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2. Luxo e desperdício
Ao compor uma ópera, Pinho Vargas impregna-a de aspectos da sua visão do mundo. Visão que explora e partilha nos seus textos, artigos, comentários, vivência, ideias que defende e promove publicamente. Argumenta que “não há nenhuma técnica separada de uma ideia estética” (12 Abril de 2003, Entrevista a MIC) e vê a partitura apenas como um dos vários momentos de um processo de comunicação musical, que não ficará completo sem o público, referindo “a falácia poiética que consiste em considerar que o sistema de relações internas, desde que exista na partitura (…) constitui em si a legitimação da obra enquanto estrutura interna e obra de arte. Pode-se compreender que os compositores tentem defender o seu trabalho como podem. No entanto, penso hoje, com muitos outros, que não é assim. O sistema de relações que uma obra propõe só poderá funcionar na medida em que se traduzir numa percepção delas” (2 de Abril de 2014). Crê, portanto na necessidade de amadurecimento ou empoderamento das obras no processo de comunicação com os públicos. Seria, então, necessário que esta existência fosse sustentada pela circulação, reposição, gravação das obras, situações que são, a maior parte das vezes, abreviadas ou irrealizáveis.
O desinteresse por parte de instituições que desempenham papéis importantes no campo da Cultura em Portugal, na dinamização deste repertório, impossibilita, assim, o que o compositor designa como “efeito de encantamento” do público, cujo contacto se circunscreve frequentemente à única vez em que assiste à representação da peça (2007): “a muito limitada representatividade das récitas de uma nova ópera tem vindo a descrever este acto de produção como “um luxo e um desperdício” (idem). Escreve: “a gravação da minha ópera Os dias levantados existe editada em disco. Isso aconteceu porque eu próprio me pus em campo e dei os passos necessários para que isso pudesse acontecer (…). No final desse processo jurei que não voltaria a fazer tal esforço. Se só depende de mim desencadear tal esforço, então não o farei novamente. Parece-me que toda a gente — refiro-me, naturalmente, a pessoas com responsabilidades na gestão cultural – está razoavelmente satisfeita com a duração localizada que estes eventos têm habitualmente.” (Pinho Vargas 2007)
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3. Dos cânones e da alegoria da morte da Ópera
Há mais de um século que proliferam as declarações de morte da Ópera ou da sua obsolescência, para não mencionar as numerosas outras contestações ao género, que o acompanham desde a sua génese e naturalização. Turandot (Puccini) e Lulu (Alban Berg) são frequentemente identificadas como “a última ópera”. Além de não subscrever a antropomorfose da ópera, não creio que a discussão de uma alegada morte deste género nos beneficie. Mas de que se quer falar quando se fala da morte da Ópera? A maioria das vezes não é do género operático que se fala, mas das suas condições de produção e modelos de consumo, bem como dos sistemas de expectativas que a ancoram. Ou seja, da ópera como instituição (cf. Littlejohn 1992; Johnson, Fulcher & Ertman 2008).
Mladen Dolar e Slavoj Žižek defendem, no livro Opera’s Second Death (2001), que a Ópera nunca teria estado em sintonia com o seu tempo, apresentando-se como “desactualizada” e “impura” desde o surgimento, como solução retroactiva a uma crise da Música. Ora, os autores enredam-se na “armadilha” que eles próprios discutem: a do desejo de identificar qualidades de “pureza” e “actualidade” na Música, ou seja, a possibilidade de tratar a Música como “coisa em si”, dissociada das redes sociais, da época, pensamento, dinâmicas e processos em que se integra. O efeito de estranheza e sedução provocada por esta expressão não se deve, em minha opinião, a uma alegada sensação de desfasamento psicológico do tempo em que é produzida, mas talvez a algo bastante mais simples e mundano – por um lado, à sua lógica músico-dramatúrgica (teatro cantado), por outro, à manutenção de padrões de comportamento e de repertório associados a uma ideia de ritual operático estabilizado no século XIX. A perpetuação de um repertório relativamente circunscrito, decorrente especialmente do século XIX italiano, alemão e francês, “celebrado” em associação a um conjunto de procedimentos estereotipados, tem sido a base de críticas reiteradas desde a II Grande Guerra. Roger Parker observa, na entrada “Opera” do New Grove Dictionary of Music and Musicians, que “mesmo que alguns possam lamentar a situação, e considerando que se verificam actualmente sinais de uma mudança significativa, uma grande maioria das óperas que formam o repertório internacional nos nossos dias provém ainda de um “prolongado” século XIX, de cerca de 1780 até cerca de 1920” (Parker 2012). Pinho Vargas refere que “dentro do cânone global da música ocidental, o cânone operático será o mais forte, o mais resistente” (2016), e que “mesmo nos casos em que uma ópera do século XX, como Le grand macabre de Ligeti ou The Death of the Klinghofer, de John Adams, foi objecto de um conjunto mais vasto de encenações, isso não obsta a que, na verdade, nenhuma delas consiga fazer parte do cânone operático que serve de base ao repertório lírico dos teatros de ópera do mundo” (2007, Ópera hoje).
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5. Outro fim
Este capítulo propõe-se responder à pergunta exposta no início do texto – o que leva o compositor a sentir necessidade de abreviar a potencial continuidade da sua produção músico-teatral? Pinho Vargas discute “o que há de errado” na existência exígua das novas produções operáticas. Das suas seis óperas, apenas Édipo – tragédia de saber e Os dias levantados foram objecto de reposições em versões de concerto. Retirou, entretanto, A Little Madness in the Spring, que tinha originalmente pensado rever. Houve algumas perspectivas de reposição, nomeadamente de Outro fim, mas vieram a revelar-se infrutíferas. Na conversa que tivemos, há poucos dias, referiu: “não suporto trabalhar dois anos numa ópera e depois assistir aos dispositivos de destruição que a sociedade portuguesa põe frequentemente em acção contra os seus artistas. Face a isto tomo uma posição: não quero participar num ‘mundo da arte’ que maltrata e descarta aquilo que muitas vezes nas estreias ou antes delas mesmo me foi dito como sendo ‘uma grande ópera’ [Os dias levantados]. Há qualquer coisa de muito errado nisto” (2016).
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