Overture
…only the one who was in anxiety finds rest…
Søren Kierkegaard, Frygt og Bæven [Fear and Trembling] (1843)
António Pinho Vargas (Vila Nova de Gaia, 1951), compositor, pianista, improvisador, professor, pensador, autor incontornável quer na área do Jazz, quer na área da música clássica contemporânea portuguesa, quer ainda no campo da reflexão filosófica e estética sobre Música, é uma personalidade de tal forma importante na transição do século XX para o século XXI que tentar um perfil, por pouco ambicioso que este seja, revela-se uma tarefa árdua e ingrata, à partida condenada ao insucesso por pecado de incompletude. O peso e a influência que a sua actividade (como criador, professor, pensador) tem nos nossos dias, em Portugal, só pode ser comparável ao peso e influência de algumas – poucas – personalidades que, como ele e antes dele, actuaram de forma impactante nestas duas áreas, personalidades como Luiz de Freitas Branco, Fernando Lopes-Graça e Emmanuel Nunes, talvez os três nomes, antes de Pinho Vargas, que, em Portugal, e no campo da música moderna, tiveram um papel predominante na formação de paradigmas estéticos, sociais e filosóficos que absorveram a sua época e as épocas que lhes sobreviverão, não sendo talvez por acaso que todos estudaram com o que os antecedeu: Lopes-Graça com Freitas Branco, Emmanuel Nunes com Lopes-Graça e, embora não de forma tão exaustiva (apenas sob a forma de seminários na Fundação Calouste Gulbenkian), Pinho Vargas com Emmanuel Nunes.
Não ignorando as imensas diferenças (e até as várias incompatibilidades) existentes entre estes quatro compositores, e mesmo as polémicas estéticas e diferendos que acompanharam as suas relações, parece-me claro que existe algum tipo de filiação que os permite agrupar: por um lado, a atenção ao mundo, o sair da música para o mundo, o pensar sobre ela, o intervir na sociedade como intelectual, tendo em conta também o presente e não apenas o mítico futuro de todos os vanguardistas pós-mahlerianos (“O meu tempo há-de chegar!”); por outro, o rigor e a seriedade que dedicam ao seu ofício – seriedade moral inclusivamente, poderia acrescentar. E, se dos quatro, Emmanuel Nunes foi o que menos “saiu” de si próprio e da sua música, sendo de certa forma produto do típico modernismo exclusivista do pós-Darmstadt, ainda assim reflectiu teoricamente, quer sobre a Música em si, quer sobre a relação do artista com o seu meio, nem que fosse pela relação conturbada que sempre teve com o meio musical português (provocada fundamentalmente por querelas estéticas e pela postura altaneira de alguém que fez toda a carreira entre França e Alemanha), relação que foi igualmente complicada (quer pelas mesmas razões, quer por outras completamente diversas) para Freitas Branco (pelo seu modernismo e perfil político monárquico e integralista), para Lopes-Graça (pelo seu modernismo, feitio desafiador e avesso a compromissos e, claro, pelo comunismo assumido) e, finalmente, para António Pinho Vargas. Deste último e das suas relações com o meio musical falarei mais tarde, até porque a relação tensa de António Pinho Vargas com este meio não se fica por Portugal. A crítica do compositor é, em geral, dirigida a contextos internacionais onde Portugal está envolvido e nos quais, como pequeno país, nada pode nem manda.
Esta tentativa de “perfil” afigura-se-nos, assim, tarefa complexa, mise en abyme vertiginosa que exigiria uma tese de doutoramento ou uma biografia extensa, algo que, conhecendo o meio português, creio ainda distante no tempo. Conhecer alguém é – ainda – mais complicado do que conhecer uma obra, e tentarei, dentro do possível, cingir-me às obras, e àquelas que (e felizmente ainda são em bom número) conheço melhor. Por razões meramente de tempo e espaço, e não de gosto, não comentarei aqui nem a obra jazzística, de improvisador, nem a obra escrita, embora a ela possa recorrer no decorrer deste ensaio,[i] e não cometerei a inanidade de repetir o que o próprio António Pinho Vargas já disse sobre tão variados temas e sobre as suas obras, remetendo desde já o leitor para a obra escrita do compositor – obra que, pela solidez intelectual, melhor do que qualquer outra sobre o assunto pode elucidar os interessados na música e no pensamento de António Pinho Vargas. Resta-me oferecer, pois, a minha visão pessoal, o que procurarei aqui fazer.[ii]
Como observa Milan Kundera em A insustentável leveza do ser, citando um provérbio popular alemão (e misturando Nietzsche e o seu “Eterno Retorno” en passant), “einmal ist keinmal” (uma vez é nunca) – e assim, enquanto esperamos por discos ou gravações que, na maioria das vezes, não aparecem em tempo útil, resta-nos esse “keinmal”, essa única vez da estreia (se tivermos sido afortunados pela possibilidade de a presenciar). Uma das características filosóficas mais constantes de Pinho Vargas tem sido o interrogar-se sobre a efemeridade ou permanência da obra, sobre o acto criativo em si, sobre a relação entre o criador e a sociedade que recebe o que escreve, e a sua personalidade musical orientou-se desde o início para o “peso”, em detrimento da “leveza”, e aqui recorro novamente a Kundera e ao romance antes citado[iii]:
Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está a nossa vida, e mais ela é real e verdadeira. Por outro lado, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, com que ele voe, se distancie da terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne semi-real, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes. Então, o que escolher? O peso ou a leveza?
Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um actor entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo ‘esboço’ não é a palavra certa porque um esboço é sempre um projecto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro.
Só é grave aquilo que é necessário, só tem valor aquilo que pesa.
[…]
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[i]São elas (as publicadas), por ordem de edição: Sobre Música – Ensaios, textos e entrevistas (Porto, Afrontamento, 2002), Cinco Conferências – Especulações críticas sobre a História da Música do século XX (Lisboa, Culturgest, 2008) e Música e Poder – Para uma sociologia da ausência da música portuguesa no contexto europeu (Coimbra, Almedina, 2011).
[ii] E procuro fazê-lo iludindo a memória; ou seja, não fui – propositadamente – reler os textos de António Pinho Vargas (tarefa que remeto para o leitor deste ensaio), por forma a não me deixar influenciar pelo seu pensamento, e assim (talvez) conseguir uma abordagem pessoal da sua obra.
[iii] Milan Kundera, A Insustentável leveza do ser, Lisboa, Dom Quixote, 1998.