A propósito do lançamento do CD número 25 da colecção melographia portugueza, que assim integra, pela primeira vez, música de João Madureira, a Glosas publica agora uma pequena conversa (on-line) com o compositor e a pianista Ana Telles.
Como surgiu a ideia para o projecto do CD Estudos Literários – Retratos?
Ana Telles – Em primeiro lugar, gostaria de agradecer esta conversa e o bom acolhimento a este projecto! A razão que me levou a apresentar este projecto ao MPMP foi o facto de eu constatar que a música do João ainda não estava representada na colecção melographia portugueza. É um projecto que me é muito querido e, em particular, uma colecção pela qual tenho muito apreço. Achei, portanto, que valia a pena aliarmos esforços.
O projecto teve a sua génese há cerca de dez anos. Em 2011, passaram precisamente 100 anos sobre a composição da colectânea op. 33 de Estudos-Quadro de Sergei Rachmaninov. Eu queria comemorar essa efeméride, porque é uma colectânea de estudos que me é particularmente cara, mas queria comemorar de uma maneira especial. Como é sabido, eu tenho estado muito ligada à criação musical contemporânea, nomeadamente para o meu instrumento, e queria assim confrontar os estudos de Rachmaninov com uma produção mais recente que tivesse alguma relação do ponto de vista conceptual.
Comecei a pensar que os Estudos-Quadro de Rachmaninov, embora se chamem assim, não têm propriamente alusões pictóricas específicas. São estudos magníficos e permitem-nos imaginar todo o tipo de situações – artísticas e outras –, mas não podemos dizer que Rachmaninov se baseou na pintura deste ou daquele artista. Comecei então a reflectir como pegar nesta ideia e a que compositor é que poderia pedir para pensar sobre a ideia de estudos que, na verdade, não se cingem àquilo que é tradicional.
Geralmente pensamos nos estudos numa perspectiva de desenvolvimento de alguma questão técnica de um determinado instrumento…
AT – Normalmente, fica-se por aí. Nos Estudos-Quadro há uma dimensão evocativa, mesmo que não seja concretizada ou ligada directamente a obras pictóricas, como o título poderia fazer supor, e eu queria que um compositor contemporâneo me ajudasse a reflectir sobre essa dimensão evocativa nesta forma tão estreitamente associada ao desenvolvimento da técnica do piano.
Foi então óbvia a ligação com o João Madureira?
AT – Lembrei-me do João porque pensei que a sua música tem uma ligação muito forte a tudo o relacionado com intertextualidade. A música do João, na minha perspectiva, nunca está só: está no centro de uma constelação dos seus interesses, o que é muito mais vasto que apenas a música propriamente dita. Lembrei-me então de lhe pedir para escrever uma colectânea de Estudos Literários, brincando também um bocadinho com o termo – pensando no que são os estudos literários reais. Assim, eles permitem englobar todo o conhecimento do João, não só literário, como na intertextualidade da sua obra.
O que me escapou, mas que acabou por ser paradoxalmente extremamente enriquecedor, foi que o João acrescentou uma outra camada: cada um dos estudos acabou se tornar um retrato de uma determinada personalidade do nosso meio cultural (musical, artístico ou literário). A génese do projecto foi esta. Há também uma outra particularidade: nós trabalhámos estes estudos em conjunto desde o início.
O trabalho próximo com compositores tem sido uma das marcas da sua carreira.
AT – Eu diria que trabalhar com compositores é o cerne da minha actividade. É o que eu gosto mesmo de fazer: estar presente, dialogar, experimentar, desbravar terreno. Neste caso, o João convocou-me e foi buscar-me ainda mais na génese das obras do que geralmente acontece. Uma coisa é o compositor pôr-nos perante uma obra acabada de compor e nós termos o trabalho de a tocar e de dar o feedback depois da estreia. Outra coisa é o que fizemos: o João ligava-me e dizia “Ana, vem cá a casa e vamos trabalhar nos estudos!”
Naturalmente, não fui eu que compus os estudos, não sou compositora. Mas aconteceu, por exemplo, ele pedir-me “Ana, faz aí uma figuração que gostes de tocar ao piano”. Eu fazia uma figuração de que fisicamente gosto e o João pegava nessa ideia e compunha a partir daí. O “A.H.”, por exemplo, tem essa vertente. Pelo contrário, por exemplo, o “Cristiana” – em que trabalhámos imenso e que teve imensas versões – foi sendo alterado a partir da minha experimentação. Ao início, explorava muito a existência de intervalos puros (5ª perfeita, por exemplo), mas eu achava que faltava ali algum elemento de irregularidade, que nos tirasse o equilíbrio…
O nosso trabalho foi então introduzir essa irregularidade rítmica em algo que já estava conceptualmente avançado, num contexto que é extremamente inovador em termos de escrita e que, para mim, além disso, soa muito bem. Estes dois exemplos são paradigmáticos. Não é que ele tenha aceitado todas as minhas sugestões de maneira taxativa, mas elas fizeram-no reflectir e criar novas versões, muitas vezes muito mais interessantes até que as que eu propusera. Foi um processo muito intenso e, para mim, um absoluto privilégio.
A apresentação dos estudos em público permitiu certamente o seu amadurecimento.
AT – Fomos fazendo várias correcções à medida que eles foram sendo tocados, em paralelo com os Estudos-Quadro, op. 33 de Rachmaninov.
Pergunto agora ao João como chegou a estes nove Retratos.
JM – Eles foram surgindo com as pessoas! A ideia inicial foi a de retratar determinada pessoa: aquilo é o mundo de cada pessoa. A música contemporânea é muito auto-referencial. No início, eu não tinha nenhuma ideia sobre o número total dos retratos.
O trabalho com a Ana foi importante no sentido técnico?
JM – Foi, mas não foi o principal objectivo em si. Eu acho que o compositor compõe motivado pelas pessoas. Todas as pessoas retratadas – que eu conheço pessoalmente – são fascinantes como pessoa. Por exemplo, a Ana com o piano representa a relação da pessoa com o mundo, através da obra. A Ana é aquilo. O Eurico é um homem de rocha, no bom sentido! É uma pessoa forte e a música revela isso, ou pelo menos revela o modo como eu o vejo. As pessoas são o estudo: é essa a minha ideia. Sei que é infinitamente subjectivo, mas, para mim, ele é aquilo.
Como surgiu a peça Ana, Parabéns?
JM – Foi uma pequena dádiva à Ana. Não é mais do que isso! A Ana tocou-a muito bem!
AT – Foi um belo presente de aniversário! Eu fiz uma pequena festa para os meus 40 anos e o João apareceu com aquela prenda. Eu nem queria acreditar! A primeira reacção que eu tive foi ir para o piano, experimentar a peça, com todos os convidados! De uma maneira muito simples, como muitas vezes acontece com a música do João – simples, mas não simplista –, a peça pega numa coisa que todos nós conhecemos, o mais que comum “Parabéns a você”, e reinventa-o. Acho essa peça deliciosa e que sou uma grande sortuda por ter mais esta dedicatória, além de um dos Estudos Literários.
O estudo Ana, que é logo o primeiro na ordem específica que adoptaram para o CD…
AT – A ordem para o CD é um bocadinho diferente da ordem que costumávamos fazer nos recitais, também por causa das restantes peças incluídas. Os estudos foram compostos na mesma altura. A composição estendeu-se ali ao longo de dois anos, entre 2011 e 2013. Precisamente no concerto da Academia das Ciências foi adicionado um novo estudo, o “Marta”, que foi o último a ser composto.
JM – A Marta também é aquilo: é uma pessoa que tem missangas. Não sei explicar muito melhor!… Talvez se possa revelar a ideia de que, no fundo, eu sou mau a falar. Às vezes, o afecto é mais fácil na música do que quando falo.
AT – Eu acho que isso tem a ver com a capacidade do João de agarrar a essência de determinada pessoa, ou da relação do João com essa pessoa. Agarrar um elemento concreto e transformá-lo em música. Todas estas peças vivem dessa identificação de uma característica principal de uma pessoa, que sobressai aos seus olhos e que ele vai transformar em música. Essas características têm muito a ver com o aspecto relacional, seja uma relação de amizade, de admiração ou de colaboração profissional. Depois vai configurar uma leitura diferenciada da pessoa e uma utilização musical dessa essência que ele retira da pessoa em questão.
Como se fixou o alinhamento final deste projecto?
AT – No fundo, eu queria gravar todas as obras para piano do João que foram escritas para mim, no período de colaboração muito intensa que tivemos à volta deste projecto dos estudos. O João tem obras para piano anteriores, algumas delas com outro tipo de recursos, como recitante. Numa primeira fase (isto é, neste CD), deixei-as de fora. Um dia gostaria de as tocar e gravar, mas para este CD importava-me colocar à volta dos estudos todas as obras que o João escreveu para mim e que eu estreei. Dentro das obras mais pequenas, a primeira de todas é a Peça para Inês, escrita para o filme Cinerama, de Inês Oliveira. A Coroa, que eu acho absolutamente maravilhosa, é uma peça baseada em Maria Gabriela Llansol, escrita para um recital de homenagem à escritora, feito no CCB, com a colaboração do Diogo Dória. Por fim, há também os dois Parabéns: os meus e os escritos para os 80 anos do Jean-Sébastien Béreau.
Poderiam falar-nos um pouco do processo de composição destas peças?
JM – A Inês tem uma característica curiosa, para mim: ela é muito rápida. Eu quase nunca a acompanho. Ela é rapidíssima! A Maria Gabriela é uma pessoa que eu conhecia e era um mistério. Eu acho que ela tinha isso, não sei dizer muito mais.
AT – Relativamente à “Coroa”, a peça em si é extremamente poética pelos ambientes que cria e pela maneira como uma ideia harmónica se torna evanescente. Ao mesmo tempo, a peça inclui excertos dos textos da Maria Gabriela Llansol, aliando a poesia real à poesia musical. Nós sabemos quanto a música e a poesia têm em comum. O casamento das duas nessa peça é muito feliz. Além disso, o trabalho de construção tímbrica e o desenvolvimento das quintas ao longo da peça é, para mim, extraordinário. Relativamente aos Estudos Literários – Retratos, é importante perceber a quem é que eles são dedicados e ler aquela nota que o João proporciona e que está inserida no CD. Vamos encontrar compositores, pintores, escritores, intérpretes: uma panóplia de personalidades distintas. É uma viagem e é uma janela aberta sobre a descoberta dessas personalidades. Quem ouve o estudo sobre Ana Hatherly vai talvez depois ter vontade de ir conhecer mais sobre ela.
JM – Quem ouve esse estudo pode conseguir ver a Ana Hatherly. Ela era uma pessoa altamente meticulosa, que tem uma história de vida impressionante. Uma pessoa que saiu de Portugal e vivendo em Inglaterra, percebeu melhor o país do que se vivesse cá. Percebeu melhor o que é ser português. O Morton era uma pessoa com muita ligação ao John Cage, tinha a noção do que a música significa. Por mais técnicas que tenhamos, e que expliquemos, a música significa sempre alguma coisa. É bom que assim seja. A música representa a posição do Morton face ao mundo: como é que aquele homem vive? Lentamente. No Ivan também represento isso, mas é uma outra forma de viver, muito mais rápida.
O piano também permite algo que eu aprecio, que é o som a evocar outros sons. Eu posso dizer até que há outros instrumentos cujo som é só deles, mas no piano não. O pianista evoca outros sons: a ideia do que representa cada nota além do próprio som que tem. O Feldman percebeu muito bem isso e, no fundo, todos os estudos têm essa componente de “representar coisas”. Não são fechados sobre si. Não podemos viver na redoma das coisas, só com técnica. Eu gosto muito daquela frase que diz que somos anões às costas de gigantes. É assim que eu me sinto! O Feldman era um gigante que percebeu o que a música significa.
Falamos do piano como uma pequena orquestra, mas apenas explorando a maneira convencional de tocar, sem exploração de outras maneiras de produzir som no instrumento.
AT – Essa exploração tímbrica é constante nas obras para piano do João, mas, de facto, não se consubstancia na exploração dos recursos mais inusitados do instrumento. Ela passa pelo desenvolvimento tímbrico a partir da concepção harmónica da peça, como seja, por exemplo, a maneira como se trabalha a sobreposição de determinados campos harmónicos ou registos. O João molda o timbre. Isso define uma boa parte das obras. O Morton é uma peça que eu acho extraordinária. É lenta, despojada, tem poucos elementos e eles são muitos esparsos, mas habitam o espaço. Nós temos grandes praias de silêncio entre um compasso e outro. Durante esses momentos de silêncio – habitado pelas ressonâncias e, portanto, não um silêncio real –, em que há inacção da minha parte, mas em que vivem as ressonâncias do compasso anterior, há paradoxalmente um desenvolvimento muito activo das resultantes harmónicas. Sendo uma das peças mais despojadas e lentas, acaba por ser das mais ricas a nível tímbrico. Isso é uma actividade latente que não depende só daquilo que eu estou a fazer ao piano: depende também da respiração do piano, depende de como o piano vive, amplifica e nos dá aquilo que lá é colocado no compasso anterior.
No limite, depende de cada piano e de cada sala.
AT – E de cada pianista, porque depende muito do touché. O João joga muito com isso. Lembro-me de uma discussão que tivemos sobre a mesma nuance tocada em dois registos extremos. Do ponto de vista acústico, isso vai dar sempre uma predominância ao baixo, naturalmente, devido à estrutura do instrumento. Da maneira como estava escrito, eu não percebia se o que o João queria era um equilíbrio da resultante sonora entre grave e agudo ou que eu tocasse com a mesma pressão nas duas mãos para que o grave sobressaísse. Tivemos uma discussão – no bom sentido, claro – e concluímos que era preciso moldar ali um bocadinho a escrita, em termos da nuance dinâmica, porque o objectivo era que houvesse equilíbrio. No Morton, por exemplo, há poucas notas para tocar, mas foi a peça em que eu mais cuidei a maneira como produzo cada uma delas. Muito daquilo que é resultante daqueles momentos de inacção minha, do som a vibrar, vai depender de como eu excitei as cordas. Quanto mais agitado e contínuo é o discurso musical, mais premente se torna o modo concreto de produção sonora. Este trabalho faz-se em casa, mas tem de ser sempre adaptado a cada instrumento e a cada sala.
Têm próximos projectos em conjunto para breve?
AT – Este é um momento importante da nossa colaboração, porque damos a conhecer de forma mais perene estas obras. Vai haver outros passos e outras vertentes deste caminho, mas esta apresentação é o que mais interessa neste momento. São obras que devem merecer a atenção dos pianistas e dos melómanos e espero vê-las a ser adoptadas por pianistas, por professores, por estudantes e, enfim, pela comunidade dos pianistas em geral.
É raro haver estudos portugueses no percurso dos jovens pianistas. Há, aliás, várias opções, desde Bomtempo, passando por Luiz Costa e acabando em várias composições contemporâneas, como neste caso.
AT – Essa descoberta é fundamental. Temos de estar atentos ao repertório. Felizmente, no piano temos um repertório vastíssimo, mas utilizamos muito pouco dele. Temos muita tendência para tocar as obras que aprendemos na nossa formação e as obras que são mais vezes tocadas: continuamos com uma certa resistência à descoberta. Isso é algo que eu tenho tentado por todos os meios contrariar, em todas as facetas da minha actividade. Gostava muito que essa atitude se espalhasse um bocadinho mais e que estes estudos do João e outros estudos portugueses passassem a fazer parte daquilo a que chamamos mainstream e que se estuda, por exemplo, em Portugal.