Na morte de Emmanuel Nunes, reproduzimos uma das últimas entrevistas que deu à imprensa portuguesa, publicada a 14 de Dezembro de 2011 no JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, a propósito do lançamento do livro Emmanuel Nunes – Escritos e Entrevistas – um volume organizado pelo musicólogo Paulo de Assis e editado pelo CESEM – Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical e pela Casa da Música, e que foi apresentado no decurso do simpósio internacional na Culturgest que assinalou os setenta anos do compositor. Fotografia de João Messias.
Quando fez sessenta anos, realizaram-se vários concertos e homenagens, nomeadamente uma retrospectiva no Centro Cultural de Belém. Dez anos depois, tivemos este simpósio internacional e a edição deste livro, mas ao cerne do seu trabalho, a música, quase não tivemos acesso. Qual a sua leitura disto?
Primeiro, devo dizer que, para os meus sessenta anos, foi o Pedro Amaral que organizou e impulsionou todos os concertos em Belém. Não se tratou de uma consequência lógica duma política cultural do governo, mas sim duma vontade e capacidade estritamente individuais. Foi a única manifestação importante que houve em Lisboa nesse ano, e esses concertos não foram nem organizados nem subvencionados pela Fundação. Mas antes disso, e ao longo dos anos, várias retrospectivas e inúmeros concertos se sucederam na Fundação Gulbenkian, e entre 2002 e 2007 a minha presença na Fundação prosseguiu o seu ritmo velho de 35 anos. A partir de 2005, a Casa da Música iniciou uma importante divulgação da minha obra, incluindo algumas criações mundiais — como o espectáculo de teatro musical La Douce. Além de importantes participações internacionais em Berlim, Viena, Strasbourg e Huddersfield. Este ano, para o meu aniversário, houve um enorme esforço da parte da Casa da Música: realizaram-se dois concertos pela Orquestra Nacional do Porto, onde foram tocadas Ruf e Musivus,bem como um concerto do Remix, retomado parcialmente em Paris no festival Agora do IRCAM, que também queria celebrar os meus 70 anos. Em Lisboa, o contexto mudou radicalmente, o que é normal, depois da saída de Luís Pereira Leal da Gulbenkian. Tenho uma relação muito estreita com ele, que se tornou ainda mais intima depois de ele sair do Serviço de Música. A política da Gulbenkian tomou outra direcção da qual nunca fui directamente informado, e não me compete a mim qualificá-la. Não tenciono voltar tão cedo.
É certo que a Gulbenkian é uma entidade privada e o Emmanuel Nunes uma das maiores referências da criação musical portuguesa, mas não aceita a crítica – que não lhe é dirigida mas sim a essas duas instituições – de que foi por elas privilegiado face aos outros compositores portugueses?
Nunca neguei que fui privilegiado e deixarei aos interessados o indagar sobre a verdadeira razão desse privilégio. De resto, estes mostrarão certamente grande imaginação não-musical para descobrirem inúmeras razões. Mas há crítica e crítica, mesmo quando me é dirigida. Permita-me neste contexto citar quase integralmente um escrito de Augusto Seabra, ilustre intelectual da nossa praça (como diria Eça de Queiroz), datado de 24 de Novembro de 2008, e que é bem representativo duma certo vertente do nível cultural português: “António Jorge Pacheco tem grandes responsabilidades no modo canhestro como surgiu primeiro uma híbrida Remix Orquestra… Sobretudo, 1) o modo como fez inscrever internacionalmente o Remix Ensemble ocorreu basicamente segundo a doxa vigente, com pouca autonomia e, 2) retomou da Gulbenkian o favoritismo nunesiano: foi indisfarçável intermediário fundamental na tristemente célebre entrevista de Emmanuel Nunes ao Público em que este, intriguista, anunciava ele próprio a próxima saída de Paolo Pinamonti do São Carlos; mesmo depois da catástrofe de Das Märchen (já estaria previsto antes, mas isso não altera o fundamental), Pacheco programou para Setembro do próximo ano uma nova obra de teatro musical de Nunes, em que o nepotismo chega ao ponto do dispositivo cénico ser do próprio compositeur portugais e da sua mulher e biógrafa, Hélène Borel, a qual é também responsável pelos figurinos!”. Acho importante trazer ao conhecimento do público português o nível dum membro destacado da sua elite. Estamos muito longe das farpas do século XIX. Note-se que iniciei a redacção definitiva da partitura de La Douce em Dezembro 2008.
Nota que a sua música tem sido pouco tocada neste aniversário, e não apenas em Portugal?
Talvez, mas não tem nada a ver com os setenta anos e sim com dois factos: primeiro, cada pequena época de cinco ou dez anos tem uma moda, uma predominância, e eu não sei escrever música em função da moda; como não estou na moda, automaticamente tenho menos concertos. Mas há uma coisa importante: apesar disso, nos últimos dois anos, têm-se realizado alguns portraits da minha música, com intérpretes conhecedores da minha obra, por exemplo no festival de Huddersdfield, onde tive uma série de peças apresentadas, algumas pelo Remix Ensemble, ou ainda em Viena… Mas no plano da regularidade do calendário, é verdade, tenho poucos concertos. Certamente, tem isso também a ver com a minha personalidade, com a maneira como comunico socialmente, com uma opção estética que é muito antiga e não muda dum dia para o outro. Não é uma coisa que me impeça de trabalhar, não é um parâmetro que vá mudar a minha maneira de viver.
Apesar da sua música estar a ser menos tocada, está a atravessar um período criativo importante, ligado ao drama lírico, depois da ópera Das Märchen e da peça de teatro musical La Douce…
Sim, continuo a trabalhar dentro da minha ideia do teatro musical.
Quer referir em quê?
Não.
E quando estará pronto?
Estará visível e audível na temporada de 2014-15, e não será em Portugal.
De qualquer forma, a ópera e o teatro musical são áreas em que normalmente um compositor não trabalha sem ter por detrás uma encomenda que garanta a sua produção…
Isso agora!? Trabalhei muito tempo de maneira subterrânea na minha ópera sem ter a mínima ideia de onde e com quem iria ser feita. O mesmo para La Douce!
E teve desde o princípio a convicção de que seriam estreadas?
Não é bem uma convicção consciente, é um modo de vida e de ser que me impede de o não fazer.
Perante o actual cenário mundial de grande estrangulamento económico, como vê a realidade musical em Portugal depois duma evolução que permitiu a formação de muitos mais compositores e intérpretes portugueses?
Para compor, não posso estar a analisar activamente estes factores, senão não componho. Mas a nível social e político, não só em Portugal mas em toda a Europa, como já disse imensas vezes, sou completamente contra a política da União Europeia. Mesmo quando esta se mascara de humanismo e de promoção cultural, a razão principal da minha oposição é que, para mim, como ela existe, incarna a maneira mais eficaz de defender um capitalismo selvagem subordinado à finança, de aumentar as grandes fortunas pessoais, e quem paga é quem trabalha sob o jugo de tal engrenagem. Um argumento que eu acho genial: não há dinheiro! É claro que não há, porque está noutro sítio. É como se houvesse um planeta onde há dinheiro e outro que não o tem; isto é perfeitamente simbólico dum capitalismo desenfreado. Quanto a Portugal, há dois factores: um, puramente musical; é óbvio que não se pode comparar aquilo que se podia aprender cá em 1962, e o que se pode aprender hoje, desde os anos 80 ou 90 – e não me refiro a mim, aos seminários que realizei. Não é comparável. O outro factor tem a ver com a falta de verdadeira competência de diversos quadros de ensino, muitas vezes associada a uma ausência de deontologia, mesmo quando há competência. Não é isto que vai desenvolver uma autêntica vida musical portuguesa… Tal situação sempre me foi posta em evidência pelos próprios jovens que frequentavam os meus seminários, já que estes estavam abertos a todos estudantes, independentemente do nível de cada um. De resto, continuo a manter um contacto pessoal e regular com bastantes deles. Durante os vinte anos em que dei seminários, redescobri algo que eu sempre pensei: ninguém pode fazer de um estudante um génio, mas tanto uma incompetência camuflada por um carisma não autêntico como uma certa competência que transmite em contrabando um mero oportunismo pessoal (Lopes-Graça diria “de troca-tintas”), ambas podem desviar e diminuir o potencial de um jovem estudante. Isto se este não possui uma forte personalidade direccionada para a busca desinteressada duma autenticidade e dum métier sem falhas, a não ser as que são inerentes a cada um de nós.
Defendeu que o investimento na cultura pode produzir riqueza económica. Pensa que, para Portugal, na actual conjuntura, seria benéfico?
Para mim, esse problema não é apenas português, é comum a toda a Europa. Está-se a referir a uma passagem do meu discurso de aceitação do Prémio Pessoa, já lá vão onze anos. A economia mudou e para pior. E continuo a dizer que mesmo sem o estado ganhar dinheiro directamente com um investimento na educação e na cultura, ter uma política cultural honesta e virada para um verdadeiro projecto cultural acaba sempre por ter efeitos de progresso económico na vida social e política do país.
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Não acha que esforços individuais como estes são usados pelo Estado para se demitir de iniciativas que lhe deveriam competir?
Eu percebo-a completamente e diria que no fundo tem razão. Mas é um problema que hoje em dia se põe a todos os níveis: se ninguém faz, não há. Também é um problema económico, porque o Estado conta com isso. Por idealismo, por convicção profunda, é necessário fazê-lo. Mas há, provocada expressamente por uma política viciada, uma dialéctica perigosa utilizada sem escrúpulos pelos Estados. E voltamos ao problema do dinheiro estar noutro planeta.
ARTIGO PUBLICADO NA GLOSAS 6 ( Clique aqui para ler o artigo completo na versão impressa ).