Naquela noite de 1984 ficámos todos de pé a ver o Lopes espantar Los Angeles. Ele era aquele ser extraordinário, magro, com um tórax enorme, como o fundo de um barco e os olhos fitados lá longe desde o primeiro passo. (Corria como quem lia uma partitura; sempre com os olhos vários compassos à frente.)

Foi um único arrepio-bom, essa longa madrugada de maratona. Um arrepio transatlântico; como se um nervo saído do rosto olímpico e imperturbável do Lopes atravessasse o mar e nos vibrasse as perturbadíssimas faces e peitos e olhares e almas.

O arrepio-bom assumiu, porém, proporções telúricas, mais tarde, quando o Lopes subiu ao mais alto cubinho do pódio. Ali estava ele, olhar no infinito (como se o dele procurasse os nossos) com a bandeira ondulando atrás, numa edição de imagem do mais avançado para a época. Foi nesse momento magnético que se ouviu o Keil.

Como aquela música nos tocou naquela longa jornada!

Eu ainda não sabia (nem sei se o Lopes o saberia também) que aquela melodia tinha saído da alma de um português chamado Keil. Eu não sabia, sequer, que havia portugueses chamados Keil.

Foram milhões a sentir esse arrepio-keiliano agarrar-lhe a espinha pelos colarinhos, quando a canção caminhava para o “pela pátria lutar”. Não, não é isso… não falo de patriotismo exacerbado (até podíamos estar a cantar “pela prática do lar”, que aquela música não teria menos força), falo somente do poder magnético daquela frase: do modo como é preparada, numa espessa nuvem, e depois se deixa chover sobre nós, num dilúvio forte como um silêncio consentido. As canções são assim, como a chuva (coisa invertebrada): chovem-se sobre nós e tomam a forma dos receptáculos. Podem doer ou curar, porque a sua carga depende sempre do receptor e do momento – e isto já é o autor a desconversar.

O português é dado ao arrepio e chora e grita e aflige-se com a perícia de um piloto experimentado. Mas poucos portugueses conhecem a verdadeira dimensão do arrepio-keiliano.

Basta pensar que poucos terão alguma vez sentido o arrepio-bom ouvindo Aben sussurrar a Bianca “amor dell’anima, soave speme”, numa noite de D. Branca. Poucos se terão arrepiado com o Pai Nosso de Nabor ou com o sereno “destino fatal” de Zabel, que abre a porta à sua luminosa morte no final d’A Serrana. Mas este arrepio-bom merecia ser decretado desporto nacional. O arrepio-Keiliano, que atravessa estádios, plateias, camarotes e salas de gravação é terapêutico. É o grande-arrepio. (O arrepio por excelência.) Porque o arrepio que nos é arrancado tem uma força superior aos que nos nascem no corpo, por vontade. Às vezes é uma pequena vibração, outras vezes um erguer de todos os pelos do antebraço e um sismo torácico.

Naquela noite de 2010 quis repetir essa jornada californiana; quis revivê-la como quem ouve a mesma canção em busca do fulgor do arrepio primeiro.

Esperarei que caia a noite para sair a correr e ouvirei o Keil à chegada e sentirei de novo o arrepio-bom de cima de um pódio inventado. Assim o fiz.

Preparei a casa. No centro da sala coloquei um cubo (uma caixa morta de electrodoméstico vivo), coberta com um pano branco. Colei-lhe o numero 1.

Fui à procura de música do Keil. Não tinha A Portuguesa (outro caso enigmático de grande sucesso junto do público, com fracas vendas discográficas), mas encontrei um dueto de Dona Branca num disco esquecido da estante e tirei-o. Depois vesti o meu equipamento de treino, calcei os ténis e comecei uns alongamentos. Concentra-te Lopes (que depois nem era o Lopes, era eu). Concentra-te! Pus o disco (a confirmar a faixa) e abri a janela a ver o céu que me esperava. (O ar é bom, aqui. Maresia intensa, atlântica. Correr ao longo dos passadiços da praia, lua, um espirro…pôs-se frio, agora, nestas primeiras noites de Outono.)

O dueto começou (o início como mar sem ondas). Rodei o pescoço, uma, duas vezes. Os sopros a sossegar-me o peito e a larga janela a afastar-se lentamente dos meus pés. Fechei os olhos (não as pálpebras; só um virar para dentro) a sentir o corpo. Estava de pé junto ao pódio branco e parecia sentir na face (tinha os olhos virados ao tecto) a chuva rala dos primeiros Outonos. Aquela música flui; é uma complexidade curva, sem ângulos rectos ou esquinas traiçoeiras.

Um formigueiro alastrou do pescoço para os ombros, (uma lenta expansão, um descuido) – amore dell’anima – e depois alargou-se pelos braços e subiu de novo, cada vez maior, mais denso, quase enorme – gia l’alma inebriasi, il cielo… – Não levantes os pés. Pousa-os! Deixa que gelem e frios, transpirem raízes.Fica calado. Imóvel.Deixa qu,e em silêncio, suguem da terra as palavras que dizes. O ardor, tornado líquido (como as verdadeiras canções) tocou-me os olhos. Agarrei os pés ao chão a beber do soalho. Estava todo ali, soberbo, o imenso arrepio-bom. Deixei-me sentar. Inalei-o, bebi-o mais e senti-o percorrer-me, como uma graça.

Visitou o meu corpo nessa noite, o arrepio-keiliano. Só depois respirei. Parei o disco. Fechei a janela e relaxei, esvaziando olhos e tudo o que era força.

Não corri.

Não, Lopes, não corri mas não me repreendas. Nós somos alma e corpo. Somos fortes e frágeis. Somos canções (invertebrados) que chovem em chãos diferentes…que também somos.

E depois, (tu bem o saberás): mesmo no dia mais longo, fica-nos sempre algum suor por transpirar.

 


 

Imagem de Maria Gil.

ARTIGO PUBLICADO NA GLOSAS 2 ( Clique aqui para ler o artigo na versão impressa ).

Sobre o autor

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Publicou 'A Valsa dos Sem-Isqueiro' (Multiplas Virtudes 2006), 'Amílcar, consertador de Búzios Calados' (30porumalinha, 2011) (Prémio Matilde Rosa Araújo de Conto Infantil), 'Afonso Cabrita, meu tio, ensaísta, toureiro e melancólico' (LASA, 2011) (Prémio Bocage de Conto), 'José, será Mago?' (Quidnovi, 2012) e 'Histórias da Música em Portugal' (mpmp, 2013). Escreveu e encenou para o Serviço Educativo da Casa da Música, Quarteto Vintage e para as companhias Ópera Isto e All’Opera. Para os Meninos Cantores da Trofa compôs 'Amílcar, Consertador de Búzios Calados' e a cantata de Natal 'Adoro Dezembro!'. Cantor, tem-se apresentado no Teatro Nacional de São Carlos, Fundação Gulbenkian, Coliseu do Porto, La Fenice de Veneza, BAM de Nova Iorque, La Monnaie de Bruxelas, Regio de Turim, Maestranza de Sevilha, Óperas do Cairo, Tóquio, Seul e Muscat. Dirige o Estúdio de Ópera do Conservatório de Música de Coimbra.