Entrevista realizada por A. Baião-Pinto em Maio de 2021, na Galeria António Prates (apresentando, à data, uma exposição da artista visual Regina Frank, intitulada Silenced Sides). Fotografias de Jennifer Lima Pais. Assistência técnica de António de Saldanha. Agradece-se a António Prates.


Mickaël de Oliveira apresenta-se, nos dias de hoje, como um dos nomes mais promissores da cena teatral portuguesa. Nasceu em França no ano de 1984. Em 1999 estabeleceu-se em Portugal, de onde era originária a sua família, e por cá prosseguiu os seus estudos e iniciou carreira. Licenciado e mestre em Estudos Artísticos (variante de Teatro) pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, concluiu, já em 2013, o seu doutoramento em dramaturgia contemporânea e europeia na Universidade de Lisboa.

Conta-se-lhe, de entre outros projectos, a fundação conjunta do Colectivo 84. Em paralelo, colaborou e veio a desenvolver trabalhos com diversas companhias teatrais como a Cão Danado, o Teatro Nova Europa (ambos no Porto) e a DayforNight, esta última em Paris. Levou à cena várias peças tais como O que é teu entregou aos mortais (Teatro Municipal Maria Matos) e Clitemnestra (Teatro Nacional Dona Maria II/ FUNARTE), ambas premiadas com o Prémio Nova Dramaturgia Maria Matos e Menção Honrosa do Prémio Luso-Brasileiro António José da Silva, respectivamente.

 

 

Dramaturgo, encenador e espírito envolvente, confessa-se, na leveza do trato do que lhe é próprio, como alguém comprometido com as grandes equações do seu tempo. Talvez já lhe tenham perguntado, pelo que me irá perdoar se o fizer novamente, qual é ponto de partida do seu amor pela escrita, pelo teatro e pela encenação?

Começou pela escrita, ainda pequenino… alguns textos e poesias… E da escrita passei para a música, curiosamente, porque a minha irmã estudava piano. Tudo isto em França, ainda. Com essa idade comecei a tocar e a compor umas músicas pop, cheguei mesmo a enviar umas maquetes para editoras como a Universal… (risos) Até me chegaram a responder, dizendo, simpaticamente, que não. Cresci, vim para Portugal e deixei o piano, mas durante algum tempo ainda estudei canto lírico.

Por curiosidade, qual era o registo?

Barítono… mas eu queria era ser tenor, como adorava ópera italiana!

Em conversa prévia, percebi que é um melómano e que há, por aí algures, uma história de infância curiosa sobre o ‘primeiro contacto’ com um certo ‘género musical’.

Os meus pais são emigrantes e, na altura, a minha mãe trabalhava em casa de um senhor que tinha uma discoteca enorme e um sistema de som incrível! Este senhor, que vivia muito perto da nossa casa, era extremamente simpático e tinha uma óptima relação com os meus pais. Algumas vezes, eu e a minha irmã acompanhávamos a nossa mãe… Certo dia, eu decidi ‘sonegar’ dois CD, que trouxe para casa e ouvi… e recordo-me de que eram de Mozart, um deles era o Requiem! E como tinha uma natureza uma pouco obsessiva… ouvia aquilo em repeat, horas e horas… e depois cantava sobre as músicas! Isto permitiu-me descobrir o que era ópera, o que era música erudita, por assim dizer. E foi uma paixão que nunca me abandonou, nem mesmo na faculdade em Coimbra, tanto que uma das matérias do tronco comum de Estudos Artísticos era música, tanto que eu pensava em seguir uma carreira musical… Mas acabei por escolher teatro! E no teatro a música é sempre uma possibilidade!

 

 

Certamente que o seu “guia de audição” é bastante ecléctico e variado. Qual é o seu repertório de eleição? É, de algum modo, um aspecto presente no seu processo criativo ou nos trabalhos que apresenta?

É uma boa questão, sem dúvida, mas vou começar pelo fim. A música remete-nos sempre para um universo formalista e o teatro, por vezes, precisa mais de som do que música, ou seja, precisa de sonoplastia. Mas vai variando muito, conforme a intenção programática. Muitas vezes a música impõe-se como uma presença necessária, outras acompanha a cena quase de forma espectral, o que não reduz a sua importância. Quanto a mim, diria que sou bastante ecléctico, embora tenha algum entusiasmo por compositores como Wagner, Ligeti ou Stockhausen.

“Ir ao teatro é uma decisão difícil de integrar na vida das pessoas e, quando se vai, deve ser para ver uma coisa excepcional (…), o principal no teatro é o que se gera de extraordinário entre o público e o espectáculo em si”. As palavras são de Luís Miguel Cintra (2019). Será esta uma das principais características do teatro contemporâneo, ao invés do de outros tempos, em que a heroicidade do personagem ou a capacidade de nos revermos na sua narrativa eram a tónica?

O que é que leva alguém a pagar um bilhete e entrar? O que é que me leva mim a criar algo? O gesto acaba por ser igual. É uma questão de necessidade e não de contingência. Não se pode partir para um processo de criação sem que haja uma necessidade precedente, quer falemos de música, dança ou teatro. O auditório apresenta-se, igualmente, como um espaço privilegiado para apresentar, trabalhar e debater ideias, um teatro de ideias, no fundo. Foi algo que, para mim, ficou muito claro quando levei A Constituição (2016) à cena na Sala Estúdio Teatro Nacional Dona Maria II. Mas nem só de ideias vive o teatro, a narrativa torna-se um veículo de ligação para os autores e para o público, não esquecendo, evidentemente, a noção de espectáculo na sua dimensão plástica e sonora.

Há um ano, numa entrevista à Umbigo Magazine, falava na presença de uma cultura de “exclusão muda” na sociedade portuguesa. Afirmava que vivemos um tempo em que algumas situações já têm que entrar “(…) sem colocar mais questões”. Em Portugal, o fenómeno da discriminação tem um fundamento ideológico (no sentido clássico) ou, porventura, está ligado uma origem mais aculturada?

Em todo este debate temos de ser claros e perceber o que se está a passar. Em primeiro lugar, as nossas leis consagram o princípio da igualdade e da não discriminação. O sistema em si direcciona-se para a consagração desses princípios. O fenómeno da exclusão não parte directamente das instituições e, quando assim acontece, fundamenta-se na estupidez individual de quem actua. Em Portugal, a exclusão é uma questão mais cultural, seja pela uma forte influência religiosa na sociedade, seja por outros factores como o passado colonial. Já todos ouvimos discursos racistas e conversas homofóbicas, mas uma sociedade não evolui apenas por decreto, daí o papel fundamental da cultura e da educação.

 

 

Olhando para o panorama nacional, a escassez de rendimentos e a debilidade económica constituem um factor relevante, nessas matérias?

A discriminação económica é, sem dúvida, uma das mais relevantes. Em primeiro lugar entre homens e mulheres. Num contexto de discriminação, o factor económico permite, na maior parte das situações, ultrapassar algumas dessas clivagens: confere liberdade e poder até. No meu contexto familiar, a emigração foi a resposta possível a essa questão.

Recuemos uma década. Hipólito, monólogo masculino sobre perplexidade: além de adequado ao conteúdo, o título é verdadeiramente programático. Veio-me logo à memória aquela famosa e quase “maldita” prosa de Luiz Pacheco, “O Libertino Passeia por Braga a Idolátrica o seu Esplendor”. Desde os modernistas que a crueza não se presta a eufemismos ou artifícios de compreensão. Ao autor contemporâneo caberá a exposição gráfica do conceito, mesmo nas palavras do texto? Há uma cura pelo excesso (parafraseando um título seu)?

Parte do mito de Fedra e Hipólito e pretende questionar a construção da masculinidade e dos traumas possíveis. O excesso é sempre uma forma de se mostrar tudo aquilo que, à partida, queremos esconder. É assumir um movimento inverso. Através da literalidade e do “grotesco” torna-se mais viável a desconstrução do objecto, de tal forma que, ao longo do texto, se torne possível questioná-lo tendo em conta outros pontos de vista que, à partida, não seriam possíveis de vislumbrar. Quase como num quadro cubista.

Assim de repente
abri um saco
pus uns ténis
uma roupa interior
e as cassetes e
fui-me embora
Esperei junto à estrada principal um autocarro que costumava passar
Não passou
roubei o descapotável do meu pai e acelerei para norte até a gasolina acabar
Cheguei algures e peguei-lhe fogo
disse adeus ao capitalismo e à realidade e levantei o braço e gritei Žižek
por concordar com tudo o que ele dizia em inglês
(Excerto de Hipólito, monólogo masculino sobre perplexidade, 2009)

Devo confessar que, ao ler a sua peça, não puder deixar de respirar esta “fala”: um verdadeiro oásis, numa caminhada de contragostos, que ainda assim não parece demitir-se de um forte sentido crítico. Qual foi e é a intencionalidade deste monólogo?
As minhas personagens ou as vozes que eu crio são sempre ancoradas no identificável. Satisfaz-me que as pessoas se possam relacionar com o discurso e as vozes que o transportam, embora não como um todo, mas em certos e determinados momentos. Nessa passagem eu tento ironizar esta ideia de um “puto fashion” que se rende à filosofia, porque leu umas “coisas” e não as leu duas vezes… É um jovem contemporâneo, sem muita disponibilidade, mas que, facilmente, se consegue agarrar a uma ou duas ideias, soundbites de certa forma, e identificar-se. Não se trata de apresentar uma crítica, mas antes um retrato ou uma imagem em que esses traços se manifestam.

A par da sua actividade artística, tem-se dedicado a reflexões teóricas sobre o panorama do teatro em Portugal, classificando-o do seguinte modo: “‘menor’ seria a palavra que melhor poderia caracterizar a dramaturgia portuguesa pós-revolucionária”. Posteriormente, na sua tese de mestrado, assinala a importância crescente do teatro independente (cada vez menos periférico) nesse tão necessário processo de reabilitação, que passa essencialmente pela palavra, longe da dicotomia entre protagonistas e antagonistas, muito mais ancorada num palco em que diversas escritas possam convergir. Ainda que de modo sucinto, pedia-lhe que nos desse uma visão mais operacional desta sua proposta…
Foi um tema que eu decidi abordar, tanto no mestrado como no doutoramento. Tentei perceber exactamente onde estavam os autores, partindo do teatro independente, ainda anterior ao 25 de Abril. Apercebi-me da existência de imensos materiais com imenso interesse. O que se pode constatar é que, em termos de programação, a dramaturgia portuguesa contemporânea sofreu um declínio desde então, em detrimento de autores estrangeiros, o que é algo que se traduz na escolha do género como opção de escrita. Mas desde o início deste século que as coisas estão a mudar um pouco, muito em consequência de os dramaturgos passarem a assumir as produções: vejam-se os casos do Tiago Rodrigues, do Castro Caldas e de tantos outros. No fundo, estamos perante um teatro de autor, em que o dramaturgo, o produtor e por vezes o encenador são a mesma pessoa. Na verdade, estamos perante um “escritor de palco”, para usar as palavras de Bruno Tackles.

O que me está a querer dizer é que, hoje, o texto nasce no palco; desse modo, o teatro assume uma natureza muito mais criativa do que interpretativa, por assim dizer?
Sim, torna-se uma criação muito mais colectiva. No passado, o texto vivia muito mais do livro, como era hábito no século XIX. E é nesse território que eu me insiro; ou seja, o teatro não como objecto literário, mas, ao invés, uma espécie de “literatura aplicada”, ao serviço de um objectivo.

No início desta conversa, falámos nos pontos de partida da sua carreira. Hoje em dia, pergunto-lhe: qual é o papel em que se sente mais confortável? Dramaturgo? Teórico? Encenador? Ou, por outro lado, trata-se de uma mesma “personagem” em contextos comunicantes?
Eu gosto de pensar em teatro como autor. Isso envolve todas as realidades adjacentes. Tanto na produção e na escrita, como na componente visual e artística, passando pela selecção musical: gosto de me envolver em tudo, sem nunca retirar a autoria a quem a tem. Para entender, tenho que estar presente; não consigo viver sem a prática e sem a teoria.

Sobre o autor

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A. Baião-Pinto tem marcado presença habitual em diversos espectáculos como 'diseur' de prosa e poesia. No âmbito cultural encontra-se, neste momento, a trabalhar com a companhia Teatro Nacional 21, na qualidade de dramaturgista. Colabora, igualmente, com o MPMP Património Musical Vivo e com a GLOSAS. O seu percurso académico passou por instituições como a Faculdade Direito da Universidade de Lisboa, o Instituto Italiano de Cultura e o Ar.Co, tendo concluído uma pós-graduação em Direito da Igualdade no Centro de Investigação de Direito Privado da Universidade de Lisboa.