A porta, objecto do quotidiano actual frequentemente esquecido, possui, em certos contextos, alguma importância histórica, por vezes não por si só, mas pelos indivíduos que a manusearam. O presente texto não pretende ser um exercício filosófico da simbologia da porta, nomeadamente através das suas leituras bíblicas, tão associadas à arte religiosa, mas sim propor uma abordagem contextual tomando como ponto de partida dois exemplos em que este objecto surge como objecto do quotidiano de alguns dos músicos que se distinguiram, não só no plano musical local de Évora, como também no panorama musical português, sobretudo nos séculos XVI e XVII. Este texto propõe, assim, uma breve reflexão sobre estes dois contextos, que, embora distintos, estão bastante próximos. Deste modo, as duas portas apresentadas neste texto, que tiveram um uso intensivo, enquadram-se no contexto da paisagem sonora sacra da cidade de Évora. Esta foi uma das mais importantes de Portugal durante a segunda metade do século XVI, estando os dois objectos aqui tratados intimamente ligados à história musical da urbe alentejana.
Percorrendo, de uma forma muito rápida, a História da Arte europeia, encontram-se alguns dos mais exemplos mais notórios de portas decoradas em edifícios religiosos nas cidades italianas da Renascença. Para além de guardarem o seu interior, estes elementos revestiam-se ainda de um forte carácter simbólico. A título de exemplo, refira-se as portas do Baptistério de Florença, realizadas na primeira metade do século XV por Lorenzo Ghiberti, representando a vida de Cristo em 21 painéis e outros 8 representando os Evangelistas e Padres da Igreja. Quem as transpôs certamente não ficou indiferente a estas obras-primas que demoraram 21 anos a completar, merecendo de Michelangelo Buonarroti o epíteto de Portas do Paraíso. Giorgio Vasari descreveu-as um século mais tarde como “inegavelmente perfeitas em todas as formas e figuram como a melhor obra-prima jamais criada”. Estas foram apenas duas das inúmeras figuras das história da arte Ocidental que tiveram a oportunidade de observar as obras-primas de Ghiberti e delas deixaram o seu testemunho pessoal. No entanto, nem todas as portas tiveram semelhante sorte.
No que diz respeito ao contexto eborense – significativamente mais modesto do que a opulência artística florentina – e, mais concretamente, à sua Catedral, encontram-se dois exemplos de portas que despertaram a atenção pelo seu contexto musical. Regra geral, são raras as portas decoradas, sendo mais comum a decoração dos pórticos onde estas encaixavam, através de minucioso trabalho em pedra, como é o caso do pórtico da Catedral de Évora, obra quatrocentista atribuída a Mestre Pero. Bastante mais singelas e de difícil comparação às congéneres italianas são as duas portas eborenses objecto do presente texto, com características marcadamente mais funcionais. Estas, embora representem um contexto (musical) e tenham funções idênticas, estavam em locais com uma dinâmica e usos muito diferentes.
Em Évora existem pelo menos dois casos, que, embora não se constituam como obras-primas pela sua decoração, encerram um contexto musical e cultural associado que convém referir e cuja importância praticamente nunca é mencionada em estudos de História da Arte. O primeiro destes exemplos encontra-se actualmente em exposição no Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo (Museu de Évora) consistindo num conjunto de duas portas que pertenceram ao Celeiro do Arcebispo de Évora, no edifício onde actualmente funciona a Biblioteca Pública de Évora.
As portas pertenciam ao pórtico Sul do antigo celeiro contíguo ao actual edifício da Biblioteca Pública, tendo sido as mesmas descritas pelo historiador Gabriel Pereira no início do século XX. Pereira descreveu o local e a zona circundante ao antigo celeiro do Arcebispo, sendo interessante verificar na sua descrição um tom pitoresco ainda ao estilo oitocentista no sentido de transportar o leitor para pleno século XVI. À época do historiador, o celeiro possuía uma porta voltada a sul, que dava para um terreiro de forma irregular, uma vez que estava dividido por um socalco que o atravessava de forma oblíqua num plano inclinado. A um lado encontravam-se as altas paredes da Catedral. Do lado Nascente, algumas casas, o celeiro do Cabido e um pórtico, encimado com um brasão, que conduzia ao Pátio de S. Miguel (e ao Palácio dos Condes de Basto, actualmente edifício da Fundação Eugénio de Almeida). Do lado Norte situava-se a torre chamada de Sertório (integrando actualmente a Biblioteca Pública de Évora), onde funcionava ao tempo de Gabriel Pereira um observatório meteorológico, o celeiro, parte do edifício da Biblioteca e um passadiço suportado por um arco que ligava o edifício ao Paço Arquiepiscopal, a Poente do terreiro. O celeiro possuía um alpendre cujos arcos foram preenchidos criando aquilo que Pereira designa como vestíbulo, em cujo interior pode ser encontrada a sua entrada primitiva e o pórtico onde estavam colocadas as respectivas portas.
Pereira prossegue descrevendo em pormenor as ditas portas. Começa pelos batentes que são formados por tábuas de castanho, sem qualquer lavor. Por cima destas foram aplicadas tarjas de ferro, “alumiadas, muito lavradas, de vários desenhos de nítida execução”, com folha de ferro de cerca de um milímetro de espessura. Vinte pregos, de cabeça circular e vincada, fixam as tábuas às travessas, treze, de cabeças lavras em forma de flor, estão na tarja superior. As tarjas que encimam a porta possuem o mesmo motivo decorativo, contrariamente às que estão imediatamente abaixo e as inferiores, possuem motivos diversos. Pereira conclui que as portas apresentam sete frisos diferentes, ou tarjas, em ferro lavrado. Adianta ainda o historiador que na tarja superior foi pregada uma segunda folha sobre outra já existente, sugerindo tratar-se de aproveitamento de sobras de outros trabalhos estabelecendo ligação à porta do baptistério da Catedral, cuja cimalha é ornada com uma tarja semelhante a uma das que se encontram na porta do celeiro.
Em termos do seu contexto musical, o edifício onde estas portas se encontravam albergou durante cerca de um século e meio o Colégio dos Moços do Coro da Catedral de Évora, importante instituição de ensino musical fundada pelo Cardeal D. Henrique em 1552. Referiu o jesuíta Padre Francisco da Fonseca, na sua Évora Gloriosa, que o primeiro edifício do Colégio havia sido na Sé velha, antiga casa do Senado e do escrivão da Câmara. No entanto, por este ameaçar ruína, o mesmo foi (em época desconhecida) transferido para as casas que ficavam atrás da casa do Cabido, ou seja, o celeiro do Arcebispo. Aí moraram os quatorze (em certas épocas, ascendendo a vinte) moços do coro até 8 de maio de 1708, data em que foi o Colégio solenemente transferido para o amplo edifício (hoje Museu de Arte Sacra da Sé) localizado junto ao claustro gótico da Catedral. Esta obra de vulto na dinâmica musical da Catedral foi iniciada pelo Arcebispo D. Luís da Silva, sendo terminado no arcebispado de D. Simão da Gama.
Por este edifício terão passado, enquanto moços do coro (e alguns, posteriormente, enquanto porcionários da Universidade), transpondo as portas do antigo celeiro, nomes sonantes da música sacra portuguesa da primeira metade de seiscentos como Duarte Lobo Fr. Manuel Cardoso ou Filipe de Magalhães, este último tendo progredido na hierarquia musical da Catedral ascendendo ao posto de cantor e, posteriormente, de mestre da Claustra. Esta primeira geração de moços do Colégio dos Moços enquanto instituição autónoma era dirigida por um dos seus primeiros reitores pelos anos de 1578 e 1580.
Uma segunda geração de moços do coro que se distinguiram em instituições religiosas nacionais e estrangeiras é encabeçada pelas figuras de Estêvão de Brito, originário de Serpa, e Estêvão Lopes Morago, natural de “Vallecas, no Reino de Toledo”. Estes receberam o grau de Bacharel em Artes na Universidade de Évora a 3 de Março de 1596, o que sugere terem permanecido em Évora até mais tarde do que o usual para os moços do coro do Colégio. O primeiro passou, posteriormente, como mestre de capela nas catedrais de Badajoz e Málaga enquanto o segundo assumiu o mesmo cargo na Catedral de Viseu, onde permaneceu o resto dos seus dias.
Até à mudança para o novo edifício terão ainda passado pelo antigo edifício do Colégio pelo menos mais duas gerações de músicos. Uma inclui nomes pouco conhecidos da história musical eborense (uma vez que pouca ou nenhuma da sua produção musical sobreviveu até à actualidade) como é o caso de António Rodrigues Vilalva, Pedro da Fonseca Luzio ou Bento Nunes Pegado. No entanto, da geração posterior conhece-se um número considerável de obras musicais, como é o caso de Francisco Martins ou de Diogo Dias Melgaz. Este último ocupou o cargo de Reitor do Colégio antes da transferência para o novo edifício, data à qual já estava nesse cargo Pedro Vaz Rego, outro nome que que crê ter também passado pelo antigo edifício enquanto colegial.
Como anteriormente referimos, na Catedral salta imediatamente à vista o seu imponente pórtico da entrada principal, obra herdada do período medievo, assim como outros pórticos secundários no seu exterior e interior. Não diminuindo o simbolismo e importância dos mesmos, quer em termos artísticos ou contextuais, encontra-se neste templo um segundo exemplo referente a uma porta com um contexto musical importante. O mesmo apresenta-se importante referir, não só pelo seu valor artístico, como também, uma vez mais, pelo contexto musical associado e pela sua envolvência artística. Trata-se da porta de acesso ao coro-alto da Catedral de Évora.
Uma vez mais, foi Gabriel Pereira que lhe notou a importância artística, descrevendo-a em 1901 no sexto volume de O Archeologo Português. Descreveu o historiador os quatro painéis que compõem a porta de carvalho “de esculptura mui perfeita”, o superior esquerdo estando representado o magistrado com o livro das culpas e, no lado oposto, a justiça de gladio erguido na mão direita e a balança na esquerda. Os painéis inferiores representam um santo que pede clemência, no lado esquerdo, e, no lado oposto, as almas implorantes no fogo purificante estando a figura masculina de braços erguidos e a feminina de mãos postas. Pereira adiante uma leitura pessoal da simbologia destes painéis afirmando que os mesmos sugeriam aos cónegos que rezassem e rogassem o perdão para a fraca humanidade quando ao coro fossem entoar o cantochão. Gabriel Pereira avança ainda que a porta deve datar da realização do cadeiral do coro-alto, datado de 1562.
Esta impressionante obra de talha ostenta duas indicações cronológicas referindo o ano de 1562 como o da sua feitura. Incorporado no cadeiral encontra-se também o órgão histórico, cuja construção está atribuída a Heitor Lobo, possivelmente uma década antes, uma vez que esteve ao serviço da Catedral entre 1544 e 1553.
Esta porta dava acesso a um dos mais importantes espaços musicais da Catedral de Évora. Para além disso, o coro-alto, elemento praticamente esquecido nas templos actuais, possuía uma simbologia marcante nas igrejas quinhentistas e seiscentistas uma vez que eram nesse espaço celebrados os ofícios diários de cada uma das Horas Canónicas. Possuía o coro-alto porteiro próprio, encarregado de zelar precisamente pela sua porta de acesso, mantendo-a fechada entre os vários ofícios. Cabia também ao tesoureiro da Catedral a responsabilidade máxima de manter a porta do coro-alto fechada quando o mesmo não era utilizado.
Se a porta do antigo Colégio dos Moços do Coro possuía um papel mais funcional na rotina diária dos indivíduos responsáveis pelo serviço musical na Catedral, a porta do coro-alto, como acima referido, detinha um carácter mais simbólico enquanto ponto de passagem entre o mundo secular e o mundo religioso e sagrado daquele espaço onde diariamente eram celebrados de forma musical os ofícios divinos. Por esta porta e, talvez, contrariamente à do Colégio, passaram nomes de grande importância na história musical portuguesa.
Mateus d’Aranda já não terá visto a construção do novo cadeiral e órgão do coro-alto, uma vez que abandonou Évora em 1544, a fim de ocupar o cargo de Lente de Música na Universidade de Coimbra. Assistiram certamente a essa remodelação os seus sucessores nos cargos de mestre de capela e mestre da Claustra, os antigos cantores Manuel Dias e Francisco Velez, respectivamente. Manuel Dias terá falecido por volta do ano de 1563, sendo sucedido no cargo por André Nunes. No caso de Francisco Velez, tal como Manuel Dias, o seu nome surge na listagem dos cantores da capela aquando da visita feita à Catedral pelo Cardeal D. Afonso, em 1537. A sua carreira como mestre da Claustra prolongou-se até ao final da década de 1570, sendo sucedido por Manuel Mendes.
Tal como aconteceu no Colégio, também pelo coro-alto da Catedral passaram as gerações de músicos enumerados anteriormente enquanto moços do coro. Estes tinham obrigação de irem à estante cantar os versos que o mestre de capela lhes indicasse o qual, à época, seria Cosme Delgado.
Em jeito de resumo, o presente texto pretendeu reflectir sobre dois objectos artísticos ligados à actividade musical da Catedral de Évora nos séculos XVI e XVII, integrando-os no seu contexto musical através da enumeração de alguns dos indivíduos que os utilizaram, por sinal, nomes importantes na história musical portuguesa desse período. As duas portas, embora objectos de valor artístico (estando uma delas, deslocada, inclusive num Museu Nacional), representam também elementos do quotidiano com maior ou menor funcionalidade tendo, no caso da porta do coro-alto, pessoa destacada para a abrir e fechar. No caso da porta do Colégio dos Moços do Coro (contrariamente à do coro, que ainda se encontra no seu local de origem), esta constitui-se como um testemunho de um local cuja funcionalidade inicial como celeiro e, posteriormente, Colégio desapareceu no final do século XVII e, assim também de uma paisagem sonora, entretanto, também desaparecida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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