Senhora Professora Teresita Gutierrez Marques, muito obrigado por ter aceitado o convite da Glosas para esta entrevista. O nosso propósito hoje era sobretudo pedirmos-lhe que nos falasse da música de Gaspar Fernandes, a que já se dedicou diversas vezes até aqui.

É verdade. Houve uma fase em que o Coro de Câmara de Lisboa e o Ensemble Peregrinação incluíram no seu repertório os vilancicos de Gaspar Fernandes, nomeadamente Toquen, toquen los rabeles, Toquen as sonajas, Tleycantimo choquiliya ou Xicochi, xicochi. Mantivemos este repertório durante bastante tempo. Isso foi muito interessante, porque o Coro de Câmara de Lisboa teve uma oportunidade para participar, em 2002, num festival de coros no México, em Puebla de los Ángeles, precisamente onde Gaspar Fernandes tinha sido mestre de capela e organista, entre os anos de 1606 e 1629, na Catedral de Puebla. Isso, para nós, foi muito impressionante: cantar na Catedral de Puebla!

Então a música de Gaspar Fernandes é ali bem conhecida?

Sim, sim! Trouxe de lá um primeiro tomo do Cancioneiro Musical de Gaspar Fernandes. As obras incluídas neste Cancioneiro vieram do Arquivo Musical da Catedral de Oaxaca.

Em Portugal – recordemos –, apenas estão disponíveis os volumes editados pela Fundação Gulbenkian, mas há muito mais música a descobrir!…

Exactamente: se há!

Teresita Marques

Chegou a fazer cá algumas dessas outras peças que vieram do México?

Algumas, sim, e de todo não eram conhecidas cá. Quem as faz é apenas um grupo pequeno do Coro Gulbenkian. As peças têm muitas divisões de vozes, que impedem que os coros façam isso. Algumas estão a oito vozes, o que é logo complicado para um grupo pequeno. Mas também não é adequado para um grupo grande, porque não é possível obter a leveza nem a agilidade vocal que estas obras exigem.

Sobretudo em obras não sacras?

Sim, isto sobretudo. Depois, também têm os instrumentos… Nós participámos algumas vezes no festival de Música Antiga da Gulbenkian.

Quais são as principais dificuldades que se colocam aos intérpretes quando se trabalha estas obras?

A extensão das linhas, por vezes, e a tessitura muito aguda. Se, todavia, se decide baixar a peça um tom, ficam os baixos com problemas!…

E sob uma perspectiva musical, a música de Gaspar Fernandes é interessante?

Sem dúvida! Algumas obras são mais interessantes do que outras, claro. O que é preciso é entrar nelas, compreender o texto à vontade. No repertório sacro, o texto é sempre igual, claro; mas, na música profana, é preciso ter muita prática para chegar a uma interpretação mais fiel, dentro do possível.

Isto pela mistura de dialectos?

Sobretudo por essa mistura, relacionada com a zona onde ele estava, com o dialecto náhuatl… Como disse, fomos uma vez ao México e achámos muito interessante. O povo da América Latina tem uma filosofia muito interessante em relação à vida e às Artes. Há um olhar diferente, muito cativante, quando eles falam. E há a influência ibérica – e não vamos dizer só espanhola, porque viveram lá compositores portugueses. Vê-se que a conversão ao Cristianismo teve um impacte muito grande na sua música. Os séculos XVI e XVIII mudaram-nos completamente, embora não o tenham conseguido totalmente. Nota-se que há também uma grande influência da música da época anterior ao Cristianismo, que está na música sacra (nem se fala na profana!). É uma mistura de música ibérica com a música tradicional deles, que não tem nada a ver com a nossa polifonia, em parte. Por exemplo, os compositores portugueses que ficaram por cá têm outro estilo, bastante mais formal.

Tinha outro propósito?

A música nas Américas tinha de ser muito acessível ao povo, para que os nativos aderissem à parte litúrgica. Se não, isso não seria compreensível! É sempre a mesma situação, num contexto em que se está a tentar a conversão de um povo.

Fez algum desse repertório aqui no Conservatório, por exemplo?

Não era possível fazê-lo com as turmas do Coro Geral; embora, em 2002/2003, a pedido da Direcção da Escola, tenhamos formado o Ensemble Peregrinação, com o qual fizemos um CD, Cantos da Lusofonia. O objectivo do Ensemble Peregrinação era buscar peças, sobretudo canções, vindas dos países por onde os portugueses passaram e também por locais onde havia portugueses, como Gaspar Fernandes, no México. O nosso repertório incluiu vilancicos, alguns até de Espanha, alguns motetes de compositores portugueses e espanhóis, e fomos depois, gradualmente, integrando canções populares de Cabo Verde, Angola, Moçambique, Timor… Portanto, nessa altura, tínhamos cantado vilancicos sacros dos séculos XVII e XVIII.

 O povo da América Latina tem uma filosofia muito interessante em relação à vida e às Artes. Há um olhar diferente, muito cativante, quando eles falam. E há a influência ibérica – e não vamos dizer só espanhola, porque viveram lá compositores portugueses. Vê-se que a conversão ao Cristianismo teve um impacto muito grande na sua música. Os séculos XVI e XVIII mudaram-nos completamente, embora não o tenham conseguido totalmente. Nota-se que há também uma grande influência da música da época anterior ao Cristianismo, que está na música sacra (nem se fala na profana!). É uma mistura de música ibérica com a música tradicional deles, que não tem nada a ver com a nossa polifonia. 

Teresita Gutierrez

Há outros projectos, com música de épocas mais recentes?

O Peregrinação deixou de existir. Começou em 2003, até ao ano passado. Foi muito interessante, porque tivemos, em 2006, um convite da Fundação Oriente, para nos deslocarmos a Goa e participarmos num Festival na Capela do Monte, numa zona de grande influência portuguesa. Participámos lá, com o nosso repertório e com algumas peças goesas, com acompanhamento de piano. Cantámos também em Bombaim. Depois, em 2007, o Conservatório recebeu um convite para o grupo participar no Festival de Jovens de Rouen. Fizemos imensos concertos, levando este repertório, e eu diria que foi um sucesso! Os franceses, por norma, costumam gostar de coisas que são novas para eles. O coro foi muito aplaudido.

E quanto à sua actividade no Coro de Câmara de Lisboa?

O Coro de Câmara de Lisboa foi fundado em 1978 e continua em grande actividade! Já gravámos dezassete discos, na sua maioria de compositores portugueses. Por exemplo, fizemos a estreia da Missa Grande de Marcos Portugal. O último CD foi gravado em Março deste ano. Foi um pedido da Embaixada das Filipinas em Lisboa, na comemoração dos 70 anos das Relações entre Portugal e as Filipinas. Eles quiseram fazer uma celebração, com uma gravação de um CD, com sete peças filipinas e sete peças portuguesas. Fizemos também um projecto com Timor-Leste, a pedido do governo de Timor, ainda era Xanana Gusmão o Primeiro-Ministro. Não havia nada gravado em Timor de canções populares. Temos cá o compositor Simão Barreto, luso-timorense (que até estudou aqui, no Conservatório), que harmonizou todas as canções que incluímos num CD. No outro CD, ele compôs as peças, com poemas portugueses. Temos também dois discos de Eurico Carrapatoso, com música sacra e canções populares. Enfim, muita coisa! Algumas delas já esgotadas…

O Coro de Câmara de Lisboa na actualiade

O Coro de Câmara de Lisboa na actualidade

E em relação a concertos?

O concerto mais recente foi a estreia da cantata Umbra Urbe, de Daniel Schvetz, que tem como tema os sem-abrigo. Abraçámos o projecto, em primeiro lugar, porque é um tema muito actual, ao qual penso que não podemos ficar indiferentes. Temos colaborado com o Professor Schvetz muitas vezes. Para acabar, temos também um CD com canções asiáticas, porque o coro se deslocou duas vezes à Ásia, a convite de organizações culturais locais: da Malásia, Singapura e Indonésia. Quando lá fomos pela primeira vez, perguntaram-nos porque é que nós não gravávamos canções populares asiáticas. Eu fiquei espantada, porque eles disseram que lá não há nada gravado, em termos de música coral…! E até há muitos coros lá… Entretanto, temos também feito projectos para concorrer aos apoios financeiros dos concursos públicos. A elaboração dos projectos é sempre muito difícil, eu chamo até dolorosa…

Há muita coisa para preencher…

Não é apenas isso: é que há rubricas de preenchimento obrigatório em que nem todos os grupos estão numa situação para responder. É complicado. Somos três, no Coro de Câmara de Lisboa, que trabalham na elaboração dos projectos. Temos conseguido alguns e fomos rejeitados algumas vezes. Agora estamos à espera: vamos ver… Há uma coisa que nós sempre dizemos, enquanto esperamos: mesmo que não ganhemos, nunca perdemos a preparação de repertório. Vamos para a frente! No projecto de Timor, por exemplo, os timorenses demoraram muito tempo a decidir. Depois decidiram: mas, e o dinheiro? Demorou muito tempo! Enfim, quem está a par da produção musical sabe como isto, muitas vezes, custa!


Entrevista publicada na Glosas 15.

 

Sobre o autor

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Licenciado em piano pela Escola Superior de Música de Lisboa, na classe de Jorge Moyano, concluiu o Conservatório Nacional com a classificação máxima, tendo aí estudado com Hélder Entrudo e Carla Seixas. Premiado em diversos concursos, apresenta-se em concerto em variadas formações. Estreia regularmente obras de compositores contemporâneos. Gravou para a RTP/Antena 2, TV Brasil e MPMP: editou, em 2020, o CD “La fièvre du temps” em duo com Philippe Marques. É membro fundador do MPMP Património Musical Vivo, dirigindo temporadas e coordenando inúmeras gravações. Termina, actualmente, o mestrado em Empreendedorismo e Estudos da Cultura do ISCTE. Foi director executivo da GLOSAS entre 2017 e 2020.

2 Responses

  1. Maria Madalena Souza Pinto

    Gostei de conhecer um pouco da música portuguesa e do trabalho realizado por Teresita Gutierrez Marques e o Coro de Câmara de Lisboa.
    Parabéns, Duarte Pereira Martins, pelo belíssimo texto elucidativo.