No passado Sábado, 8 de Outubro, a pianista Gilda Oswaldo Cruz deu um recital de piano na Igreja de Misericórdia em Tavira. O concerto integra a iniciativa “Música nas Igrejas” da responsabilidade da Academia de Música de Tavira, que se vem realizando já há vários anos e que mantém um público fiel, constituído maioritariamente por estrangeiros residentes no sotavento algarvio. Este foi o concerto escolhido para integrar o evento cultural “Festa dos Anos de Álvaro de Campos”, que decorre ao longo dos meses de Outubro e Novembro, com direcção de Tela Leão, e apoio do programa 365 Algarve. O heterónimo pessoano nascido em Tavira, “engenheiro e poeta sensacionista” como gostava de acrescentar à sua assinatura, não poderia ter sido melhor celebrado. Com o programa escolhido, que principiou em Haydn (Sonata em mi bemol maior), passou por Webern (Variações Op. 27), Berg (Sonana Op. 1) e terminou em Debussy (Children’s Corner e L’isle joyeuse), a pianista visou “sublinhar o vínculo entre o modernismo e a estética romântica por vezes ignorada na interpretação das obras dos grandes inovadores da música no início do século XX”.
Gilda Oswaldo Cruz nasceu no Rio de Janeiro tendo iniciado os seus estudos de piano aos nove anos de idade com Vilma Graça. Realizou estudos superiores de piano na universidade federal da sua cidade natal, vindo a concluí-los na Escola Superior de Viena, onde obteve o diploma de virtuosidade com a máxima graduação. Pianista premiada, tem-se apresentado nos mais variados palcos de cidades europeias, sul-americanas e africanas. Gravou dois CDs dedicados à obra pianística de Claudio Santoro e produziu para a Antena 2 duas séries trimestrais de programas em torno dos compositores Arnold Schoenberg e Heitor Villa-Lobos.
Este concerto deixou, seguramente, uma marca indelével no público por duas razões principais:
- Em primeiro lugar é raro o público tavirense ter acesso a obras de compositores do século XX. Viam-se os olhares perplexos do público exposto às sonoridades de Webern e Berg. As notas de programa, escritas pela própria pianista, ajudaram o público que a elas recorreu insistentemente: “Decorrente da evolução do sistema tonal na música de Wagner, o expressionismo atonal a partir de Schoenberg jamais negou a sua origem romântica, apesar do seu aparato formal rigoroso. Assim, a primeira obra de Alban Berg, a Sonata Op. 1, é uma peça que retoma aspectos do virtuosismo pianístico de Liszt e contém reminiscências de harmonias wagnerianas. Já as Variações Op. 27 de Anton Webern, segundo testemunho de seu primeiro intérprete e dedicatário, Edouard Steuermann, devem ser interpretadas com uma sobrecarga emotiva e expressar um lirismo apaixonadamente contido, bem distante portanto da secura pedante com que por vezes podem soar”.
- Em segundo lugar é muito raro ouvir interpretar Debussy com tanta mestria! Mesmo hoje em dia são poucos os capazes de entender a estética deste precursor do modernismo musical e de o fazer soar justamente. Debussy realizou um depuramento musical através de uma redução de meios que conciliou com o maior refinamento! A exploração das ressonâncias do piano obriga a um domínio do pedal nunca visto até então. A insistência nos piano e pianissimo requer uma execução virtuosa. Também aqui as notas de programa auxiliaram o público: “A música de Debussy traz para a música ocidental escalas exóticas, como a de tons inteiros, e antigas harmonias modais, além de incorporar a noção de espaço. A suíte Children’s Corner, dedicada à filha do compositor, é constituída de miniaturas de grande sugestão poética, imbuídas de ternura, contendo porém na última peça uma burla em torno do tema inicial do prelúdio de Tristão e Isolda, na forma de uma curta gargalhada de cunho sarcástico. Tudo para ser tomado com um grão de sal, evidentemente, já que Debussy era admirador profundo e estudioso da música do mestre de Bayreuth. A peça L’isle joyeuse traz ao ouvinte a sugestão musical da ideia de volta à ilha feliz da pátria de origem”.
Resta-me acrescentar que Debussy ousou ser um grand enfant, compôs Children’s Corner com humor… mas sem descurar o mistério que uma boneca encerra, a profundidade que as coisas ínfimas contêm quando a atenção se demora nelas. Quanto a L’isle joyeuse, ar, leveza e graça são centrais nesta peça. Na esteira de Correspondances de Baudelaire, esta é uma obra sinestésica; com a execução adequada evoca o ar fresco, a brisa marinha, o sol, criando uma atmosfera de felicidade e graça.
Gilda Oswaldo Cruz conseguiu-o plenamente!