LEONOR DE LUCENA, Dicionário do Cantor Lírico (Italiano-Português), edição de Autor, [Lisboa], 2009. ISBN 978-989-20-1784-6
Entre as diversas disciplinas artísticas compreendidas pela arte musical, o canto afigura-se-nos sem dúvida como uma das mais complexas e exigentes a que um intérprete se pode dedicar, pela correlação entre a semântica da linguagem e a abstracção do discurso musical que está na génese da própria Música de tradição ocidental. A criação da Ópera, o género musical mais abrangente sob uma perspectiva artística, fruto da confluência do Teatro, da Música vocal e instrumental, e da Dança, procurou recuperar, nos primeiros anos do séc. XVII, o próprio teatro grego, recorrendo para isso ao imaginário mítico, tantas vezes reinventado, a partir dos textos originais de que Eurípides constitui o modelo primordial. Uma das principais dificuldades que encontram quer o estudante, quer o cantor profissional é justamente a tendência arcaizante dos textos que serviram de base à criação operática de temática erudita, em que ocorrem inumeráveis vocábulos e formas verbais de difícil compreensão, de uso restrito ou intencionalmente antigo, e toda a série de artifícios de que os libretistas se serviram para criar uma forma de expressão sublime e elevada.
O Dicionário do Cantor Lírico, de Leonor de Lucena, procura constituir um instrumento útil à resolução mais imediata das questões lexicais com que os cantores deparam ao longo do trabalho com a língua italiana. A Autora leccionou a disciplina de Italiano no Conservatório Nacional entre 1979 e 2007, tendo desenvolvido também importante trabalho no domínio da tradução. O dicionário, “destinado aos Professores e Alunos de Canto, aos estudiosos e apaixonados pela Ópera Italiana, portugueses e italianos”, é dedicado aos colegas da Classe de Canto do Conservatório Nacional e às várias gerações de alunos que beneficiaram do saber e do ensino da Autora. Não é este um dicionário de italiano, mas uma obra de lexicografia destinada àqueles que, possuindo já uma familiaridade apreciável com a língua, procuram aprofundar o conhecimento “da língua dos libretos de ópera” (“Ao leitor”, p. 8), perante a qual “também os italianos não deixam de ter dúvidas, dificuldades e apreensões” (ibidem).
A obra é apresentada no antelóquio primordialmente como um léxico de palavras raras ou com sentidos diferentes da acepção moderna mais corrente. Em epígrafe encontra-se uma citação plena de sentido de La Dafne, de Marco da Gagliano: “Procurirsi/in quella voce/di scolpire le sillabe/per far ben intendere/le parole: e questo/sia sempre il principal/fine del cantore in ogni/occasione di canto,/massimamente nel recitare,/e persuadasi che/il vero diletto nasca/dall’ intelligenza/delle parole”, bem ilustrativa da insistência da Autora na interdependência entre palavra e música, o fenómeno primeiro, mais importante e, porventura, o mais difícil de apreender pelo cantor, da expressão musical. É todo o tempo do género operático a que o corpus em apreço nesta obra se reporta, desde os primeiros exemplos seiscentistas (a Euridice de Peri e L’Orfeo de Monteverdi) até à música do séc. XX (Puccini ou Zandonai), incluindo também autores portugueses, como Francisco António de Almeida e Marcos Portugal.
O critério seguido é o da inclusão de vocábulos, “raros uns, poéticos ou literários outros, antigos ou arcaicos, ou ainda regionais ou populares, que nem sempre constam dos (…) dicionários bilingues comercializados e acessíveis ao público em geral”, a par de um grupo de mitónimos, cujo conhecimento é fundamental para a entrada no mundo histórico-mitológico, parte fundamental dos argumentos de ópera até ao séc. XVIII e de parte tão importante das criações dos séculos seguintes.
Aqui, louvando embora a Autora pela atenção para com este pormenor, não podemos deixar de lamentar a circunstância que origina esta necessidade: a falta generalizada do conhecimento da Cultura Clássica, chave para o acesso a todas as manifestações da Arte Europeia, entre as gerações saídas do actual ensino. A necessidade de explicitar a identidade de figuras como Agamémnon, Alceste ou Tântalo, bem como de epítetos tão comuns como Febo ou Palas, constitui uma evidência de como, privilegiando questões superficiais, aparentemente mais próximas de nós, prescindimos das litterae humaniores, raízes que nos permitem compreender-nos enquanto civilização.
Não temos dúvidas de que este trabalho constituirá um importante contributo não apenas para o ensino, como para o labor quotidiano dos músicos e para o estudo individual dos amantes da ópera.
Recensão originalmente publicada em Glosas 11 (2014), p. 93.
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