Complexo material e imaterial, a Música vive sempre idêntica na essência, mas renascida em cada audição, através de um intérprete, diante de um novo público, em outro e outro espaço. É a Música uma arte com características muito próprias… por isso, tanto valorizamos o que sejam fotografias, cartas e outros manuscritos, trajes, jóias e variados objectos, em certo sentido tudo o que é quase uma não-música, mas que ajuda a torná-la presente, a Música, a representá-la no nosso imaginário…
Guilhermina Suggia é um exemplo típico de artista cujo espólio foi repartido ou distribuído por muitos sítios. Na Câmara Municipal do Porto e no Conservatório de Música guardam-se o celebrado violoncelo Montagnana e a sua biblioteca musical. Reza assim o testamento:
“Possuo outro violoncelo, Montagnana, que igualmente será vendido, pelo melhor preço, quantia essa que lego ao Conservatório de Música do Porto – através da Câmara Municipal do Porto, se o dito Conservatório continuar a pertencer-lhe, ou do Estado, se porventura ele passar a ser nacional –, a fim de, com o rendimento deste legado, se instituir, também, um prémio designado Guilhermina Suggia, a atribuir, em cada ano, ao melhor aluno de violoncelo do referido Conservatório…”
Sobre o seu arquivo de partituras diz:
“Lego, ainda, ao mesmo Conservatório, a minha biblioteca – material de orquestra e literatura de violoncelo –, objectos esses a que será dada instalação condigna, para que, dessa forma, o culto, que eu toda a minha vida dediquei à arte musical, perdure e sirva de incentivo a todos – Mestres e Discípulos – que à arte se dedicam.”
Além destas duas componentes fundamentais do legado testamentário de Suggia à cidade do Porto, em 1950, existem também cartas, livros, um vestido de gala, jóias e condecorações… quanto a documentos gráficos (manuscritos, iconografia, livros impressos, programas de concertos, etc.), uma parte muito significativa foi adquirida pela Câmara Municipal de Matosinhos em 1995, era Vereador da Cultura José Manuel Dias da Fonseca.
Mantêm-se na posse de particulares numerosas espécies que vão desde o material gráfico até à escultura e ao mobiliário. Lembremos que, de uma forma geral, as pessoas colaboraram activamente, mediante a cedência temporária de peças e informações para a exposição Suggia, o Violoncelo, realizada em 2006 na Casa-Museu Guerra Junqueiro.
Repare-se, ainda, que foi a própria Violoncelista quem dispôs no sentido de uma certa dispersão do seu espólio. Interessante seria cruzar o testamento de Suggia com a carta de consciência dirigida, em 17 de Novembro de 1948, a seu marido, José Carteado Mena, para como a sua vontade se foi modificando, ao longo de apenas dois anos.
Neste domínio do que ficou do património material de Guilhermina Suggia surge agora uma boa notícia. No dia 30 de Junho de 2014, D. Isabel da Silva Odoul, cidadã portuguesa há anos radicada em França, doou à Câmara Municipal do Porto um conjunto de peças, breve em quantidade, mas de qualidade apreciável. Este núcleo veio enriquecer o que já se encontrava à guarda de instituições públicas. A doadora reconheceu, nobremente, o interesse cultural público da parte do espólio que coubera à sua família e que agora ofereceu ao Porto.
Não tanto pela sua dimensão, mas mais pela situação de diáspora em que se encontra o espólio da Violoncelista, a que aludimos, esta doação assume uma relevância particular. Constituem-na quarenta e quatro números de inventário, havendo possibilidade de virmos a receber algumas outras peças, como foi o caso muito recente da oferta de uma máquina fotográfica.
Da lista oportunamente elaborada destaca-se o item n.º 2 (uma folha que contém o importante testemunho de Guilhermina Suggia sobre o seu derradeiro grande êxito a nível internacional, no Festival de Edimburgo, em 1949, e que vem completar a carta de que existia apenas uma parte na Câmara Municipal de Matosinhos. Referem-se também diversas fotografias, várias delas referentes à Quinta dos Girassóis, na Maia, espaço que era frequentado por pessoas amigas de Suggia (como Ernestina da Silva Monteiro, Maria Adelaide Freitas Gonçalves, as Senhoras Tait, diversas alunas, etc.). A doação inclui ainda objectos de uso pessoal como uma caixa de pó-de-arroz com o nome de Suggia gravado (peça que, aliás, esteve exposta em 2006), um frasco de bolso com a mesma marca, um relógio de viagem num estojo, algumas jóias (gargantilha, brincos, relógio) que vêm enriquecer o conjunto guardado no Conservatório de Música do Porto; três bolsas de senhora, peças de um tipo que até agora não nos tinha surgido no espólio de Suggia e que se revela de interesse, sobretudo se conjugado, por exemplo, com o vestido de concerto.
Este processo, que se pode considerar exemplar, teve origem no amável empréstimo em 2006, por parte da agora doadora, de três cartas (uma de Pablo Casals), três fotografias, uma gravura e uma caixa de pó-de-arroz, subconjunto este agora cedido a título definitivo.
Conservava esta Senhora há muitos anos, carinhosamente e sempre na expectativa de que um dia pudesse surgir no Porto um espaço que, de modo estável, evocasse a figura da grande Violoncelista, estes objectos que a sua mãe Guilhermina Suggia deixara.
Este gesto de generosidade revela uma grande sensibilidade ao valor imaterial do património cultural e constitui uma atitude construtiva e socialmente prestante de alguém que, guardando no coração memórias e afectos, soube e quis, através de um acto assim, dar um futuro ao nosso passado colectivo. Possa esta doação servir de exemplo para o exercício do dever colectivo de preservar o património que é a memória nossa enquanto povo. A custódia desses bens é uma indeclinável responsabilidade não só das instituições públicas em especial, como também dos próprios cidadãos em geral. É nesses bens, materiais ou imateriais, que encontramos as raízes da nossa identidade, neste caso artística e cultural.
Que tudo se encaminhe no sentido de o Porto ter, em breve tempo, um espaço permanente de evocação de Guilhermina Suggia.
Como que reconstruindo aos poucos o legado de Suggia, prestamos-lhe assim um perene e renovado tributo. É como se ela recebesse mais uma vez flores, umas flores que não são para depor numa qualquer pedra com um nome, antes se lhe entregam, no final de um concerto, num palco que tanto poderá ser o do Rivoli como outro por essa Europa fora. Suggia e o seu violoncelo emocionam-se, transfiguram-se, eternizam-se perante um público que a adorava. Diante de nós e para a geração dos filhos dos nossos filhos.
A Isabel da Silva Odoul o nosso obrigado pelo seu gesto.
Texto publicado na Glosas 13.