Os concertos Fernando Pessoa Jazz Project foram incluídos na programação Festa dos Anos de Álvaro de Campos, uma iniciativa da Associação Partilha Alternativa, presidida por Tela Leão, que durante os meses de Outubro e Novembro celebra o nascimento do heterónimo Álvaro de Campos em Tavira. Pelo terceiro ano consecutivo, Tela Leão tem tido a preocupação de realizar uma programação inclusiva, acolhendo não apenas os artistas residentes e as associações e escolas locais mas também aqueles que tendo afinidade com o projecto vêm de mais longe. Nos últimos dois anos, a Festa dos Anos de Álvaro de Campos obteve o apoio do programa “365 Algarve”, e este ano contou também com algum suporte da Camara Municipal de Tavira. Foi neste contexto que o Clube de Tavira acolheu o Fernando Pessoa Jazz Project, nos passados dias 20, 21 e 22 de Outubro.
O projecto foi idealizado e é dirigido pela cantora jazz canadiana Tammy Weis, que em 2010 foi nomeada para Vocalista do Ano pela London Jazz. A sua carreira internacional começou com o album Legacy (2005) dedicado à sua falecida mãe. Tammy provém de uma família de músicos: o seu bisavô tocava banjo e violino.
Neste projecto, Tammy faz-se acompanhar de dois talentosos músicos portugueses: Carlos Barreto no contrabaixo e António Pinto na guitarra. Carlos Barreto nasceu no Estoril e estudou no Conservatório Nacional de Lisboa. Em 1984 estabelece-se em Paris, fazendo concertos por toda a Europa. Regressa a Portugal em 1993, continuando a trabalhar com os melhores artistas e músicos e apresentando-se também a solo. António Pinto realizou estudos no Hot Club e mais tarde na Escola Superior de Música de Lisboa. Participou em várias formações musicais tais como o Septeto de Tomás Pimentel, a Orquestra do Hot Club de Portugal, Orquestra Sons da Lusofonia, Moreiras Jazztet, Quarteto de Carlos Martins, Orquestra Sons do Mundo de Laurent Filipe, Claus Nymark Big Band, Alexandre Diniz Quarteto ou o Quinteto José Meneses. Continua a colaborar com muitos dos melhores músicos portugueses.
A ideia surgiu ao passear por Alfama. Tammy viu um cartaz de uma galeria de arte que anunciava “pintura, vinho tinto e café”. A cantora canadiana não se fez rogada. Quis o acaso que na galeria se encontrasse, nesse momento, um guitarrista. Pouco depois gerou-se um pequeno concerto improvisado. O pintor residente dessa mesma galeria era russo-mongol e pediu ao guitarrista que dissesse a Tammy que ela tinha de cantar Fernando Pessoa. Ela não fazia a menor ideia de quem se tratava… A sorte sorriu de novo pois a exibição era toda dedicada a Fernando Pessoa. Tammy começou a lê-lo nesse mesmo dia, e foi regressando à galeria para compor, enquanto o pintor-musa trabalhava com as suas telas e pincéis. Não falando português, Tammy acedeu com facilidade à poesia que Pessoa escreveu em Inglês. Como é sabido, Pessoa viveu em Durban, na África do Sul, entre os 7 e os 17 anos de idade. Os seus primeiros poemas, de adolescente talentoso, foram por Tammy transformados em canções.
Incluir o timbre da guitarra surgiu da intenção de fazer sentir “o pulso de Portugal” esclareceu a cantautora que assume a direcção artística do projecto. O grande objectivo é leva-lo para o Canadá, enfatizando a conexão entre ambos países. O espectáculo já foi apresentado em Inglaterra, com uma formação diferente, mas mesmo aí Tammy quis incluir uma declamadora que recitasse os poemas em português, para que as pessoas pudessem sentir a energia e a sonoridade da nossa língua. A sua admiração pelo fado levou-a a incluir no espetáculo realizado na Casa Fernando Pessoa guitarra portuguesa, interpretada por Luís Guerreiro.
Tammy considera que cada composição tem um carácter único: umas soam mais a fado, outras a música latina, outras a jazz. Por outro lado, António Pinto afirma que não se pode dizer que um bom poema pertença a um determinado país — um bom poema torna-se universal. Ao trabalhar com Tammy, apercebeu-se da sua vontade de sair das fronteiras do jazz para entrar num território mais étnico e acolher o timbre português. Carlos Barreto e António Pinto trazem o timbre português no seu espaço de improvisação e nos arranjos musicais que vão fazendo para este work in progress.
Tammy encontrou na poesia de Pessoa uma actualidade que a surpreendeu. Jamais poderia imaginar que algo assim tivesse sido escrito há cerca de 80 anos, e citou de memória: “Viajar! Perder países!/Ser outro constantemente,/Por a alma não ter raízes/De viver de ver somente!” (Fernando Pessoa, Obra Inédita). Ou ainda: “Quero-te para sonho/Não para te amar.” (Ibid.) Estas leituras fizeram-na expandir a sua mente, ir a lugares inimaginados.
De vestido negro, lenço vermelho usado ao modo de um xaile de fadista e o cabelo loiro deixado livre: assim se apresentou Tammy Weis no palco do Clube de Tavira, que depressa se rendeu aos encantos das sua voz forte e quente. Tammy insiste no quão importante é para si a sonoridade língua portuguesa, na qual não se atreve ainda a cantar. Assim, fora do palco, junto à assistência, a declamadora Maria João Soares recitou os poemas ingleses de Fernando Pessoa em Português. Também ela numa estética alusiva ao fado, envergando um vestido negro que fazia realçar os longos brincos de filigrana dourada que lhe pendiam em cascata das orelhas.
O concerto iniciou-se com Wake the World Sonnet, seguido de Many Rivers Run onde nos deliciámos com um solo de guitarra de António Pinto. Estes solos continuariam a surgir no decurso do concerto, sempre muito aplaudidos pela assistência.
A terceira peça, com música de Terry Britten, compositor inglês que escreveu várias canções para artistas pop famosos tais como Tina Turner, Cliff Richard, Michael Jackson e muitos outros, foi interpretada a cappella. Seguiu-se-lhe Hope, em que a poesia de Pessoa adolescente assentou que nem uma luva no estribilho: “Her lips were not very red/ Nor her hair quite gold/Her hands played with rings/ She did not let me hold/ her hands playing with gold”.
O quinto tema traria uma surpresa, introduzindo Berg, o vencedor da versão portuguesa de X-Factory em 2014, como convidado especial. O cantor português de ascendência alemã inundou o placo com o seu sorriso, e fazendo uma segunda voz mais aguda ao cantar de Tammy, o travo rouco no timbre quente de ambos levou a audiência ao rubro com Why do I desire?: “Why do I desire/What I do not need? Why does my soul, like fire/ Or a hot abstract greed/Seek all that is higher?”
Por um momento Tammy deixou o Pessoa adolescente para se concentrar em Ricardo Reis, cantando uma tradução inglesa do poema Segue o teu destino: “Segue o teu destino/ rega as tuas plantas/ Ama as tuas rosas/ O resto é a sombra/ de árvores alheias”. O poema evocou em Tammy o bucolismo da sua Alberta natal fazendo-a compor em pleno estilo country, tomando como estribilho as ultimas duas frases do poema “Os deuses são deuses/porque não se pensam”. Tammy imaginou os animais nas pastagens da sua infância, e a canção teve direito até aos gritinhos “yyyha” próprios de cowboys!
É aqui que as maiores dificuldades surgem para quem está deste lado, do lado da apreciação estética e crítica. A cantadora interpreta o poema de forma totalmente literal, contudo, nós sabemos que Ricardo Reis, o heterónimo neo-pagão, que recebeu uma educação clássica extremosa e se formou em medicina, nunca tendo exercido, era um discípulo fervoroso de Alberto Caeiro, o heterónimo mestre. Também sabemos que Caeiro não era um pastor em sentido literal, o Guardador de Rebanhos, não se refere, de todo, a ovelhas: “Sou um guardador de rebanhos/O rebanho é os meu pensamentos/ E os meus pensamentos são todos sensações”.
Sabemos que em questões de estética é possível discutir mas não disputar. Jamais podemos auxiliar-nos de uma regra, como faríamos se se tratasse de um juízo de conhecimento, para sustentar a nossa razão. Contudo, quererá isto dizer que tudo é válido? Ou podemos, e se calhar até devemos, falar em casos como este de desconhecimento e equívoco? Temos ou não o direito, quiçá até o dever estético, de nos sentirmos chocados?
A especialista pessoana Teresa Rita Lopes é a primeira a afirmar que “O Fernando Pessoa anda por aí todo deturpado”. A professora, que se doutorou em Paris com uma tese sobre Fernando Pessoa e que há cinquenta anos se dedica ao estudo do poeta, já deu a volta aos 27 mil documentos do espólio mais do que uma vez, e não hesita em classificar certas edições como “vandalismo”. Que diria ela se ouvisse esta interpretação? Poder-se-ia argumentar que se trata de alguém de fora, alguém estrangeiro, alguém que desconhece a cultura portuguesa e o contexto poético da obra de Fernando Pessoa e que, por isso mesmo, ouve e lê com um olhar “fresco” e utiliza a sua experiência privada, o que os poemas evocam e inspiram para criar. De novo se coloca a questão, será isto legítimo? Tudo está permitido na chamada “liberdade do artista”?
A segunda parte do concerto abriu com Carlos Barreto fazendo soar com o arco o seu contrabaixo. Instrumento que permaneceu discreto durante toda a noite, realizando apenas acompanhamentos simples e um solo tão mínimo que a sensação foi a de que nos tiraram o caramelo assim que o colocaram na boca. Quem conhece Carlos Barreto — a sua sensibilidade, o seu virtuosismo, a sua maturidade musical — esperaria que o seu talento fosse melhor aproveitado. Aliás, há a esperança de que tal venha a acontecer no futuro pois Fernando Pessoa Jazz Project é ainda um work in progress.
Sabendo que este projecto anda à procura de financiamento e que os músicos apenas se reúnem para ensaiar quando têm um concerto agendado, conformamo-nos com o caráter provisório, quase de manta de retalhos, que o trio apresenta. Não é ainda um todo entretecido e orgânico como se desejaria. Faltam bastantes horas de ensaio para lá chegar! Este é um drama que, infelizmente, a maioria de excelentes profissionais enfrentam no nosso país. Os artistas são de primeira qualidade, uma matéria-prima fomidável, mas depois é necessário que existam condições que permitam trabalhá-la. Dito de forma clara falta tempo pago para ensaiar, e para que a composição de Tammy se enriqueça com as improvisações e os arranjos de Carlos Barreto e de António Pinto, que lhe podem presentear as sonoridades portuguesas genuínas que tanto busca. Acresce que Fernando Pessoa Jazz Project não é um projecto comercial, tem por natureza um carácter intimista que reduz o nicho de público e, por conseguinte, de retorno financeiro possível. É em ocasiões como esta que os mandatários da cultura poderiam e deveriam encontrar condições de viabilização para levar a bom porto uma ideia com tanto potencial!