Agamémnon, pai de Ifigénia, pretende oferecê-la aos deuses como sacrifício. Por graça de Diana, Ifigénia é magicamente levada para a Táurida, onde se torna sacerdotisa e onde cumpre a vontade de Thoas, rei dos citas, que, crendo no vaticínio dos oráculos, pretende sacrificar todos os náufragos que se lhes cheguem. Um deles, todavia, é o próprio irmão de Ifigénia, Orestes, que por sua vez havia já assassinado a sua mãe, Clitemnestra… Eis o mote para Iphigénie en Tauride, tragédia em quatro actos de Christoph Willibald Gluck (1714-1787) que ora se apresenta no Teatro Nacional de São Carlos — partitura que, não sendo fábrica de encantamento extraordinário, permite-se, debalde o libreto, a algumas pequenas maravilhas e que decerto deleitará, aqui e ali, o mais céptico dos melómanos.
O maestro britânico David Peter Bates e os quatro primeiros cantores, os internacionais Alexandra Deshorties (Iphigénie), William Berger (Oreste), Colin Ainsworth (Pylade) e John Moore (Thoas), apresentaram-se agora em Lisboa pela primeira vez e, a avaliar pela récita de estreia, a que a Glosas pôde assistir, fizeram-no com merecido sucesso. Para quem se lembrava ainda da inépcia de um outro recente visitante em São Carlos, cuja batuta, dentre outros problemas, não conseguia nem sincronizar os músicos entre palco e fosso nem conferir solidez e segurança à massa orquestral, a audição do trabalho realizado por Bates não deixou de surpreender. Ainda algumas imprecisões, desencontros, hesitações, afinação aqui e ali descuidada, mas de uma forma geral a orquestra apresentou-se bem mais robusta e nem a secura acústica da sala logrou comprometer a proficiência exemplar da direcção. Se uma das virtudes mais cativantes desta partitura é a forma como Gluck explora a riqueza dramática dos timbres e texturas instrumentais, Bates fê-los transparecer com especial clareza e com contrastes adequados. Tanto nos seus momentos de paixão barroca como de clássica leveza — sublinhe-se a elegância dos recitativos acompanhados —, a Orquestra Sinfónica Portuguesa procurou responder zelosamente aos desafios de Iphigénie en Tauride.
Deshorties, a principal, teve uma prestação feliz. A sua voz não é especialmente grande, tampouco imaculada, mas é agradável e passa confortavelmente sobre a orquestra em grande parte da sua tessitura. Deshorties mostrou-se, sobretudo, intensamente expressiva no seu canto, no seu choro e nas suas respirações dramáticas, ainda que de forma mais consequente e impactante nos primeiro e segundo actos e menos nos últimos, em que o seu cansaço se tornou mais evidente. Berger foi um Oreste pujante, ainda mais convincente como actor e com uma presença vocal de notável corpo e energia. Ainsworth, que fez Pylade, tem uma voz claríssima e delicada. O barítono John Moore foi um Thoas magnífico e impressionante: sem dúvida a voz mais inesquecível da noite. Os papéis secundários foram cumpridos por Sónia Alcobaça (Primeira Sacerdotisa), Maria Luísa Tavares (Segunda Sacerdotisa), Carlos Pedro Santos (Sacerdote) e Carlos Silva (Um Cita). O coro, como vem sendo hábito, foi de forma geral bastante competente.

Ao centro: John Moore (Thoas, rei dos citas) | Bruno Simão / TNSC
Curiosamente, apesar de ter sido anunciada como um nova produção do Teatro Nacional — será oportuno questionar a actualidade estratégico-programática desta designação institucional? —, e para além dos cantores principais e do maestro, parte do corpo principal da obra aterrou também no Aeroporto da Portela, neste caso vindo expresso de Los Angeles: James Darrah (encenação), Emily Anne MacDonald e Cameron Jaye Mock (cenografia e desenho de luz), Chrisi Karvonides-Dushenko e Eyan Candini (figurinos). A primeira expectativa é de grande felicidade: sabemos bem como pode ser culturalmente proveitoso e instigante o encontro entre diferentes perspectivas. Todavia, o contributo estadunidense soube a muito pouco: nada de aberrante ou ofensivo, mas também nada de genial ou surpreendente. Em entrevista ao Observador, Karvonides-Dushenko disse ter olhado para “influências da Grécia Antiga, para influências do tempo em que a ópera foi escrita por Gluck” e para “interpretações contemporâneas”; o encenador terá querido “algo simples, intemporal, moderno, talvez com uma pequena alusão à Grécia, mas que não desse a entender em que tempo a ópera se passava”. Infelizmente conseguiram. Os figurinos tinham algo de Game of Thrones, algo dos filmes de Guerra do Vietname, um pseudo-classicismo resgatado de filmes holywoodescos pseudo-históricos e pouco faltaria para Thoas, em gesto e vestes, se lançar ao flamenco. Por vezes, os movimentos pantomímicos dos cantores e dos actores que se lhes juntaram (uma quase despercebida Diane e as cinzentas “vítimas do passado e do presente de Iphigénie”), em face da exiguidade do palco e da redundância dos gestos, pareciam dotar os corpos presentes de alguma desorientação ou frustração espacial. O disco feito sol, feito lua, diferentemente matizado ao longo da ópera, condizia elegantemente com as nuances cromáticas do vestido de Iphigénie, e iluminava o palco, nalguns momentos, com uma beleza onírica muito para admirar… mas a frieza desoladora de um cenário depauperadamente estático e para-fabril não pôde dar grande sequência estética a esta maravilha em potência. Ou então continuamos a ter expectativas demasiado elevadas…
De uma forma ou de outra, Iphigénie en Tauride é recomendável. As próximas récitas são a 9 e 11 de Março, pelas 20h, e a 13 pelas 16h.