Passada uma década sobre a sua criação, viu a estreia mundial, a 20 de Maio, o Concerto para Saxofone Alto e Orquestra de Anne Victorino d’Almeida. O solista, exímio nesta apresentação, foi o jovem saxofonista madeirense Elvis Sousa, que recentemente conseguiu, em detrimento de cerca de oitenta candidatos, a única vaga no programa de Mestrado do Conservatório Nacional Superior de Música e Dança de Paris. Sendo o único saxofonista português de sempre a conseguir um lugar nesta instituição de referência, terá também o privilégio de se aperfeiçoar com um saxofonista de referência, o sexagenário Claude Delangle, cujo nome é sinónimo da escola francesa de saxofone.
A estreia foi inserida no quarto concerto da série de Jovens Solistas da Orquestra Clássica da Madeira, apresentado no Teatro Municipal Baltazar Dias e tendo como maestro convidado o alemão Ernst Schelle. Além da primeira audição do Concerto, para a qual a Orquestra e o maestro deram um contributo atento e sintónico, constaram do programa a Abertura em Estilo Italiano, D. 590 de Schubert e a Sinfonia n.º 2 de Beethoven.
Tendo eu sido privado da possibilidade de ouvir este concerto ao vivo, foi-me feliz e amavelmente cedida, pela OCM, uma gravação em vídeo. Se bem que uma gravação nunca é equivalente a uma experiência vivida, no caso de uma estreia mundial, mesmo perdendo algo da qualidade do som, ambiência acústica e sensação da proximidade, o infortúnio de não poder estar em dois lugares ao mesmo tempo transformou-se em vantagem, dando-me a oportunidade de ouvir a obra várias vezes e, assim, não ter de depender apenas da primeira impressão fugaz.
Como referiu na entrevista para o Diário de Notícias da Madeira, a compositora associou o impulso que a levou a compor o Concerto a um concerto que realizou em 2006 com a Orquestra Sinfonietta de Lisboa, com o pianista Bernardo Sassetti e o saxofonista Carlos Martins. Querendo recriar os dias dos ensaios e do concerto, voltou para casa “com imensa vontade de escrever”. O nascimento da filha mais nova também terá tido repercussões imediatas no carácter da obra, que foi escrita em em 2007.
Sendo também violinista, Anne Victorino d’Almeida, filha mais nova do compositor António Victorino d’Almeida, mantém uma carreira artística intensa, como membro fundador do Quarteto Camões e do agrupamento Rumos Ensemble, tendo já integrado o Quarteto Lopes-Graça, e é professora de violino desde 2004 no Conservatório Nacional, em Lisboa.
Os três andamentos (Allegro – Andante non tropo – Allegro) do Concerto, que já foi editado pela editora AvA, têm uma duração de cerca de 19 minutos.
Desde os primeiros compassos torna-se óbvio que a linguagem desta obra não desafia o ouvido e cria o interesse utilizando sobretudo ritmo e timbre como ingredientes básicos. Não se abstendo de padrões rítmicos e sequências harmónicas familiares, a compositora frequentemente utiliza ostinatos como fontes de energia e pulsação, às vezes imponentes, às vezes criando o fundo para o saxofone, a pairar por cima num discurso cantante. A energia rítmica e motora emana sobretudo da parte dos timbales, cuja ubiquidade não perturba a impressão de uma textura transparente e muito bem equilibrada com registos do instrumento solista. O saxofone ora dialoga com a orquestra, ora continua as ideias propostas por outros instrumentos, integrando-se organicamente na textura comum.
Resulta muito bem o contraste entre o segundo andamento, em que os momentos nostálgicos e meditativos da parte solista, com o seu timbre tão característico, não passarão despercebidos pelos amantes da série televisiva Agatha Christie’s Poirot, e o último, em que o glockenspiel e os violinos introduzem um tema vivaz, infantil na simplicidade, anedótico no fraseado e folclórico nos contornos melódicos, frequentemente de inflexão pentatónica. Frases pitorescas da conversa entre a percussão, cordas e o solista exibem às vezes a plasticidade de uma banda sonora.
Nas cadenzas do primeiro e segundo andamento intervém também a orquestra, seja isso, respectivamente, por ostinatos que esmorecem para terminar o andamento ou por pizzicatos dos violoncelos a pontuar o solilóquio do solista, enquanto a cadenza do último andamento resume mais uma vez o espírito lúdico-infantil e brincalhão e conduz à coda.
Desinibido no seu eclectismo e muito bem-sucedido na conjugação com o tratamento original e atraente, este concerto permite ao solista aplicar uma visão muito individual e personalizada, pelo que se pode esperar, sobretudo tendo em conta que a obra já está editada e disponível, que em breve tenhamos a oportunidade de ouvir outras tantas abordagens e perspectivas, por saxofonistas portugueses e não só.