do público.

Em 2017 passam 200 anos sobre a composição do Requiem de Bomtempo, dedicado à memória de Camões, e o Ensemble e Coro MPMP não quiseram deixar de assinalar a data. A obra foi tocada com as vozes solistas de Joana Seara, Ana Ferro, Pedro Rodrigues e Nuno Dias, sob a direcção do maestro Jan Wierzba, que conseguiu um justo equilíbrio entre coro, solistas e orquestra. Nesta, distinguiu-se o recurso a trompas naturais e sacabuxas, que enriqueceram a sonoridade da orquestra com os seus timbres mais abafados e estridentes, respectivamente.

Foi com satisfação pela qualidade das obras e intérpretes escutados que cheguei ao final dos Dias da Música. Reparei este ano haver menos movimento nos intervalos entre concertos e, no concerto da Orquestra de Câmara Portuguesa no Grande Auditório, foi particularmente notória a ausência de público. O texto de Cristina Fernandes publicado no jornal Público (1/5/2017), informa que a taxa de ocupação foi de 70% – recordo que em 2015 tinha sido de 89%. É impossível considerar, sem a análise das diferentes variáveis, as razões para esta tendência, mas coloco a questão: estarão os Dias da Música a cair numa rotina de programa, que atrai menos público novo e não consegue assegurar o público habitual para vários concertos? No próximo ano se verá o que acontece.

Sobre o autor

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Mariana Calado encontra-se a realizar o Doutoramento em Ciências Musicais Históricas focando o projecto de investigação no estudo de aspectos dos discursos e das sociabilidades que caracterizam a crítica musical da imprensa periódica de Lisboa entre os finais da I República e o estabelecimento do Estado Novo (1919-1945). Terminou o Mestrado em Musicologia na FCSH/NOVA em 2011 com a apresentação da dissertação "Francine Benoît e a cultura musical em Portugal: estudo das críticas e crónicas publicadas entre 1920's e 1950". É membro do SociMus – Grupo de Estudos Avançados em Sociologia da Música, NEGEM – Núcleo de Estudos em Género e Música e do NEMI – Núcleo de Estudos em Música na Imprensa, do CESEM. É bolseira de Doutoramento da FCT.